World's End Dancehall escrita por Kurai


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

A história alterna entre flashbacks e o presente, se isso não está claro. O cenário é uma cidade no meio de um país em guerra.
Boa leitura!



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"Chegará em 30 minutos." anunciou a voz grave no rádio. Metade das pessoas estavam paradas, sem reação. A outra metade corria tonta de um lado pro outro. "Repetindo. Será em 30 minutos."

Eu simplesmente continuei andando.

—----

Não vejo sentido nenhum na escola. É uma convenção de pessoas que se dividem em grupos com o único objetivo de derrubar os outros grupos. E quem não é de grupo nenhum, como eu... É derrubado por todos.

Eu já sabia alguma coisa sobre ser derrubado. Primeiro eu reclamava, me enraivecia, até chorava. Depois vi que ninguém vê que você está chorando. O silêncio dá menos trabalho. Era mais fácil.

O caminho para casa era curto. Mas eu andava devagar. Não tinha pressa. Me derrubariam de novo quando eu chegasse.

Ele já gritava para que eu fosse até lá. Eu fui, como sempre. E como sempre, ele arrancou minha roupa sem nem dizer 'olá'.

Novamente silêncio até que ele ficasse satisfeito. Depois fui cuidar da casa... A mãe devia estar chorando em algum lugar. O pai devia estar bebendo. O irmão agora já tinha ido assistir TV.

O silêncio e a inércia eram meus meios de sobreviver... Mas alguns dias, eles desapareciam. Dias em que vinha o desespero. Dias em que a urgência de fazer algo me impedia de ficar em silêncio.

Larguei tudo do jeito que estava. Saí correndo. Meus pés já sabiam aonde me levar.

—----

Tateei o bolso em busca do bilhete. Minha mãe enfiara aquilo na minha mão antes de sair correndo pra juntar as coisas. Ela fazia parte dos desesperados. O irmão sumira. Meu pai devia estar bebendo, sem esperança de nada. Apertei o bilhete na mão. Só uma coisa importava agora. E não era nenhum deles.

—----

A quadra continuava suja e abandonada quando eu cheguei, longe do resto do mundo. Eu gritei outra vez a plenos pulmões. Desde que achara aquele lugar, usava para isso: gritar. E minhas mãos sangravam aonde eu socara os muros.

Não era sempre que eu precisava disso. Só quando tudo começava a rodar.

"Todas as coisas boas se foram." Eu me sentei no chão, com a voz rouca de tanto gritar. As lágrimas já desciam pelo meu rosto. Segurei meus cabelos com força, respirando forte. Estendi a mão para um pedaço de vidro do chão e o segurei com força, cortando a palma da mão. Virei a ponta na direção do meu pescoço.

Uma mão surgiu de lugar nenhum e segurou o pedaço de vidro. Vi o novo sangue escorrer daquela mão e se juntar ao meu. "Boa tarde." Com a outra mão, soltou o vidro e o atirou longe. Segurou minha mão ferida com a própria mão ferida. Ardeu. "Que tal eu puxar sua mão agora?"

A mão ferida foi puxada pra frente até que eu me levantasse do chão. E aí me giraram. De repente eu estava dançando sem música. "Por que quer deixar este mundo?"

"Todas as coisas boas se foram." repeti. "Só resta a ruína." Eu ainda estava dançando. De forma terrível, tropeçando em pedras e pés, mas não me deixavam cair. Minha visão estava turva. Eu queria sumir. Por que essa pessoa não me deixava sumir?

"Dê mais uma chance. Talvez apareça alguma coisa." Vi um sorriso. Um sorriso seguro e sem medo. Meio louco. Me deu vontade de sorrir. Consegui esboçar um sorriso. A dança parou. "Algo divertido."

"Minha vida é do tipo que é menos divertida do que estar morto." minha voz soou abatida, o sorriso cansado.

"Mais um pouco. Viva só mais um pouco." soltou minha mão que ainda ardia. Não consegui responder.

De repente eu estava só. Eu podia sumir agora, se quisesse. Não consegui.

—----

Eu já estava chegando na quadra. Agora tinham vários carros batidos. As pessoas eram engraçadas quando em pânico. Eu fiquei pensando nisso até chegar na quadra. Eu já sabia quem estaria lá. Como sempre esteve. Podíamos dançar juntos sem música mais uma vez. Algo divertido.

—----

"Por que você continua vindo aqui?" eu perguntei, abraçando meus joelhos, na arquibancada arruinada.

"Quem sabe? Talvez eu goste da sua companhia. Talvez eu queira ver o que vai acontecer com você. Talvez eu queira te proteger de si." eu consegui ver seu sorriso meio louco lampejando na minha direção. "Talvez tudo isso junto."

Eu não gritava e me feria mais. Passei a ir na quadra apenas para aquilo: passar o tempo, conversar. De algum jeito, aquilo tinha o mesmo efeito de me acalmar que gritar me dava. Não falávamos sobre nada em particular. Falávamos sobre a vida. Escola. O mundo. As pessoas. Sentimentos. Nunca sobre nós. Éramos dois totais estranhos, mas eu já dependia de sua presença.

Hoje estávamos falando da guerra. Das bombas. Das mortes. Apesar de estar em todos os jornais, em todas as notícias, parecia tão distante, tão longe daqui. Algo que nunca nos tocaria. As pessoas seguiam suas vidas aqui. Em outro lugar, elas morriam. E foi quando eu decidi saber mais.

"Quem é você? Por que estava aqui, aquele dia?" recebi um olhar curioso.

"Eu não sou ninguém. E eu estava numa busca."

"Uma busca pelo quê?"

"Eu observo o mundo. E ultimamente percebi que não havia mais motivo para observar... O mundo está distorcido demais."

"Eu que o diga." abracei meus joelhos mais junto do corpo.

"Foi quando eu vi você. Decidi que o mundo podia ser distorcido... Mas e as pessoas? Quis ver se você, que parecia tão sem esperança, ainda podia achar alguma luz nesse mundo." eu olhei em sua direção, sem entender. "Algo divertido, pelo qual valesse a pena não sumir." vi seu sorriso seguro agora curioso. "Você encontrou?" Me deu vontade de rir.

"Encontrei." sorri de lado. "Você." vi seus olhos se arregalarem, surpresos, o sorriso vacilar um instante. Parecia não esperar por essa. Quem diria. "Para mim, você é alguém."

Sua mão, que tinha na palma a mesma cicatriz que a minha, do corte com o caco de vidro, alcançou a minha e a segurou. O sorriso tinha voltado.

"Interessante. Valeu a pena te impedir de sumir."

Eu sorri outra vez. Era comum sorrir agora.

—----

"Você veio."

"Claro que vim." eu sentei ao seu lado na arquibancada arruinada. "Tem um trem saindo daqui a pouco. Vim buscar você." Olhei seus olhos. O brilho deles já me deu a resposta que eu temia.

"Eu te disse, a algumas semanas, que observo o mundo. Nesse momento meu mundo é esse lugar. Vou observá-lo até o final."

Eu encarei meus pés. "Vou perder você?"

"Você deve ir. Continuar vivendo. Pegue o trem." quando ouvi isso, senti raiva. Peguei o bilhete do trem do meu bolso.

"Se não fosse você, eu nem existiria mais. Vamos sumir junto. Puf." rasguei o bilhete no meio. Senti seus olhos me encarando reprovadores. Dei de ombros. "Vai ser como num show de mágica. Muita luz e fumaça. Muito barulho. E desaparecemos. A diferença é que não vai ter ninguém pra aplaudir e gritar depois."

—----

"Por que fica me fazendo dançar sem música?" hoje nós não estávamos na quadra. Estávamos numa colina, perto de um fio de água que um dia foi um rio. Meu corpo girava no lugar, tropeçando, guiado por sua mão.

"Em momentos tristes, dançar vale a intenção." eu já tinha notado que a tristeza parecia menor sempre que nos víamos. Nunca tinha associado com isso.

"Pelo menos coloque alguma música." reclamei, só por falar.

"Se te incomoda tanto." de repente, havia música. Havia uma voz cantando, uma melodia lenta. Bonita. Fechei os olhos. Sua mão ainda me guiava, sua voz ressoando em meus ouvidos.

"De onde foi que você apareceu?" perguntei com sinceridade, mais pra mim. Não tive resposta, a música continuava. Dessa vez me deixei levar. "Sinto vontade de chorar. Mas também quero sorrir." Agora a música parou.

"A vida é confusa. Mas quem disse que não pode fazer os dois?"

Foi o que eu fiz. Chorei. Chorei pelo meu irmão, pela minha mãe e meu pai, pelos alunos da minha sala. Chorei pelas pessoas que repetiam a mesma rotina todos os dias, vivendo uma vida entediante esperando pelo fim. Chorei pelo mundo. E chorei por mim. Pela minha vida miserável. E aí, consegui sorrir.

A música voltou. E agora eu quem guiava, dançando por vontade própria. Giramos pela colina até escurecer.

—----

"Você deveria ter pego o trem."

"E perder toda essa vista adorável?"

Tínhamos ido pra cobertura de um prédio empresarial. Ninguém nos parou, todos estavam fugindo, a cidade agora estava vazia. Do alto do décimo quarto andar, a cidade inteira aparecia sob nós.

"Você tem desejos interessantes." eu ri do comentário, me aproximando da borda do prédio.

"Você quem perguntou qual era."

"Mas olha pra onde viemos."

"Não era você quem dizia sempre pra encontrar algo divertido pra viver? Olha só essa vista. Eu nunca teria visto isso se não fosse essa guerra. Não é irônico?" eu ouvi sua risada. Se aproximou por trás e pôs a mão em meu ombro, observando a vista também.

Não havia mais a voz com a contagem regressiva. Não havia nada. A cidade estava em silêncio absoluto. Mas eu calculava dois minutos agora. Olhei para cima. Lá estava, o rastro branco no céu. O fim.

"Está na hora... Tem certeza que é o que quer?" ouvi sua voz e olhei para trás.

"Eu sempre quis voar."

"Vai ser interessante." aquele sorriso me tirava todos os medos. Meu único arrependimento era que eu esqueceria aquele rosto. Mas era inevitável.

"O que acha que vai acontecer com essa vista linda? Depois que aquilo chegar" apontei o rastro branco no céu.

"Nada vai mudar. Nós a vimos como é. Então ela sempre vai permanecer como é, pra nós" eu concordei com a cabeça.

Chegamos na borda do prédio. Na borda do mundo. Segurei sua mão com força.

"Adeus, mundo. Cuide-se." murmurei.

E então saltamos.

Finalmente, eu voava. Livre. Livre de tudo. Só restava o que realmente importava. Olhei para o lado. Um sorriso meio louco, seguro, sem medo. Puxei seu corpo para perto, num abraço apertado. Era assim que eu queria terminar.

Não cheguei a ver o chão. A flor, no céu, nos alcançou antes. Ouvi um rugido como se estivesse numa cachoeira. E desapareci.

Puf. Sem aplausos.

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Notas finais do capítulo

Sim, houve estupro não-narrado.
E um detalhe que eu gostaria de comentar é que eu me esforcei pra que, no capítulo todo, o gênero de nenhum dos dois personagens fosse estabelecido. Você pode imaginar uma mulher e um homem, um homem e uma mulher, duas mulheres ou dois homens, mesmo que a música que tenha servido de inspiração retrate duas mulheres.
Espero que tenham gostado! Até a próxima.



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