Cinco minutos escrita por Yokichan


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/744310/chapter/1

Cinco minutos é o tempo que a droga leva para abrir o terceiro olho da mente. Mas, até lá, Suigetsu precisa continuar convivendo consigo mesmo. Sentado num canto do laboratório de Karin àquela hora da madrugada, as costas nuas contra a parede e a agulha da seringa reluzindo depois de ter sido usada para mandar doses cavalares da substância direto para a corrente sanguínea, ele espera que a dimetiltriptamina* possa aliviar ao menos parte de seu tormento. Depois de noites e noites mal dormidas, seus olhos estão fundos e uma espécie dolorosa de angústia o corrói por dentro.

Quanto tempo já se passou?

Trinta segundos?

Um minuto?

Karin. Ele lembra-se dela mais uma vez ao olhar para a parte interna do cotovelo, onde a agulha penetrou na carne, e ver a gota de sangue que surgiu sobre a pele. A cor de seu próprio sangue assemelha-se à cor dos cabelos dela, da garota que parece escapar por entre seus dedos como se ele tentasse agarrar água ou a névoa úmida que se acumula sobre a superfície de um lago ao alvorecer. Ele tenta abraçá-la, cobri-la de amor, mas tudo o que ela faz é continuar se esquivando. Então ela desaparece sem dizer-lhe sim ou não, sem dizer-lhe qualquer coisa, e ele permanece sozinho como sempre. Suigetsu pergunta-se, nesses momentos, se não será melhor simplesmente ir embora e tentar esquecer-se dessa parte de sua vida. Contudo, não consegue. Ele tem consciência de que não é capaz de deixá-la para trás.

Suigetsu fecha os olhos e aguarda. No escuro da mente que ainda não iluminou-se pelo efeito da droga, ele delineia cada traço do rosto dela. Ele pensa na discussão que tiveram horas antes e recorda-se da bofetada recebida por ter dito que ela era apenas covarde demais para ceder. Aquele lado de seu rosto ainda parece arder de vergonha e ressentimento. Mesmo sem abrir os olhos, Suigetsu compreende que a lâmpada no teto começa a falhar porque a escuta piscando e chiando. Compreende também que o problema todo se resume ao fato de que ele ama aquela garota – ele a ama tanto que sente raiva de si próprio.

A energia na lâmpada estabiliza novamente.

E parece-lhe que algo começa a liquefazer-se nas horas mais escuras da noite. Suavemente, o mundo distende-se e ondula ao seu redor, e Suigetsu abre os olhos para ver os próprios demônios tomando forma. Mas não, esse ainda não é o momento em que os demônios aparecem. É apenas o começo da viagem e os primeiros movimentos daquela nova dimensão adaptam-se ao entorno de seu corpo. Suigetsu sente os olhos molhados e sorri, achando graça de sua própria condição. Patético. É patético que ele precise refugiar-se daquele modo e que algo invisível seja capaz de feri-lo tão fundo. Se estivesse lutando contra alguém de verdade, poderia simplesmente cortar o sujeito ao meio. Não é por acaso que ele se tornou um dos Sete Espadachins da Névoa. Mas como vencer uma batalha travada contra si mesmo?

Karin.

O sentimento que morde por dentro chama-se Karin.

A lâmpada sobre sua cabeça começa a dobrar-se de uma maneira impossível. O mundo agora é um paradoxo em que o possível e o impossível convivem sem a necessidade de explicações. Suigetsu sente que os pensamentos atropelam-se numa velocidade vertiginosa e se dá conta de que todos são sobre aquela garota. Ele apoia uma das mãos no chão de pedra e tenta recobrar alguma coerência, mas não consegue. É como se seu próprio ser estivesse vergando sob aquele fluxo torrencial.

Ele a vê nas mais diversas situações, mesmo nas mais ridiculamente corriqueiras. Karin mordiscando a ponta da caneta enquanto pensa sobre um relatório aberto sobre a mesa. Karin olhando por cima dos aros dos óculos. Karin bebendo água gelada, os cubos tilintando dentro do copo com um ruído agora nauseante. Karin vestindo o jaleco branco. Karin muito concentrada sobre o microscópio. Karin dizendo alguma palavra que se perde no jorro da memória. Karin vestindo uma das meias longas através da porta entreaberta do quarto dela. Karin caminhando à sua frente no corredor escuro do complexo de pesquisa. Karin soltando uma risada que fica pela metade quando outro pensamento força passagem. Karin tentando soltar-se quando ele a agarra pelo braço. Karin abrindo a boca sem conseguir falar. Karin correndo para longe. Karin de pé na porta do laboratório, observando-o lavar os tubos de ensaio. Karin chamando-o de idiota.

Karin, sempre Karin, como se não houvesse mais ninguém no mundo.

Mas ainda não se passaram cinco minutos e aquela onda líquida e luminosa é apenas a mão que força o trinque, não a que, de fato, abre a porta. Suigetsu sente-se frio e quente ao mesmo tempo e gosta de como essa confusão encobre algo maior. Lentamente, a angústia amolece e outras sensações tomam o seu lugar – uma delas é a necessidade quase lancinante de tomar Karin nos braços e de penetrá-la com força para que ela saiba o quanto ele a tem desejado em silêncio. O corpo nu de Karin deve ser uma das coisas mais lindas do mundo, Suigetsu pensa por um instante. Entretanto, o momento se perde no turbilhão da mente e ele já não sabe mais no que pensar.

O nome dela é o único ponto constante, aquele resquício humano que mantém-se firme sob o temporal e que não se deixa arrastar pela força com que a dimetiltriptamina varre tudo para uma dimensão paralela. O nome dela é tudo em que ele pode agarrar-se agora.

Cinco minutos é o tempo que a droga leva para fazê-lo esquecer-se de que não pode ter a única mulher que já quis naquele mundo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* Dimetiltriptamina: Substância alucinógena que pode ser extraída das folhas de uma planta. Os efeitos podem ser sentidos a partir de 5min de uso e costumam durar cerca de 1h.