Torture escrita por Ckyll


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Hey amores.

Eu tinha planejado, inicialmente, que a história começasse e terminasse em Time. Então a Liudi me pediu para continua-la, então cá está.

Boa leitura.



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Um, dois, três, quatro.

A pedra saltou sobre a água, provocando pequenas perturbações antes de afundar, desaparecendo. Instantes depois outra fez o mesmo caminho, com igual precisão.

Um, dois, três.

Os olhos verdes observavam com muita atenção, apenas porque isso o distraía, mesmo que minimamente, do que acontecia a seu redor. Naqueles breves momentos ignorava onde estava, e fingia estar diante de seu lago favorito no mundo mortal.

Um, dois.

A pedra afundou, e talvez ele tivesse colocado força demais naquilo, deixando-se vencer pela impaciência e desistindo de fingir que estava bem. Ele não estava. Sentou a beira do lago e chutou o montinho de pedras que tinha formado, ignorando o fato que apenas ele conhecia: Elas marcavam cada dia que passava ali.

356 2500 dias, e ele sabia exatamente quantos já tinham se passado, quantos ainda faltavam para acabar. Era como se sua vida dependesse daquela maldita contagem – todas as manhãs quando abria os olhos aquele número martelava em sua mente, afastando os sonhos a que ele tentava tanto se agarrar.

Por vezes pensava ser capaz de ouvir as palavras de Zeus enquanto decretava aquela sentença, a estranha mistura de felicidade e dor que sentira naquele momento. Ela não seria ferida, mas ele não poderia permanecer ali. Podia ser pior, Hades dizia. E ele sabia que era verdade, mesmo que quisesse negar. Podia ser pior.

Isso em nada diminuía o peso daquele fardo, a ilha dos afortunados podia ser um lugar de paz e alegria, e talvez por isso o rei dos deuses decidira manda-lo para aquele lugar: Que contraste maior com a agonia que sentia? Mil anos ali, longe de todos que amava, longe de seu reino, longe dela.

Não se preocupava com os mares, e que péssimo rei poderia ser, mas sabia que Tritão cuidaria de seu reino, como o bom regente que fora ensinado ao longo de toda uma vida. Chamavam aquilo de equilíbrio, mas Poseidon duvidava, seu humor oscilava a todo momento, e por vezes desejava que toda aquela calmaria a seu redor explodisse. Era enlouquecedor para um espírito tão inquieto, um inferno silencioso para um deus cuja a vontade fazia a terra tremer e rachar.

No entanto ele suportava, e aos poucos foi descobrindo um pequeno alívio, as visitas de Perséfone lhe traziam notícias do mundo acima, e pequenas coisas sobre aquela que tanto lhe importava: Atena. Quase todas as tardes a rainha sentava ao lado dele naquele lago, e lhe contava coisas sobre a deusa da sabedoria.

“Ela se recusou a participar da reunião do conselho.”

“Afrodite conseguiu convencê-la a ir a uma festa, acho que ela se divertiu, mas não ficou muito tempo.”

“Ela cortou o cabelo, na altura dos ombros, e está mais claro também. Mamãe tem reclamado que ela come pouco, mas você sabe como ela é.”

Ele sabia, e cada dia mais ansiava pelas visitas de Perséfone, aguardando o momento em que ela deixava escapar aquelas informações. Não sabia se ela era discreta por costume, ou necessidade, era certo que sua punição se estendia ao total afastamento deles, uma vez que nem mesmo cartas eram permitidas. Contentava-se com aquilo, era mais até do que esperava receber.

Por vezes conseguia se distrair, ocupando-se com antigos heróis, pessoas que ele conhecia. E por vezes ele sorria, mais por hábito do que pela real felicidade, algo que não sentia desde que a tinha deixado para trás. Os dias passavam lentamente, como se o tempo zombasse de sua ansiedade, e ele entedia porque Apolo dizia ser esse o maior castigo dos imortais.

― Talvez se tentar com menos força. ― uma voz comentou, e o deus dos mares virou para encarar a cunhada – que também era sua sobrinha, mas isso não vinha ao caso.

Perséfone era bela, tão bela quanto Afrodite, ou até mais. Era fato que ninguém ousava dizer isso em voz alta, não querendo novamente provocar a ira da deusa do amor. Era uma presença reconfortante, Hades sempre parecia mais calmo perto dela, e mesmo Poseidon tinha começado a ficar mais tranquilo quando a deusa surgia.

― Vai fazer o tempo passar mais rápido? ― indagou, e ela sorriu enquanto sentava junto ao deus.

― Não, mas impedirá uma irritação desnecessária.

Ele rolou os olhos, e não havia nada que pudesse dizer sobre aquilo, porque mesmo que não quisesse, era verdade. Estava irritado, desde que tinha chegado ali. Não importava o quão agradável fosse aquele lugar, trocaria tudo para estar na biblioteca de Atena, naquela saleta onde ela costumava se esconder para ler sem ser interrompida, apenas o som da voz dela e o calor da lareira.

Fugiu dessa memória, assim como de todas as outras. Doía lembrar aqueles momentos, tão breves e tão preciosos, o pouquíssimo tempo que tivera junto a ela. Tinham vivido uma eternidade lado a lado, tinham batido de frente um com o outro a cada reunião do conselho, a cada coisa que não concordava. Ela sempre cheia de certeza, ele puro impulso. Muito tempo de ódio, que de alguma maneira tinha se tornado algo inesperado.

― Hades não está com você? ― voltou a falar, apenas porque isso o livrava de tantos pensamentos, Perséfone sorriu antes de pegar uma das pedras e atirar, fazendo com que saltasse exatas seis vezes antes de afundar.

― Não. Ele está em algum lugar discutindo com mamãe, passarão o dia nisso.

― Deméter está aqui? Pensei que não viesse logo.  

― Já é inverno, e aparentemente, eles sentiram falta um do outro.

E era impossível não rir, os irmãos viviam brigando – muito antes de Hades levar a preciosa filha da deusa. A informação sobre o inverno fez com que ele pensasse no Olimpo, em toda a neve, e em Atena muito confortável em suas roupas quentes, livros bem escolhidos e chocolate. Diversas vezes tinha se pegado admirando aquela imagem, a deusa da sabedoria envolvida em casaco, uma manta sobre seu colo, uma poltrona confortável e um livro em suas mãos. Pensava por que ela não aproveitava a neve, como Apolo e Hermes, zombava de como a deusa era sempre indiferente e certinha.

Se pudesse voltar no tempo...

― Pode ir vê-la, se quiser. ― a rainha interrompeu, e Poseidon desviou o olhar enquanto escolhia uma pedra.

― Não é uma boa ideia. ― murmurou, e não era a primeira vez que ela dizia aquilo. Poseidon não tinha contato com qualquer outro imortal além de Perséfone e Hades desde que chegara ali, tinha se recusado a falar com outros, porque tudo remetia aquele último dia no Olimpo, e ao silêncio dos deuses diante daquela punição.

“Seja grato” Zeus tinha lhe dito, e o deus engoliu uma boa resposta, por não querer nem um minuto discutindo com ele. Tinha poucas horas com Atena, a única com quem ele gostaria de estar naquele momento. A única que ele desejava estar agora.

― Sabe, em algum momento você vai perceber que isso não é tão ruim, e então as coisas se tornaram mais leves. ― havia muito cuidado na voz da deusa ao dizer aquilo, como se escolhesse bem as palavras, tentando não deixa-lo enfurecido. ― Imagino que seja horrível, mas ao invés de focar nessa raiva, tente ter esperança. Vocês vão se encontrar, e ambos estarão livres disso, o pior já passou.

Dividia-se entre a concordância e a mágoa, como poderia explicar a ela que o problema era exatamente a esperança? Que todas as noites sonhava estar no Olimpo, que em seus sonhos Atena dormia aninhada a seu corpo depois da primeira noite juntos? Mas então, Zeus surgia e tudo se tornava um pesadelo, as mãos do senhor dos céus sobre o corpo dela, os gritos cheios de fúria, a sentença martelado no fundo de sua mente.

Como dizer que ele sufocava? Que sentia a dor em seu peito, como nenhum ferimento em tantas guerras tinha lhe causado? Como dizer que ele sentia falta de Atena?  Como explicar o valor único que ela tinha para si? Talvez Perséfone pudesse entender, mas as palavras não saíam.

― Ela voltou a pintar, e Apolo disse que a ouviu tocado violoncelo certa noite. Ao que parece, Ártemis esteve no Olimpo apenas para vê-la dias atrás.

Isso fez o deus sorrir, feliz por, de alguma maneira, ela renascer. Tinha uma vaga lembrança dos quadros, mas apenas porque não conseguia desviar o olhar da visão que era Atena concentrada em sua pintura. Sendo sincero, ele jamais resistia a observa-la. Era fascinante e maravilhoso, não havia nada que ela não fizesse com perfeição, desde vencer uma guerra até conquista-lo.

― Atena vai te esperar. ― a deusa tinha a mão sobre a dele, e os olhos muito claros eram gentis.

Ela esperaria, se tentasse se concentrar ouviria o eco frágil da voz dela em sua mente, e a promessa de que esperaria por ele. Atena era melhor em promessas do que o deus dos mares, afinal seguira seu juramento de forma impecável por milênios, apenas quebrando com ele.

“Quero isso” ela tinha falado, baixinho. Os olhos cinza encarando com determinação tão típica. “Quero você”.

Não se arrependia, e sabia que a deusa também não. Pagava o preço por aquela noite, e o faria mil vezes mais, apenas para tê-la em seus braços, entregue daquela maneira. Apenas gostaria de ter mais tempo, um desfecho diferente, um futuro melhor. Gostaria que ela nunca tivesse sido humilhada daquela maneira, que não tivesse sido exposta ao olhar de todos, enrolada naquele lençol fino, mas ainda assim tão corajosa.

― E Zeus? ― a pergunta lhe escapou, expressando sua preocupação constante. Perséfone suspirou antes de lançar mais uma pedra no lago.

― Acredito que, à sua maneira, ele esteja arrependido do estardalhaço que fez. Parece buscar formas de se aproximar de Atena, mas ela não tem dado brecha, acho que ainda está magoada demais. E com razão.

Havia tanta indignação na voz dela, ele poderia rir, mas apenas assentiu e se aquietou. Por um longo momento permaneceu assim, resistindo a tentação de perguntar mais, de tentar conseguir detalhes sobre ela, apenas porque isso lhe daria um alívio momentâneo.

― Só mais alguns anos. ― prometeu a rainha, então levantou, e ele sabia que aquela conversa tinha chegado ao fim. Perséfone caminhou de volta ao palácio, para junto de Hades, pronta para suportar horas da discussão do marido com  Deméter, apenas por  ser ele quem ela amava.

E ele suspirou, sabendo exatamente quantos anos faltavam. E pegando outra pequena pedra, juntou ao montinho que tinha formado ali, marcando cada dia.

Um, dois, três, quatro.

A pedra saltou sobre a água antes de desaparecer, e ele esperava que com ela, fosse embora um pouquinho de sua dor.


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Notas finais do capítulo

Eu espero sinceramente que gostem disso, os comentários em Time foram tão lindos que fui incapaz de respondê-los, mas estou tentando!
Reviews me deixam sorrindo bobamente.
Beijos, Ckyll.



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