De almas sinceras escrita por Izzy Aguecheek


Capítulo 2
Encara a tempestade com bravura


Notas iniciais do capítulo

Eu nem revisei esse capítulo, só escrevi e postei - quase que não consegui escrevê-lo, para ser bem sincera, mas acabou dando certo.
Esse capítulo foi inspirado na "maldição" do Will e naquela história dele só deixar o Jem ser amigo dele porque o Jem já tá morrendo (e pelo fato de eu ter assistido Rent e lido Dois Garotos se Beijando -q), e também porque eu queria uma inversãozinha de papéis básica. A escolha da data foi devido à época em que a AIDS era considerada uma "peste gay" e não tinha tratamento, e o local foi completamente arbitrário. Enjoy.
(O título do capítulo, novamente, foi retirado do soneto 96.)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/743331/chapter/2

Los Angeles, 1980

Will Herondale não tinha um quinto encontro havia anos. Ele havia se acostumado a encontros únicos e anônimos, preferencialmente em boates escuras, o que simplificava um pouco as coisas: um pouco de conversa fiada, talvez um beijo, e, depois, caminhos separados. Na maior parte do tempo, ele nem se incomodava mais. Era mais fácil daquele jeito.

Mas, quando Jem Carstairs o convidara para ir a um café, em plena luz do dia, depois de os dois terem passado horas conversando em quatro outras ocasiões, Will não conseguira dizer não. Eles se conheciam havia cerca de dois meses, e, durante todo aquele tempo, Will nunca conseguira dizer não a Jem.

Assim, em uma sexta-feira à tarde, Will se encontrava em um café bastante movimentado, brincando nervosamente com um guardanapo. Ele chegara adiantado; Jem passou pela porta exatamente quando o relógio acima do balcão marcou 17h.

Ao ver Will, ele abriu um sorriso imenso. Will sentiu-se sorrir de volta sem nem se dar conta, o que era novidade. Ele normalmente tinha ótimo controle sobre suas expressões faciais.

— Faz tempo que você tá esperando? – perguntou Jem, sentando-se de frente para ele. Will sacudiu a cabeça.

— Não, na verdade, não. Só uns cinco minutos.

Jem acenou para a garçonete que passava pela mesa e pediu um café. Will pensara em pedir algo para ele antes, mas tivera medo de escolher a coisa errada.

— Que bom. Detesto deixar as pessoas esperando – Jem analisou o rosto do rapaz à sua frente. – Então, como foi sua semana?

A semana de Will fora como todas as semanas antes dela – as mesmas aulas na escola de ensino médio onde ensinava literatura, as mesmas noites em claro, os mesmos poemas garantindo-lhe conforto. As coisas eram as mesmas desde que ele descobrira o vírus em seu corpo, devorando-o por dentro.

Apesar disso, Jem parecia realmente investido em ouvi-lo descrever os melhores comentários de alunos modernos sobre textos clássicos e as implicâncias de colegas, e Will sentiu um aperto no coração. Fazia algum tempo desde a última vez em que ele permitira que alguém se interessasse nele daquele jeito. Ele podia se acostumar com aquilo.

Abruptamente, Will interrompeu seu relato cotidiano para dizer:

— Mas com certeza você não quer ouvir sobre isso.

— Ah, mas eu quero – retrucou Jem. – Se não quisesse, não teria perguntado.

Ele tinha uma maneira natural de responder às palavras ácidas de Will, como se tivesse se acostumado com elas, mesmo que os dois se conhecessem há pouco tempo. Will sacudiu a cabeça.

— Sua vida deve ser muito chata, se você realmente quer ouvir sobre a minha.

Para sua surpresa, Jem riu.

— Talvez seja. Ou talvez você esteja subestimando a si mesmo.

Então, Will continuou falando. Jem não tirava os olhos dele, e ele observava Jem observando-o. Ele se perguntava se parecia tão frágil e exposto quanto se sentia, ou se dava para ver como ele estava permanentemente danificado. Will não gostava da ideia, e, ao mesmo tempo, adoraria que ele o visse como realmente era e fugisse antes que Will precisasse expulsá-lo. Ele não deixara ninguém chegar muito perto em muito tempo, e não estava certo de que ainda se lembrava de como fazê-lo.

Quando ambos acabaram as bebidas, Jem sugeriu que eles caminhassem pela praia antes que anoitecesse. A ideia de uma caminhada romântica ao pôr-do-sol era tão ridícula que Will não conseguiu dizer não. Por mais que tentasse negar, ele sempre fora um fã de clichés, e sentia falta de poder se entregar a eles.

Eles tiraram os sapatos e caminharam lado a lado em silêncio pelo que pareceu um longo tempo. Por um momento abençoado, a mente de Will ficou completamente em branco, e ele se permitiu aproveitar a brisa fresca da primavera, a areia macia sob seus pés e a presença tranquilizadora de Jem ao seu lado. Durante esse momento, Will quase conseguiu fingir que merecia aquilo e que tudo ficaria bem.

Então, Jem tentou pegar a mão de Will, que se afastou por instinto, e o feitiço foi quebrado. O silêncio amigável subitamente tornou-se desconfortável, e Jem o rompeu ao dizer:

— Will, você acredita em destino?

O coração de Will pulou uma batida.

— Defina destino.

Ele viu, com o canto do olho, Jem dar de ombros.

— Não sei. Você acredita, sei lá, que as coisas acontecem por um motivo?

Will pensou em sua irmã, Ella, que morrera em um acidente aos doze anos de idade, e em sua ex-namorada e melhor amiga, Tessa Gray, cujos pais haviam sido assassinados e o irmão estava preso. E em si mesmo, e em Jem, ambos morrendo pelas mãos de um vírus que todos diziam que eles tinham convidado para dentro de seus corpos.

— Eu quero acreditar – respondeu ele, com cuidado. – Mas, bem, é difícil. – Ele fez uma pausa. – Você acredita?

Jem suspirou.

— Eu não sei. Eu só... – Ele sacudiu a cabeça. – Deixa pra lá.

Will tinha a impressão de que sabia do que ele estava falando, e aonde aquela conversa os levaria. Ele parou de andar e se virou para encarar o – amigo? ele não tinha certeza – garoto ao seu lado, decidido a encarar aquilo da forma como encarara todo o resto em sua vida: com uma má atitude e insensibilidade fingida, mesmo que isso partisse seu coração.

— James – Ele insistia em chamá-lo pelo nome completo, o que talvez fosse um erro; soava muito mais íntimo que o apelido. – No que está pensando?

Para sua surpresa, Jem parecia quase tão preocupado quanto ele, mas talvez fosse só impressão. Ele parecia melancólico quase sempre que não estava sorrindo, e havia algo triste a respeito de sua figura pálida e esquálida. Ele estava doente, e, ao contrário de Will, não conseguia esconder isso.

Jem soltou uma risadinha sem graça.

— Deixa para lá – repetiu. – É muito meloso para um quinto encontro.

— Mas eu quero ouvir – rebateu Will, e estava sendo sincero. Ele precisava ouvir.

— É besteira – murmurou Jem, e respirou fundo antes de continuar: - Sou só eu, ou você também tem a impressão de que nos conhecemos há muito mais tempo do que realmente nos conhecemos?

Wil adoraria dizer a ele que não, aquilo era coisa da cabeça dele. Will queria empurrá-lo para longe como fazia com todo mundo, acabar com aquilo de uma vez por todas e voltar para sua velha vida de autopiedade e noites em claro pensando sobre a morte. Assim, ele não teria que se explicar ou terminar com ele oficialmente; apenas um não bastaria.

Mas Will não conseguia mentir para Jem.

— Não é só você – admitiu ele. O rosto de Jem se iluminou, acabando com a melancolia de antes.

— Jura?

Sem conseguir falar através do nó em sua garganta, Will assentiu. Jem sorriu.

— Bem, era isso. Eu estava pensando que talvez nós tenhamos nos conhecido por algum motivo.

— Então você não acredita em coincidências? – Will conseguiu murmurar. Ele tinha consciência de que Jem estava se aproximando, e de que não estavam sozinhos, e de que seu olhar estava fixo nos lábios do outro, mas não conseguia se afastar.

— Não quando se trata de nós.

Foi então que Will saiu de seu estupor: quando Jem se adiantou e tentou beijá-lo, ele deu um passo para trás, quase caindo na pressa de se afastar.

A expressão magoada no rosto de Jem era insuportável. Ele comprimiu os lábios, olhando para o chão, e disse:

— Sinto muito. Acho que eu entendi tudo errado.

Em seguida, ele se virou para ir embora.

Em algum lugar no fundo de sua mente, Will sabia que a decisão mais segura era deixá-lo ir, mas tudo em que conseguia pensar era no olhar machucado que ele lhe lançara, e em como aquilo partira seu coração. Ele se adiantou e segurou o pulso de Jem, ancorando-o onde estava.

— Espere – pediu, quase não notando a súplica na própria voz. Jem se virou para encará-lo.

— Qual o problema, William? – Às vezes, ele também o chamava pelo nome completo, em retaliação aos momentos em que Will o chamava de James. – Juro por Deus, eu não entendo você. Qual o problema?

Mais do que chateado, ele parecia confuso. O coração de Will deu um nó.

— Tem gente olhando – murmurou ele, à guisa de desculpa. Jem não se deixou convencer.

— Eu não ligo para essas pessoas, e eu sei que você também não – Ele sacudiu a cabeça. – No que está pensando?

Eu não quero te machucar, era o que Will estava pensando. Ele disse:

— James...

Ele não conseguiu concluir a frase, e soltou o pulso de Jem, que suspirou.

— Eu realmente gosto de você, sabe. Se você não corresponde...

— Não é isso – Will o interrompeu. Ele respirou fundo. – É só que... Antes de a gente mergulhar de cabeça nisso, tem uma coisa que você precisa saber.

Jem cruzou os braços.

— Bem, então tem uma coisa que você precisa me contar.

Naquele momento, Will poderia muito bem ter dito eu te amo, mas isso não resolveria as coisas. Ao invés disso, ele disse:

— Eu estou doente – Como Jem não reagiu, ele esclareceu: - Eu tenho AIDS.

Houve um momento de silêncio, durante o qual Will não ouvia nada além do próprio pulso e do barulho distante das ondas. Então, Jem disse:

— Também.

A resposta pegou Will de surpresa.

— Quê?

— Você tem AIDS também – esclareceu Jem. Agora, ele parecia irritado. – Como eu. É isso? É por isso que você não quer... É por isso que você está tornando as coisas mais difíceis?

Will apenas olhou para ele, boquiaberto. Ele nunca vira Jem com raiva antes. Era uma visão estranha e algo desconcertante.

Jem ergueu as sobrancelhas.

— Você vai me responder?

Demorou um instante para Will se recuperar.

— Eu... O problema não é você.

Em épocas passadas, Will gostara de escrever poesia. Ele era professor de literatura, e tinha um vocabulário surpreendentemente extenso. Porém, as palavras tendiam a lhe fugir quando ele mais precisava delas. Ele não podia dizer que o fato de Jem também estar doente era um dos motivos pelos quais ele o deixara chegar tão perto.

Will sabia que morreria eventualmente, e, quanto menos pessoas tivessem apreço por ele, menos pessoas sofreriam sua perda. Ele dissera a si mesmo que o fato de Jem também estar doente tornaria as coisas mais fáceis; aquela era uma existência solitária, e ele precisara desesperadamente de uma desculpa para deixar alguém se aproximar – especialmente Jem, de quem ele não conseguia ficar longe.

— O problema não sou eu – repetiu Jem, como se não entendesse a frase, o que faria sentido.

— Não. De jeito nenhum. Eu... – Will sacudiu a cabeça, tentando clarear os pensamentos. – Droga, James, eu não sei. Eu não sou bom nisso, certo? Eu não sou bom em ser bom com as pessoas, e eu vou acabar te machucando, e eu realmente não sei como evitar isso, porque eu realmente, realmente gosto de você. E, por mais que eu tente te afastar, você não vai embora – Ele respirou fundo. – Você se recusa a desistir de mim, e eu não sei lidar com isso, não mais.

Uma longa pausa silenciosa se seguiu a essa declaração, e Will achou que seu coração ia explodir se Jem não respondesse logo. Ele olhou para os próprios pés, cobertos de areia e calejados, incapaz de olhar o amigo nos olhos.

Por fim, Jem disse, em uma voz tão triste que Will pôde sentir o próprio coração se partir:

— Então você devia parar de tentar. Tentar me afastar de você, quero dizer.

Will ergueu a cabeça para olhar para ele.

— Eu não sei se consigo.

Jem sorriu. Um sorriso melancólico, mas cheio de compaixão.

— Acho que o primeiro passo é parar de desistir de si mesmo.

Will não tinha como responder àquilo. Ele abriu e fechou a boca várias vezes, mas não saiu nenhum som.

Para sua surpresa, Jem riu. Will achou que nunca tinha ouvido nada tão maravilhoso. Se a esperança fazia algum som, era a risada de James Carstairs.

— Você quer que eu te acompanhe até em casa?

Ainda sem palavras, Will apenas assentiu.

O início da longa caminhada até o apartamento onde Will morava foi silencioso, enquanto Will tentava processar todos os significados da conversa que haviam acabado de ter. Lentamente, a realidade começou a penetrar em seu cérebro: Jem não se incomodava em se machucar um pouco por ele, e ele levaria um tiro por Jem se fosse necessário. Ele ainda não sabia como se permitir ser amado, nem como amar a si mesmo, mas achava que poderia aprender aos poucos, se Jem fosse seu professor.

Quando eles chegaram ao quarteirão de Will, suas mãos estavam entrelaçadas. Os olhares tortos que os dois recebiam fizeram Will se perguntar, por um breve momento, se um dia seria possível amar Jem de forma descomplicada, mas não foram o suficiente para apagar a pequena faísca que se acendia em seu peito.

Assim que Will abriu a porta do apartamento, Jem se desvencilhou delicadamente dele e anunciou que deveria ir para casa.

— Foi um prazer sair com você de novo – acrescentou ele, antes de se virar para sair.

Como fizera mais cedo na praia, Will o segurou pelo pulso e o puxou para perto. Dessa vez, porém, quando Jem se inclinou para beijá-lo, ele aceitou o gesto com entusiasmo.

Eles nunca haviam chegado àquele ponto nos quatro encontros anteriores, mas não era isso que parecia. Beijar Jem parecia a coisa mais natural do mundo, como se Will já o tivesse feito milhões de vezes antes. Era como voltar para casa depois de férias muito longas.

Quando o beijo acabou, eles permaneceram próximos, com as testas encostadas uma na outra e as respirações se misturando. Will disse:

— Sinto muito por tudo isso.

Jem sorriu.

— Tudo isso o quê? Will, está tudo bem.

Will sabia que não estava tudo bem. Mas ele achava que podia ficar, o que era uma novidade.

— Então você não vai desistir mesmo de mim?

Era para soar brincalhão, mas Will conseguiu ouvir o medo na própria voz. Jem se afastou um pouco para poder lhe dar um beijo na têmpora.

— Nem nessa vida, nem na próxima.

Os dois permaneceram assim, respirando juntos, por um longo tempo. Eles se conheciam havia cerca de dois meses. Eles se conheciam desde uma vida passada. Will definitivamente podia se acostumar com aquilo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Qualquer erro, me avisem. O próximo capítulo tem que sair rápido, né, já que eu tô correndo contra o tempo, mas vai ser beeeem mais dramático que esse. Até lá!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "De almas sinceras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.