Limites escrita por Yokichan


Capítulo 3
III




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Depois de ter deixado Levy em casa, sentindo-se ao mesmo tempo desiludido e inconformado consigo mesmo, Gajeel passou em frente a uma loja de conveniência, dessas que ficam abertas durante toda a madrugada, e avistou as figuras desoladas de Natsu e Gray. Os dois estavam sentados sobre o meio fio da calçada, cada qual com uma lata de cerveja, parecendo tranquilos demais para quem tinha acabado de brigar.

Gajeel parou a caminhonete do outro lado da rua e foi até eles.

Natsu tinha o nariz inchado, manchado de sangue seco, e Gray já tinha aquele círculo arroxeado ao redor de um olho. Os dois ergueram o rosto para olhá-lo, aquele estranho momento de silêncio em que cada um faz a si mesmo as suas próprias considerações, e então voltaram à conversa de antes. Gajeel deu de ombros e sentou-se ao lado deles, sabendo que aquela trégua podia ter apenas um motivo – mulheres – e que, no dia seguinte, os dois retornariam à costumeira condição de rivalidade.

— Então elas chutaram vocês hoje. – disse Gajeel.

— Ao que parece, você também foi chutado. – Gray observou.

— Não foi bem assim.

— Nunca é bem assim. – Natsu negou com a cabeça. – A gente sabe, cara.

— Talvez nós devêssemos fazer o mesmo. – Gray sugeriu.

— Você quer terminar com a Juvia? – Gajeel ergueu uma sobrancelha, sem acreditar.

— Você ficou louco? – Natsu soltou uma risada. – Ninguém aqui vai terminar com ninguém.

— Mas, cara... – Gray estava visivelmente bêbado. – Nós não precisamos delas.

— Se vocês não precisassem delas, não estariam aqui enchendo a cara. – disse Gajeel.

Os três ficaram em silêncio, talvez pensando sobre aquilo, talvez pensando nas garotas que haviam ficado furiosas, talvez não pensando sobre nada, apenas observando a rua deserta àquela hora. Na loja de conveniência logo atrás, o atendente assistia a um programa de televisão e o som chegava até eles com um tom deprimente de abandono. Então Natsu começou a falar sobre Lucy e sobre o relacionamento de quase dois anos que eles tinham, e Gajeel decidiu que não queria continuar ali, como um fracassado, escutando aquelas bobagens.

Ele levantou-se, despediu-se de cada um com um toque de mão, e voltou para casa.

~

Ao ser deixada na calçada diante de casa, tendo visto a caminhonete desaparecer numa curva da rua, Levy sentiu o gosto amargo do abandono confundindo-se com a lembrança cálida do toque de Gajeel. E não foi capaz de compreender do que, afinal, ele havia fugido. Será que ela havia sido atrevida demais? Mas então pensou que aquele cara não parecia ser do tipo que se sente intimidado com garotas atrevidas. Por mais que se esforçasse, Levy não conseguia entender.

Seu primeiro encontro não merecia aquele final decepcionante.

Mas Gajeel não parecia estar voltando e a rua continuava quieta naquele sono tranquilo. Então ela deu de ombros – ao menos, o beijo tinha superado suas expectativas – e atravessou o jardim arquitetado à moda inglesa. Percebeu que o carro do pai já se encontrava de volta na garagem e, ao esgueirar-se silenciosamente pela porta da sala, tirou as botas e passou a andar nas pontas dos pés. Enquanto desviava dos móveis caros, das estatuetas e dos vasos importados que adornavam os cômodos, Levy pensou que aquela casa sempre tinha sido grande demais para duas pessoas – a mãe havia morrido há muito tempo, talvez sufocada por todo aquele luxo.

Subiu as escadas, seguiu pelo corredor escurecido e enfim chegou ao quarto.

Deitada na cama, meio atravessada e incapaz de sentir-se confortável, de sentir-se simplesmente em paz, Levy compreendeu que algo importante havia mudado. Ela havia mudado. A bolha em que o pai a tinha mantido até então, isolando-a do mundo, “apenas para protegê-la das coisas ruins lá fora”, como ele costumava dizer, havia estourado. E agora que ela conhecera aquele mundo “feio e cruel” como metal retorcido, o mundo real, tudo o que queria era voltar para ele.

~

Gajeel só acordou no início da tarde do outro dia. Sem vontade, mas incomodado pela boca seca, arrastou-se para fora da cama, tropeçou nas coisas pelo caminho até a cozinha e, alcançando finalmente a pia, bebeu um grande copo de água. Percebeu então que fazia um calor terrível ali e abriu com um empurrão as duas janelas do cômodo. A claridade ofuscante do sol atingiu-o como um cruzado de direita, talvez do tipo que ele havia acertado em Gray na noite passada, e o fez afastar-se como um vampiro para as sombras do quarto.

Caindo outra vez na cama, ele pensou em Levy. Lembrou-se do beijo que tinham dado na caminhonete, naquela rua escura e inabitada, e perguntou-se se ela agora o odiava. Gajeel pensou no que Natsu havia dito, no dinheiro que o pai dela possuía e no padrão de vida que ela levava, um padrão que um cara como ele jamais poderia proporcionar-lhe. Gajeel era apenas um cara qualquer, sem emprego fixo e sem um futuro brilhante, enquanto ela tinha todas as oportunidades ao alcance da mão.

Ele virou-se com um resmungo de raiva – raiva de si mesmo e do mundo, até mesmo de Levy por ser tão rica – e viu o lápis com o nome dela sobre uma caixa de sapatos que ele usava para guardar o carregador do celular e toda espécie de fios. Levy McGarden. A caligrafia dela era mais um desenho cheio de voltas e de contornos do que uma escrita em si.

Gajeel grunhiu a palavra mais baixa que conhecia.

Detestava sentir-se impotente, desejando uma coisa que não poderia ter e remoendo aquele sentimento de fracasso, como se lhe houvessem derrubado com uma rasteira, no escuro, e ele não conseguisse agarrar o maldito. Detestava sentir-se fraco. Detestava lamentar-se, ou humilhar-se, ou simplesmente baixar a cabeça para algo maior. Então perguntou-se, repentinamente furioso, de quem era a culpa daquela situação vergonhosa.

Quem, além dele mesmo, estava em seu caminho?

Enquanto levantava-se da cama, vestia uma camiseta e calçava os coturnos, Gajeel xingava-se por esquecer-se, às vezes, de que ele era um lutador. Sempre tinha sido um lutador, chutando os obstáculos com toda a força e cuspindo sobre a opinião dos outros. Desde que era um garoto, nunca havia se acovardado perante aquele mundo que insistia em empurrá-lo para um lugar que, ele sentia, não era o seu. E daí que ele não frequentara cursos de inglês, não tivera carros de luxo e não vestia-se com ternos caros? Se havia um motivo real para que ele não ficasse com Levy, ela mesma teria de dizê-lo.

Cara a cara.

~

O velho McGarden ergueu os olhos dos documentos que tinha sobre a mesa e espiou através da janela ao ouvir um irritante cantar de pneus a uma distância que ele poderia julgar bem próxima. Então viu aquela caminhonete cor de laranja, suja e sucateada, parada diante de sua casa – uma das rodas tinha ido parar sobre a calçada? – e o jovem que avançava pelo jardim com uma determinação destemida.

Ele mesmo fez questão de abrir a porta quando a campainha soou, não queria que Levy entrasse em contato com aquele tipo de gente, uma garota culta e refinada como ela. O desconhecido, seja lá quem fosse, obviamente não era confiável. O velho McGarden associava, por algum motivo, piercings a marginais.

— Em que posso ajudá-lo?

— Quero falar com sua filha.

— Creio que não será possível.

— E por quê?

— Porque não há nada que ela possa ter pra falar com alguém do seu tipo.

E fechou a porta.

Gajeel teve ímpetos de arrebentar a porta, e o velho junto com ela, mas compreendeu que aquilo de nada lhe serviria, além de garantir-lhe uma ida à delegacia. Ainda assim, precisava falar com Levy. Então foi até o carro, tirou o violão lá de dentro, e postou-se no meio do jardim, bem abaixo das janelas dos quartos. E começou a tocar a primeira música que lhe veio à mente. Tinha certeza de que, naquele momento, o velho mobilizava os empregados da casa para agarrarem-no e dar-lhe uma surra, mas aquilo não importava. Tudo do que Gajeel precisava era de dois minutos com aquela garota que, de algum modo, o tirara do sério.

Então ela apareceu.

Inclinando-se sobre o parapeito de uma janela, os cabelos em ondas azuis e uma ponta de rubor espalhando-se pelo rosto, Levy gritou o seu nome num tom que carregava medo e euforia. Ele largou o violão sobre o gramado bem cortado do jardim do velho McGarden e foi para mais perto da janela em que ela estava.

— Gajeel! O que está fazendo?!

— Eu só queria dizer que fui um idiota ontem à noite! – ele gritou. – Mas eu...

— Não! Você não foi!

— Me escute! – Gajeel respirou fundo. – Levy, eu sou um nada! Não faço uma faculdade, não tenho um emprego fixo e não tenho dinheiro! Tudo o que eu tenho está aqui comigo... Mesmo assim...

Vozes agitavam-se em um dos cantos da casa e ele grunhiu irritado porque seu tempo estava acabando. Não era como se ele estivesse cometendo algum crime ou infringindo uma lei de trânsito. Tudo o que ele desejava era perguntar àquela garota se ela gostaria de ser sua. Aquilo era errado? Gajeel acreditava que não. Apesar disso, gente que entendia mais de dinheiro do que de amor insistia em intrometer-se naquele assunto que dizia respeito apenas a ele e a Levy.

Então ele colocou toda a sua esperança e sua ansiedade naquela pergunta:

— Mesmo assim, você me daria uma chance?!

Mas antes que ela pudesse responder, o jardineiro da casa, um homem baixinho e corpulento, atirou-se sobre ele e os dois caíram sobre um arbusto, arruinando por completo sua simetria ornamental. Depois, outros dois empregados jogaram-se sobre eles e, tendo imobilizado o “meliante”, como o velho McGarden o chamara, arrastaram-no para a rua. Gajeel ainda lutou contra os três na esperança de ganhar tempo até a resposta de Levy, mas ela continuava em silêncio, pasma e agarrada à moldura da janela.

Só quando um dos homens acertou-lhe um soco na barriga que o fez perder o ar e curvar-se, agonizante, foi que ele ouviu o “sim” de Levy. E não tinha sido um sim inseguro, assustado ou choroso – tinha sido o sim mais sonoro e mais cheio de certezas que Gajeel já tinha recebido. O velho McGarden o havia desprezado, os criados tinham lhe dado uma surra, embora ganhassem em troca alguns hematomas, e os vizinhos o olhavam como se olhassem para um inseto asqueroso, mas, mesmo assim, ele sorria.

Levy tinha lhe dito sim, e aquilo bastava.

~

Naquela noite, Levy fugiu de casa – a primeira de muitas vezes – e, arrancando a informação necessária de Lucy, subiu até o sótão em que ele morava. A única luz ali vinha de uma lâmpada que pendia de um fio perto do sofá, piscando e falhando como se estivesse prestes a queimar de vez, e ela precisou ir tateando pelas sombras até encontrar o interruptor do quarto e ligar a luz.

Gajeel estava atirado ao longo da cama, vestindo apenas as calças jeans, e esfregou os olhos num gemido de dor quando a luz foi acesa. Levy. Ele a reconheceu mais pelo cheiro e pela pequena estatura do que pela visão, propriamente. Ela ajoelhou-se ao lado da cama, passando um braço por cima dele, e percebeu que Gajeel tinha um lábio partido. Levy tocou-o com um beijo e perguntou se estava doendo, ao que ele silenciou-a com um “shhh”, para então puxá-la para cima da cama consigo.

A garota aconchegou-se ao seu corpo e as molas velhas da cama rangeram.

— Eu sinto muito. – ela disse.

— Não é culpa sua.

— Você devia ter fugido.

— Sem a sua resposta? Nunca.

— Ah, Gajeel... – ela suspirou em tom de lamento. – Você sabe como será daqui pra frente.

Outra vez aquele “shhh”. Ele virou-se, colocando-se parcialmente sobre ela, e beijou-a lentamente. Levy sentiu na boca o gosto do sangue dele e um estremecimento percorreu-a quando ele tocou-a num joelho e subiu a mão ao longo de sua perna, erguendo nesse processo a saia que ela vestia. Ela deslizou as pontas dos dedos sobre os piercings que ele tinha, sobre os longos cabelos negros e pelos braços, onde fincou as unhas no momento em que Gajeel sussurrou-lhe ao ouvido.

— Por você, eu levaria uma surra por dia.

Levy riu baixinho e disse-lhe que não deixaria que aquilo acontecesse. Não mais. Gajeel dera-lhe um novo sentido para a vida, um sentido muito maior do que qualquer padrão, do que qualquer dinheiro, do que qualquer limite que seu pai pudesse impor. Agora, aquilo tudo parecia tão insignificante... Ela não era mais a filha rica do velho McGarden, a culta e refinada, a intelectual, mas a garota que podia pensar por si mesma e que não dava a mínima para todo aquele mundo de luxo.

O seu próprio mundo estava bem ali.

E Levy sentia que sempre havia pertencido a ele. Enfim, estava em casa.


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Notas finais do capítulo

E esse foi o último capítulo.
Se você leu até aqui, deixe um comentário. ♥
Até!



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