Limites escrita por Yokichan


Capítulo 1
I




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 Quando a viu pela primeira vez, Gajeel pensou que aquela garota era a coisa mais bonita em que ele já tinha posto os olhos. No começo daquela manhã, enquanto voltava do bar em que estivera tocando durante a noite a fim de juntar uns trocados, com a cabeça pesada de sono e os olhos em brasas, ele passou pela rua da universidade e parou o carro quando o sinal ficou vermelho. Sentindo o gorgolejar familiar da caminhonete, uma velha Chevy C10 de 1976, daquela cor de laranja meio apagada que só as coisas antigas possuem, ele esperou que os estudantes atravessassem a rua sobre a faixa de pedestres.

E deu-se conta, mais uma vez, de como sua vida sempre tinha sido radicalmente diferente da existência supérflua daqueles babacas engomadinhos e daquelas garotas cheias de sonhos estúpidos. Em algum tempo, eles se tornariam médicos, advogados, empresários ricos que não saberiam mais onde gastar seu dinheiro, enquanto ele continuaria sendo o cara que morava num sótão e que ganhava a vida fazendo bicos e tocando seu violão para gente que não prestava a mínima atenção nele.

Gajeel começou a perder a paciência porque o sinal não abria nunca e porque aqueles tolos continuavam arrastando-se pela faixa de pedestres como se lhes faltasse ânimo na vida, e foi assaltado pelo ímpeto de enfiar a mão na buzina. Contudo, mudou de ideia ao perceber que uma viatura da polícia estava parada na próxima esquina. Os documentos do carro estavam vencidos e ele não queria ter de lidar com aquilo agora.

Tudo o que ele queria era cair na cama e dormir.

Mas então Gajeel a viu, aquela garota de cabelos azuis e os óculos meio tortos no rosto, em completa desordem, passando apressada diante do capô quadrado da caminhonete, e não acreditou que se tratasse de mais uma universitária, porque ela era tudo o que as outras garotas jamais seriam – descabelada, vestida com roupas que não combinavam, mas que pareciam perfeitas para ela, agarrando desajeitadamente os cadernos e livros enquanto a bolsa estava prestes a cair do ombro, lutando contra o tempo.

Ele ergueu uma sobrancelha curiosa e ficou observando-a chegar até a outra calçada. E esbarrar em alguém para então deixar que tudo se espalhasse pelo chão. Gajeel nem mesmo foi capaz de rir daquilo, sentindo-se constrangido pelo caos que turbilhonava ao redor da garota. Como alguém que estudava numa universidade podia ser tão desastrada? Então ele encostou a caminhonete na beira da calçada oposta, quase estacionando sobre a faixa de pedestres – mobilizou toda a sua esperança no desejo sincero de que os policiais não vissem aquilo – e foi até a garota.

Ela tentava enfiar todos os livros dentro da bolsa com uma irritação desproporcional a alguém do seu tamanho quando Gajeel agachou-se diante dela e começou a juntar os lápis e canetas que haviam saltado de dentro do estojo. A garota encarou-o, primeiro pálida e depois vermelha como uma maçã do amor – porque ele só podia compará-la a coisas doces, aparentemente. Como se tivesse sido despertada por uma onda de choque, ela desviou o olhar para as suas coisas outra vez.

— Não precisa... Está tudo bem.

— É, eu estou vendo que está. – ele concordou com sarcasmo.

— Eu acordei atrasada hoje, então... Você sabe.

Gajeel entregou-lhe o estojo com os lápis, que ela rapidamente colocou dentro da bolsa, e pensou que aquela garota não parecia ser do tipo pontual, mas do tipo que perde a hora de sair da cama com bastante frequência e que atrapalha-se toda por conta disso. Além do mais, o suéter que ela usava estava tão amarrotado que ele não acreditou que ela o tivesse realmente escolhido para vestir. Era como se a garota tivesse se enfiado dentro da primeira roupa que encontrara antes de sair correndo para a rua – e ele achou aquilo bastante charmoso.

— Sei.

— Então... Obrigada.

Gajeel ficou ali observando-a se afastar naquela mesma pressa desajeitada até que ela desaparecesse pelo portão da universidade. Ele meneou a cabeça num sorriso incrédulo – que garota maluca tinha sido aquela? – e virou-se para dar o fora dali. Mas então percebeu que um dos lápis dela tinha sido esquecido junto ao meio-fio da calçada e pegou-o. A ponta do lápis tinha se partido com a queda e, na extremidade oposta, estava colada uma etiqueta adesiva com um nome escrito. Ele girou-o lentamente a fim de poder lê-lo.

Levy McGarden.

Ele riu apenas para si mesmo ao se dar conta de que, apesar de toda aquela atrapalhação, deixando as coisas caírem pelo caminho e esbarrando nas pessoas como se simplesmente não as visse, a garota ainda etiquetava os lápis como as crianças costumam fazer nos primeiros anos de escola.

Gajeel levou consigo o lápis sem ponta e voltou à caminhonete. Deu a partida na velha Chevy, fazendo-a roncar alto o suficiente para chamar a atenção indesejada dos dois policiais na viatura. Antes de sair dali, ele ainda olhou uma última vez para os portões da universidade, imaginando que talvez pudesse vê-la novamente – o que não aconteceu, de fato.

Então manobrou em direção à via e seguiu seu caminho.

~

Gajeel esquivou-se do problema tanto quanto pode. Dormiu, fez a barba, levou um tempo estranhamente longo para fritar os ovos e comê-los, varreu todas aquelas porcarias espalhadas pelo assoalho para a lata de lixo, colocou num saco plástico as roupas sujas que precisavam ser lavadas, estendeu a colcha da cama e afofou os travesseiros, fez abdominais e flexões no chão agora incrivelmente limpo, e estava prestes a esfregar o fogão com uma esponja cheia de espuma, coisa que nunca fizera, quando Natsu chegou.

O amigo espiou para dentro do sótão em que Gajeel morava, alugando-o por uma mixaria, e pensou que talvez tivesse errado a porta. Ao invés das latas vazias rolando pelo chão e das peças de roupas penduradas pelos cantos, Natsu deparou-se com um quarto arejado e limpo, rescendendo a sabão.

— Ei, cara. – Natsu foi entrando. – O que aconteceu aqui?

— Qual é o problema?

Gajeel jogou a esponja molhada dentro da pia, subitamente irritado e pressentindo o deboche do outro. Será que um homem não podia ser asseado de vez em quando sem perder a sua masculinidade? A contra gosto, observou o amigo sentando-se no sofá e dando palmadas no estofado que, dessa vez, não soprou nuvens de poeira para o alto.

— Nenhum. – Natsu olhou ao redor, surpreso. – Só achei... Estranho.

— Cale a boca. – grunhiu. – O que você quer?

— Então... – o amigo pigarreou. – Será que você pode emprestar seu carro no fim de semana?

— Meu carro? Emprestá-lo pra você?

Natsu recostou-se melhor no sofá e colocou os pés sobre o caixote de madeira que Gajeel usava como mesinha de centro. O lápis de Levy McGarden, que estava sobre ele, deslizou para o chão, emitindo um ruído fininho ao bater contra a madeira do assoalho. Gajeel precipitou-se para apanhar o lápis, mas estacou quando Natsu o fez primeiro. Sentindo uma espécie de borbulhar no estômago, ele observou o amigo a girar o lápis diante do rosto.

— Lucy quer ir a uma festa perto de... Ei! O que algo de Levy está fazendo aqui?

Gajeel apertou a boca com raiva. Entre as opções de fingir que não sabia do que o outro estava falando e de socar a cara de Natsu, acabou apenas tomando o lápis para si num movimento brusco. E escondendo-o no bolso de trás da calça jeans.

— O que você sabe sobre ela?

— Além de que ela é a melhor amiga de Lucy? – Natsu o olhava, meio confuso, meio incrédulo.

— Ah, é?

Silêncio.

— Ei, cara. Não se meta com essa garota. Seja lá o que você estiver pensando, não...

— Deixe de ser idiota. – Gajeel o interrompeu. – O que pensa que eu estou fazendo?

— Eu não faço a mínima ideia, mas escute o que eu estou te dizendo.

— Você só está dizendo coisas sem sentido.

Natsu tirou os calcanhares de cima do caixote e apoiou os cotovelos sobre os joelhos numa postura que tinha pretensões de parecer séria. Enquanto isso, Gajeel estava de pé junto da janela e fingia uma concentração que, de fato, não sentia, ao polir a madeira do violão com um trapo de pano.

— Sabe aquela casa que mais se parece com uma mansão e que tem arbustos redondos na frente?

— Sei. – Gajeel resmungou.

— É lá que ela mora.

— Você quer dizer que...

— E sabe o dono da construtora MG? Aquele velho de cabelo branco? É o pai dela, cara.

MG. McGarden. Fazia sentido.

Gajeel pensou que isso fazia daquela garota esquisita a segunda pessoa mais rica da cidade. A primeira, obviamente, era seu pai – o velho cretino que, certa vez, mandou que guinchassem sua caminhonete porque estava estacionada na frente da sede da construtora. Ele deixou o violão de lado, apoiado contra a parede, e olhou pela janela, para as casas de classe média enfileiradas do outro lado da rua. E compreendeu que agora tudo estava perdido.

Levy McGarden.

Ela realmente não se parecia como uma garota rica.

— Ela e a Lucy foram colegas em algumas disciplinas da univ...

— Ok, chega disso! – Gajeel atirou-lhe o trapo de pano. – Você fala demais.

— Mas e o carro?

— Que carro?

— O que você vai me emprestar. – Natsu sorriu.

Gajeel inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada que, se sua senhoria estivesse em casa, faria com que ela cutucasse o teto lá em baixo com o cabo de uma vassoura. Era uma velhinha que não suportava barulho, e, pelo preço irrisório que cobrava pelo aluguel do sótão, Gajeel decidira que não seria inteligente contrariá-la. Então contentava-se em movimentar-se tão silenciosamente como um gato.

— Você está me devendo cinquenta pratas e acha que vou te emprestar o meu carro!

 ~

Mesmo sabendo que a garota era um caso perdido, que nunca se interessaria por um nada como ele e que seu pai poderia esmagá-lo feito um inseto sob a sola de um sapato caro, mesmo compreendendo que pertenciam a mundos totalmente diferentes e que, entre eles, existia uma barreira intransponível, Gajeel não pôde evitar a vontade de vê-la outra vez. E enquanto esperava diante da universidade, escorado na lateral da caminhonete, ele pensou que sua vida estava tão ferrada que não poderia ficar pior.

Então ela saiu, atrapalhada como da outra vez, carregando uma bolsa que parecia pesada demais para ela, e parou com a boca meio aberta de espanto ao ver Gajeel do outro lado da rua. Aquele cara de longos cabelos negros, roupas surradas, coturnos de couro desbotado, um piercing atravessado no canto da sobrancelha e outros cravados em uma orelha, de braços cruzados e aquela expressão que, de algum modo, dizia tudo e nada ao mesmo tempo, olhando-a como se estivesse ali especialmente por ela. Como, de fato, estava.

Como a garota permaneceu fincada no mesmo lugar, Gajeel revirou os olhos e atravessou a rua até ela. Quando ficaram frente a frente, ela precisando erguer o rosto para fitá-lo, ele subitamente esqueceu-se do que tinha planejado dizer e pigarreou desconcertado.

— Você de novo. – ela disse, apertando um livro contra o peito.

— Bem, eu... – ele sorriu ao perceber o quanto estava sendo ridículo. – Eu estava passando e pensei em te convidar para conhecer um lugar na sexta à noite.

— Um lugar?

— É, um pub em que eu vou tocar.

Levy ficou em silêncio, olhando-o como se ainda não tivesse entendido.

— Natsu e Lucy vão estar lá. – ele mentiu. – Uns amigos meus. Talvez você a conheça.

— Ah, sim. Lucy. Nós somos amigas.

— Então. Você gostaria de ir?

— Eu não sei... – ela olhou para baixo, para os próprios pés. – Preciso perguntar ao meu pai.

— Claro.

Gajeel enfiou as mãos nos bolsos da calça e disse insultos a si mesmo, em pensamento, enquanto seu rosto esboçava uma tentativa embaraçada de sorriso. Apesar da pouca altura da garota e de seu porte delicado, os olhos dela pareciam ter uma força devastadora o suficiente para subjugá-lo.

Ela abriu o livro que tinha nas mãos e estendeu-o para Gajeel.

— Você pode anotar seu número aqui? Para que eu possa te avisar quando tiver uma resposta.

— Você tem uma caneta?

Levy enfiou a mão na bolsa e tirou de lá uma caneta. Quando entregou-a a ele, seus dedos se tocaram rapidamente e ela afastou a mão num movimento instintivo, como se algo a tivesse picado. A caneta caiu e, rindo dos pedidos de desculpas que ela despejou sobre ele numa avalanche, Gajeel a pegou e, por fim, rabiscou seu número de celular na capa de trás do livro.

Depois, enquanto ele se afastava em direção ao carro, ela agradeceu pelo convite.

Ele abriu a porta e olhou-a mais uma vez.

— Eu acho que você deveria ir. – ele disse.

Então ela sorriu e acenou do outro lado da rua, pensando que sim, que gostaria muito de ir ao tal pub e saber um pouco mais sobre aquele cara esquisito que a convidara para sair sem nem mesmo dizer-lhe o nome. Em casa, ela abriria o livro e, olhando para a série de números escritos numa caligrafia irregular, acharia graça de como tudo tinha acontecido.

Imprevisível.

Levy já tinha tomado sua decisão muito antes de ir falar com o pai.


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Notas finais do capítulo

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