Mar escrita por Mahii


Capítulo 1
Maré Baixa


Notas iniciais do capítulo

Olá, povo, já que estamos aqui vamos ler, né?
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742350/chapter/1

Eu podia sentir minhas costelas se espaçarem lentamente, indo para os lados e dando espaço aos pulmões, que se enchiam com o oxigênio. O ar úmido e fresco entrava no meu corpo num ritmo preguiçoso, carregado daquele perfume marítimo que parecia tão nostálgico. Sempre que eu vinha para a praia tinha a impressão de estar em um sonho muito realista, prestes a acordar. O vento forte que vinha do mar arrepiava a minha pele, fazendo os pelos finos do braço se levantarem e pequenos pontos esféricos se formarem na tes. Estava frio. Mesmo que o sol estivesse batendo diretamente na pele nua, não era o suficiente para ficar quente. A areia fina sob os meus pés também tinha a temperatura baixa, umidificada pelas gotas do mar que eram trazidas pelo vento.

Me joguei para trás, apoiando as costas diretamente na areia, sem me importar muito com onde aqueles grãos atrevidos poderiam ir parar. Provavelmente eu levaria dias para tirar todos do meu cabelo. Fazer o quê! Tem coisas que estão fora do nosso controle, não é como se eu pudesse controlar os grãos da areia.

Ouvi um grito, seguido de uma risada gostosa, de timbre levemente anasalado. Àquela altura ele já deveria ter alcançado a água e, pelo grito, deveria estar realmente gelada, como eu pensei. Me senti aliviado por não ter tido a mesma ideia que o Renato, ele sempre foi meio impulsivo, fazendo as coisas sem pensar muito.

À minha vista estava o céu, parcialmente coberto por nuvens brancas e suaves, tão claro que me fez logo fechar os olhos. Sorri ameno enquanto o ouvia reclamar da temperatura do mar e dar mais uma risada exagerada. Eu adorava o jeito como ele tinha bom humor e estava sempre sorrindo.

Sermos apenas nós dois naquela praia bonita... Aquilo me tranquilizava de tal forma que acabei cochilando, confiando que estaria seguro ali, na sua presença. Por mim, poderíamos ser apenas nós dois em todo o mundo, seria muito mais fácil.

—-...É impossível ficar lá dentro, Dandan! Ou eu vou acabar morrendo de hipotermia -- sua voz soou próxima e abri minhas pálpebras. O localizei bem acima de mim, tapando a luz que antes chegava ao meu rosto -- Eu já estava sentindo meus dedos ficando duros, à um passo da putrefação e amputação.

—- ...seus lábios... Estão roxos -- falei preguiçoso, esticando os braços acima da cabeça e me espreguiçando.

—- E as mãos também -- ele se sentou ao meu lado, mostrando os membros arroxeados -- O sol está tão quentinho! Ah! Aqui fora está bom! -- exclamou prazeroso, esticando a face para o astro.

—- Eu estou com frio -- sorri minimamente, sentindo uma vertigem me abater por ter espreguiçado.

—- Você 'tá sempre com frio, nunca vi alguém mais friorento que você -- falou cômico, deixando algumas gotas geladas escorrerem das suas mãos na minha barriga, de propósito.

—- Ei! Não faça isso! 'Tá muito gelado -- apenas levantei a cabeça, olhando onde havia caído.

—- Eu achei que fosse entrar na água comigo, você tirou a camiseta -- disse enquanto puxava desajeitado a bermuda encharcada, ficando apenas com a cueca.

—- Eu só queria ficar no sol, ia tentar me bronzear pro casamento -- sorri largo.

—- Impossível! O casamento é amanhã -- deu risada, se deitando ao meu lado.

—- É... Amanhã... -- falei nostálgico, tentando evitar pensar no tanto de coisa que iria mudar.

—- Nem dá pra acreditar, cara. Eu vou me casar -- falou calmo, virando o rosto na minha direção -- Eu vou me casar amanhã.

Senti seu olhar me rondando, mas apenas continuei a encarar o céu.

—- Eu também não acredito, achei que fosse acabar solteiro como eu -- disse devagar, me lembrando dos vários planos que tínhamos e agora já não existiam mais -- Todo mundo achava isso, e você já tinha até se conformado.

—- É, mas... Parece verdade quando dizem que 'quando você não 'tá procurando é que aparece'. Vai ficar bem, Danilo?

—- Por que essa pergunta só agora? -- dei uma pausa, apertando a areia entre os dedos dos pés -- Bom, lembra quando foi fazer intercâmbio por dois anos na Austrália? Eu fiquei bem daquela vez, né?

—- Mas seus pais ficaram muito preocupados, eles me ligavam toda hora. Sentiu minha falta? -- ele parecia emotivo, seu tom de voz ia ficando mais e mais baixo.

—- Sim, eu senti. Do meu jeito, mas senti -- forcei um sorriso -- Porque você é meu único amigo e... Ah, eu gosto de você Renato, sabe disso.

—- Nós... Não vamos nos afastar, certo? -- ele soltou um muxoxo insatisfeito -- Você nunca me responde no whatsapp, isso é uma droga.

—- Não é nada pessoal, você sabe que eu não respondo ninguém.

—- É, mas... Como a gente vai manter contato assim? -- ele virou o corpo todo de lado, parecendo incomodado com a nossa falta de contato visual -- Eu sei que já conversamos sobre isso, mas é que... Bom, amanhã eu vou viajar com a Carol para o Caribe e quando voltarmos vamos direto pra Florianópolis.

—- Eu sei disso, você me disse só umas cem mil vezes -- continuei a evitar seu olhar. Eu precisava disso pra me manter forte.

—- Eu sei que você sabe, mas a ficha só 'tá caindo agora -- ele passou a mão cheia de areia pelos cabelos, tirando os fios molhados da face -- E-Eu... Eu não sei quando vou te ver de novo.

—- Hum? Nós vamos... Esse tipo de coisa acontece quando as pessoas casam, inevitavelmente -- sorri amargo, o olhando por apenas alguns segundos e vendo seus olhos marejados -- Você já vai chorar?

—- Eu não quero que você fique sozinho, Dan -- riu nervoso.

—- Eu não ligo de estar sozinho. Já falamos sobre a minha necessidade quase nula de interação social, certo? Eu sou... Diferente dos outros.

—- Você tem certeza que vai ficar bem?

—- Sim. Tirando o tempo que passei com você, eu já estive a minha vida toda sozinho, não vai ter problema. Eu vou fazer companhia pra mim mesmo, gosto disso -- observei uma garça pousar mais a frente e foquei meu olhar nela.

—- Mas você também gosta da minha companhia, certo?

—- Sim. É bom ter você por perto. Mas eu só consigo conversar com você, e gostar de você, porque nos conhecemos desde pequenos, nossas mães nos criando grudados e tudo mais. Eu jamais vou conseguir formar um laço assim com outra pessoa, eu sei disso, e tudo bem. Você sabe por que 'tá tudo bem?

—- Você não quer, é por isso? -- ele sugeriu, sendo que já tínhamos conversado diversas vezes sobre aquilo.

—- Sim. Eu não quero falar com outras pessoas, apenas olhá-las de longe está bom, já te disse muitas vezes -- observei a garça voar, dando várias voltas acima de nós no ar.

—- Eu sou a sua "exceção" -- completou, desistindo de disputar minha atenção com o céu ou o pássaro e se jogando deitado ao meu lado -- Mas, Dandan... Se eu não estiver aqui, você não vai conversar com ninguém? Nunca mais?

—- Não -- fiz um bico nos lábios, pensando que se não fosse ele, não seria ninguém. Os outros humanos nunca me interessaram.

—- A Carol disse que... Ela disse que talvez no futuro nós podemos morar aqui em São Paulo -- deu uma pausa longa -- A gente está se casando aqui porque vamos morar perto da família dela, mas... É uma possibilidade.

—- Hum... -- meditei naquilo, chegando rapidamente a conclusão de que mesmo que ele morasse aqui perto, não seria mais a mesma coisa -- Vocês vão fazer uma vida lá. Renato, você já arrumou emprego por lá e vocês até compraram uma casa! Não faça isso.

—- "Isso"?

—- Mudar de volta pra São Paulo, não devia pensar nisso -- fechei os olhos lentamente.

—- Você vai mesmo ficar bem? -- senti sua sombra sobre mim, tapando a luz do sol.

—- Claro -- sorri amargo, pensando no quanto ele parecia egoísta falando assim. É claro que eu ia ficar bem, não nasci grudado com ele, eu sabia me virar muito bem.

Mas, "ficar bem" não quer fizer que eu vá ficar "feliz". Eu não vou ficar nada feliz, a nuvem de tristeza e melancolia apenas parece me engolir ao passar das horas, tão perto daquele casamento. O que ele precisava ouvir, porém, não era isso, não era a verdade. Para ele ficar em paz com a própria consciência, eu devia falar "vou ficar bem", é assim que têm funcionado.

Um silêncio pairou entre nós. Até mesmo o vento que sempre soa forte, quando estamos de frente para o mar, parou. Agora era apenas uma brisa suave e inaudível, fazia o som do nada, do vazio, do nulo... Era bom que eu me acostumasse com aquele som dali pra frente. Era tão... Agradável. E eu podia ouvir meus pensamentos com muita clareza. Tinha seu lado positivo, não tinha?

A sombra acima de mim não desapareceu, entretanto. Ele teria ficado esse tempo todo olhando pra mim?

Em alguns minutos, abri meus olhos e constatei que me observava. Com aqueles olhos grandes e de cílios retos compridos, que sempre faziam aquela sombra suave no rosto.

—- O que foi?

—- Eu não sei, quero olhar pra você o máximo possível antes de viajar amanhã -- ele sorriu de lado, se mantendo sentado.

—- Eventualmente... Vai esquecer o meu rosto -- falei sério, querendo soar apenas sincero -- E eu vou esquecer o seu. Seremos apenas como um borrão cheio de sentimentos subjetivos e misteriosos.

—- Não diga isso, Danilo! Que horror -- ele empurrou meu ombro suavemente -- Quer parar com isso?! Não vamos deixar de nos ver. Florianópolis não é tão longe!

—- Ok... Se você está dizendo -- dei de ombros, me controlando para não acreditar em mais nada do que ele dizia.

—- Hoje à noite vão me levar para uma espécie de despedida de solteiro -- parecia querer mudar de assunto.

—- Eu sei. Você já me disse isso.

—- É que eu nunca sei quando 'tá me escutando. Às vezes você finge -- fez uma pausa dramática antes de continuar -- Vai vir comigo na 'despedida'?

—- Eu não! Estou fora. Não gosto de lugares cheios. E além do mais, nem conheço as pessoas que vão, não tem como eu fazer isso, só vou me chatear -- revirei os olhos, achando que ele já sabia muito bem disso e mesmo assim perguntou.

—- Eu supûs, mas... Só se faz isso uma vez na vida, então imaginei que... Sei lá. Eu queria que você estivesse lá comigo -- entortou os lábios.

—- Eu vou estar no casamento, isso não está bom? Eu sei que sou seu padrinho, mas... Desculpe, eu acho que não deveria ter me escolhido, eu não pude fazer nada por você -- desviei o olhar, pensando que eu também não tinha a mínima vontade de ir no casamento, mas iria.

—- Tudo bem, você fez. Do seu jeito, nas suas limitações, mas fez. Certo? Você é meu melhor amigo, tinha que ser você -- sorriu.

—- Renato, -- me coloquei sentado, para olhá-lo com atenção naquele momento -- Você ama a Carol tanto assim?

—- Quê? -- ele pareceu surpreso.

—- Eu perguntei se a ama tanto assim, à ponto de querer passar o resto da vida ao lado dela -- eu nunca havia me atrevido a perguntar aquilo antes. Eu queria mesmo era ter perguntando se ele a amava mais do que a mim. "Você a ama tanto assim, tanto a ponto de sacrificar nossa amizade e nossos planos?"

—- Bom, sim. Eu a conheço tem apenas um ano e meio, mas... Eu sempre soube que seria ela. Eu quero isso mais do que tudo -- falou com bom humor, com um sorrisão no rosto, parecia completamente apaixonado.

Isso era uma droga.

Será que ele havia esquecido que prometeu a mesma coisa pra mim muito antes de conhecê-la?! Era impossível que tivesse esquecido. Desde que eu me lembro, ele disse que não dava muita sorte com ninguém e provavelmente acabaria solteiro. Então, como eu não gosto muito de seres humanos e pretendia nunca casar, o Renato disse que iríamos morar juntos em um apartamento no centro e viver como solteiros até o fim das nossas vidas. Juntos. Porque ele disse que assim teríamos "um ao outro" e não estaríamos "sozinhos" nunca. Nós sempre falamos sobre isso, eram nossos planos de vida, estávamos até guardando o dinheiro para isso e... Ele havia esquecido? Ele sequer pediu desculpas ou tocou nesse assunto de novo. A Carol... Eu realmente odeio a Carol.

—- Em quê 'tá pensando? Fez uma careta esquisita agora -- ele tocou entre as minhas sobrancelhas, onde devia ter alguma ruga.

—- Estou com frio, devíamos voltar -- nem esperei uma resposta, apenas me coloquei de pé e comecei a vestir a camiseta.

—- Ei, mas já? Não devemos ter ficado aqui mais que meia-hora! -- me acompanhou, se levantando -- Sabe que, se voltarmos pro hotel agora, o pessoal vai me assediar e... Provavelmente não vamos ter tempo de conversar.

—- Eu 'tô com frio -- insisti.

—- Eu 'tô todo molhado e só de cueca e não 'tô com frio -- ele ergueu os braços, parecendo orgulhoso daquilo.

—- Você nunca tem frio, é impossível competir com você -- abracei meu próprio corpo.

—- Aqui, toma a minha camiseta -- ele colocou o pano seco por cima dos meus ombros, como um cobertor -- Vamos ficar até o pôr-do-sol pelo menos. Estamos no inverno, não deve demorar muito.

—- Hum... -- me virei para o lado onde o sol se esconderia e vi que começava a ficar alaranjado. Me sentei novamente na areia.

—- Você se lembra do ano retrasado? Quando viemos pra praia com nossas famílias? -- ele foi atrevido, voltando a se deitar e apoiando a cabeça nas minhas pernas. Teria batido nele, mas naquele momento, eu permiti.

"Talvez seja a última vez que poderemos estar próximos assim."

—- Ano retrasado? Sim, eu lembro. foi a última vez que viemos juntos -- completei em cabeça o motivo de ter sido a última: No ano seguinte, ele já estava com a Carol e ao invés de convidar a minha família, convidaram a dela.

—- Dandan, sempre que estou na praia com você... Parece que estou sonhando.

—- Já disse isso antes.

—- Eu sei. É que, antes, eu achava que a praia tinha algum poder especial, me fazendo sentir assim. Mas no ano passado, quando eu vim com a Carol nas férias, eu não senti nada disso. Só acontece quando estou com você -- me encarou de baixo para cima, sorrindo calmo.

—- Ah... -- entortei os lábios.

—- Deve ser porque nesses mais de 20 anos, em todas as férias de dezembro, temos vindo juntos pra praia, com nossos pais -- fechou seus olhos, parecendo aproveitar o sol que batia no rosto -- E então, quando estamos aqui, dá essa sensação nostálgica, de d'javu, de estarmos sonhando.

—- Pode ser -- aproveitei que ele não via para observar o rosto à minha frente.

O Renato não era a pessoa mais perfeita do mundo mas, para mim, que o conhecia, parecia perfeito. Aquele rosto representava todas as qualidades dele, a personalidade maravilhosa e o modo de pensar tão empático e compreensivo.

—- Foi por isso que decidi me casar na praia, porque é importante pra mim, esse lugar -- virou o rosto de lado e visualizou o mar, com as ondas quebrando e se aproximando cada vez mais de onde estávamos -- E você 'tá aqui, eu não consigo acreditar que vou me casar, parece que estou sonhando. Talvez a ficha vá demorar pra cair.

—- Talvez -- sorri triste, pensando que a 'minha ficha' já havia caído há muito tempo, desde que ele chegou num dia qualquer falando o nome de uma 'tal Carol'.

—- Você vai comigo até o aeroporto? É domingo à noite, depois do casamento aqui de manhã -- bocejou.

—- Eu sei qual é o horário, já te ouvi falar disso muitas vezes -- toquei uma mecha dos cabelos castanhos compridos, deviam bater quase no ombro -- Vai fazer um coque com isso?

—- Provavelmente. Vai ter uma moça pra me arrumar e ela disse que vão prender, porque fica mais elegante -- franziu as sobrancelhas em dúvida -- Eu só não sei se vou fazer a barba ou deixar assim. Está em cima da hora, mas ainda não decidi.

—- A Carol não disse nada?

—- Ele disse que posso fazer o que achar melhor -- esticou uma das mãos, tocando meu queixo, parecendo analisar a pele lisinha -- O que você prefere?

—- Você sabe que eu prefiro seu rosto sem barba -- toquei o dele também, puxando os fios compridos da face.

—- Então eu vou fazê-la, hoje de noite, antes de dormir. Vai ser em sua homenagem, ok?

—- Hum... Ok -- sorri de lado, feliz por ouvir aquilo.

Outro período de silêncio.

Se falássemos mais do que aquilo, se tornaria uma conversa triste.

Ninguém deveria romper o silêncio.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Oie, chegou até aqui?
Eu acho que essa história não é para qualquer um ler, não é todo mundo que vai gostar, mas é adorável. Eu gosto dessa ideia, de contar apenas um relato, uma parte da vida de alguém.
O que acharam? Conseguiram pegar tudo? O ar melancólico realmente existiu? Sobre o Dandan, o entenderem? E a amizade deles é a melhor coisa ♥
Não se esqueçam de comentar! E até o próximo.
^3^ Kisus~~