Cartas para Timóteo escrita por LC


Capítulo 1
A Geada




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************ Eu não existo.

                Estou há vinte anos preso em um corpo que não me pertence. Que não vive. Que sequer se vê ao espelho. Que se veste – que se anima – que sorri – que é controlado por algo que não conhece – que corre todos os dias por um emprego – por um trabalho – por um amor:

Dia desses, em uma noite estonteantemente fria e escura, com nuvens branquíssimas ao céu e pequenos morcegos voando, senti uma presença tocar meu coração. Não – não se trata de um infarto fulminante ou algo relacionado à falta de saúde corporal, muito pelo contrário – eu senti a presença de Deus em meu coração.

Não digo a presença de Deus em um sentido obliquo da palavra – como se tivesse me convertido à uma religião altamente restrita e que me coibisse e me livrasse de todo mal amém, cito a presença de Deus como algo milenar – amoroso e puramente espiritual.

Não – este não é mais um livro religioso sobre um rapaz desprezível que da noite para o dia resolve mudar de vida e julgar tudo aquilo que já vivenciou. Um ato hipócrita? Talvez, mas quem já não nadou na hipocrisia um dia?! Quem nunca nadou na hipocrisia ardente do amor ou mergulhou de cabeça no mar hipócrita da rouquidão?! A rouquidão de querer falar e não poder – de gritar ao máximo que consegue e sequer ser ouvido, a rouquidão de não existir.

De existir?

Eu não existo! Faço parte dos incertos, dos projetados e dos não concluídos: excluídos, jogados e esquecidos em uma gaveta qualquer em um quarto bagunçado de algum artista veemente alucinado em sua própria genialidade.

Eu sabia o que acontecia em mim, eu sentia minha incerteza e tinha certeza dela. Sentia minha falta de pudor, minha alma arrebentada – partida e jamais curada, o meu coração vazio – sem ação, sem motor e sem uma direção. Eu sabia exatamente o que eu era, mas não me pertencia, não me desejava, não me sentia.

O toque de Deus em meu coração me acalmou, me afagou e trouxe tudo aquilo que eu precisara ao cômodo, com uma revelação maternal de todos os sentimentos escondidos e presos em meu profundo âmago, de um ódio tão límpido e doce que me embriagava com o desejo de matar e sentir, de amar e viver. Deus havia despertado em meu coração os meus desejos mais obscuros e eu não suportava-os, transbordava-os por todos os lados e eles me viravam ao avesso, mostrando-me minha própria face jamais vista.

Eu estava a procura – a procura de entender – de dar – de distribuir o que vivi à alguém, à um desconhecido, à um amante, à um amigo, à qualquer pessoa que cruze meu caminho. Só não quero permanecer com aquilo que vivi, com aquilo que possuo e que me prende, me cruza e me suga, a minha desorganização profunda invisível que necessita de uma lapidação honesta de humildade relacional. Eu precisara de mim e, muito mais que isso, precisara de mim a dar aos outros, sem a necessidade de um retorno íntimo.

Eu precisara me conhecer, me sentir e pela primeira vez, me olhar. Eu não precisava de espelhos ou fotografias para me ver – eu não queria ver meu corpo puramente físico e com aparência esdrúxula e negável a maioria das pessoas: eu queria ver minha alma, já tão abatida, que supunha que não existe, que já se foi. Mas não, ela está alí, viva como nunca e presente como sempre, tornando-me não só um ser sobrevivente, mas pensante e sentimental.

A minha alma já não era mais a mesma de cinco anos atrás – quando uma criança leve eu era. A minha alma carecia de amor, de carinho, de certezas e de conclusões: ela fugia de mim o tempo todo e, egoísta, eu a puxara com a força de um tambor e a prendia na fazenda verde da mouquidão – do desejo de tê-la, mesmo que ela não servisse para nada, a não ser para o prazer de tê-la.

Eu precisara de um amor e precisara urgentemente – numa magnitude estratégica, jamais vista e jamais realizada por mim. Eu precisara alimentar minha alma com flores e mais decepções. Eu precisara me decepcionar com urgência pois só assim eu me sentiria vivo novamente, só assim eu poderia sentir minha alma.

Eu precisara sentir dor, sentir conforto, sentir prazer, sentir desprezo.

Eu só precisara sentir.


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