Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 6
Resistência


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

— Seu imbecil! Seu grandíssimo de um imbecil! Sua pilha fedida de ignorância e imbecilidade!

— Luana, já chega.

A sensação de ser humilhado, depois de alguns segundos de violência, passa a ser reconfortante. Você não tem que se preocupar com a sua integridade moral e seu ego, eles já se foram. Não se preocupe com o que suas decisões futuras vão acarretar! Tudo já se reduziu a nada.

Contudo, a sensação de ser xingado, enquanto uma maca corre sustentando o seu corpo dolorido.... isso foi completamente novo para mim. Imagino que para você seja infinitamente mais.

Lá estava eu: o manto rasgado, as vísceras se contorcendo como se possuíssem vida própria, a sensação de refluxo constante... e o cansaço... ah, o cansaço era tanto que o simples ato de acordar me foi como se cada molécula de oxigênio houvesse se convertido em uma navalha.

Eu tentei decifrar as imagens borradas acima de mim. Ouvi a voz de Luana e logo em seguida a de Manibus... mas que lugar era aquele? Que iluminação intensa era aquela, que não permitia que eu enxergasse coisa alguma? Que tipo de piso era aquele, que fazia as rodas da maca tropeçarem constantemente, me causando dolorosas pontadas na coluna? De quem era a outra voz que ansiava por calma, mas cuja própria pressa denunciava ansiedade?

Eu não pude ignorar uma estranha fragrância no ar, como se aquele corredor e aquelas imagens se transformassem num abraço.... feminino. O abraço de Luana, talvez?

Mas isso não foi o bastante para me confortar. Uma curva abrupta me privou dos devaneios, e logo eu estava dentro de um lugar fechado — senti isso pelo clima, ligeiramente mais sufocante e claustrofóbico.

— Não, me deixe entrar — ouvi o protesto de Luana ser novamente reprimido por Manibus, que com a sua voz estatual, conseguiu induzi-la a ficar do lado de fora. Vi-me convencido de que eu estava num hospital ou enfermaria. O perfume que antes eu senti pelo corredor se transformava, pouco a pouco, num cheiro acre de formol.

— Vamos lá — a voz da mulher ecoou em minha cabeça. Aliás, eu não diria mulher... era uma voz bastante jovial, talvez mais aguda que a de Luana — o que houve com o Vince?

...com o Vince? Ela também me conhece?

— Ele foi atacado; perfurado na barriga por um deles.

— Isso é mal — ela levantou o meu manto, para ter uma melhor perspectiva da minha ferida. Aparentemente, não desconfiavam que eu estivesse acordado... aliás, eu estava completamente acordado? Creio que não; meus olhos sequer se moviam. Eu estava apenas parcialmente cônscio do que estava acontecendo ali.

— Encontramos ele e o verme no bosque. Estava com as garras cravadas em sua barriga, gargalhando. Não sei por quanto tempo.

— O suficiente para que ele sobrevivesse — eu não sabia o que ela estava fazendo comigo, mas eu sentia a presença de um tecido sobre meu abdômen, que expunha apenas a parte mais dolorosa e sensível do meu ferimento. Um líquido ardente foi despejado sobre mim, e senti-o transigir em meu interior — ele podia ter sido eviscerado, mas está tudo no lugar aqui. Aliás...

— Não. Eu derrotei o verme antes disso.

Silêncio. Vou supor que a moça olhou atônita para Bernardo, diante da informação.

— Não foi tão difícil. Já enfrentei piores. Ele se dissipou com minha magia, ainda com Vince em mãos, só que ele não foi atingido. Talvez eu pudesse ter sido mais rápido...

— Está sendo modesto; fez o que pôde — ela respondeu, e embora isso não lhe seja relevante, vou supor que estava sorrindo. — Agora, vou começar.

— Quer que eu saia?

— Não... você, não. O ritual não admite adversidades espirituais dentro do recinto. Porém, você é limpo, professor. Pode ficar.

Ritual? Quando penso que a loucura já acabou...

Então, ouvi a mulher proferir palavras que não me significavam nada... um outro idioma, uma estranha mistura de, talvez, islandês, russo... francês? A cada fonema, se tornava mais indistinguível, só que uma coisa era certa: se tratava de uma oração, uma prece. Aquilo fazia efeito. 

Senti uma enorme ardência, quase que insuportável, em minha ferida, como se minha barriga se contorcesse numa espiral. Ouvi sons, como uma enorme hélice rasgando o ar, e um grito... ah, sim, o meu grito. Comecei a me debater diante daquilo, o que Bernardo se precipitou contra mim, forçando meus ombros contra a maca.

— Ele está acordando!

A entonação da voz da moça mudou, ainda em oração, como se dissesse assentisse, com rigidez. Eu vi que o local estava submerso numa forte luz azulada, que provinha de um símbolo que ela tinha em mãos. Este não tinha uma forma que eu pudesse definir; a luz fazia com que fosse uma mancha.

E a dor continuava, apesar de sentir que minha barriga estava se fechando. Estava, de fato! Minhas vísceras dançavam e lutavam contra o ritual, se debatendo para fora de mim, e logo em seguida se regenerando. Elas estão no lugar, ela disse? Pois elas estavam quase que mutiladas. O lobo me fizera um enorme estrago.

— Fica tranquilo, Vince — tentava me tranquilizar o professor — ela sabe o que faz. Ela cuida de você faz anos.

— E-eu... n-nem sei...

E sua voz voltou a ficar mais rígida, como se dissesse silêncio.

Obedeci. Esperei, mordendo os lábios, agarrando os lençóis, dilatando minhas veias. A dor se tornava mais branda... mais branda.... até que virasse apenas um reles incômodo, e sono... e sono...

II

Uma dúvida me toma neste momento. Por acaso... você tem sonhos?

A dúvida é estranha e inconveniente. Sei que você quer apenas que a minha história se desenvolva..., mas como eu já disse, o seu silêncio me incomoda e dá aval aos meus devaneios. E como você poderia aproveitar todos os detalhes da história, se não entender a mente de seu interlocutor?

(Engraçada essa minha colocação. Para que eu fosse seu interlocutor, deveria haver um diálogo... coisa que não há entre nós. Eu temo que nunca haja, por mais que... por mais que eu aprecie sua companhia, de certa forma. Enfim, já que não ouço suas reclamações, devo prosseguir.)

Sonhos são pequenos escapismos que nossa subconsciência oferece; os meus são raros, lúcidos e imersivos. Quando sonho, estou ciente disso e não quero acordar, e quando acordo, é sempre como nascer de novo, sair do conforto do útero de sua progenitora e se preparar para a vida cruel que lhe espera.

Costumo sonhar com meu pai. Sim, com meu pai — com as poucas coisas que lembro dele, e não são de todo agradáveis. Das memórias que existem em minha mente, a maioria está relacionada aos pequenos traumas que vivi.

Em todos os sonhos, ele me ensinava algo.

A primeira lição do meu pai:

— Você não é páreo para mim — ele dizia, bem próximo ao meu ouvido, minha face pressionada contra as sombras que constituíam todo o horizonte — você talvez derrote seus professores. Seus amigos. Inimigos. Mas seu pai sempre será mais forte.

Então, ele segurava minha cabeça e pressionava contra o chão. Era macio, praticamente um lençol..., mas algo doía em mim. Eu sentia meu nariz ser esmagado contra meu crânio e minha face se tornar a mesma coisa disforme.

— Talvez você conquiste coisinha ou outra. Contudo, perante a mim, será sempre um fracasso. E isso vai te torturar até o dia de sua morte.

Seu nome era Vicente. Não obstante, ele me purgou com o próprio nome... para que eu nunca me esquecesse dele. Agora as coisas estão mais claras, não é?

Parando para pensar, agora as coisas realmente fazem mais sentido. Em todos os sonhos, eu tento em vão acertar-lhe com minhas chamas e esferas flamejantes. Eu só não sabia que era de fato capaz de reproduzi-las. Ele sempre desvia... é ágil, incrivelmente mais forte que eu, e seu corpo é um vulto. Quanto a sua face, é sempre algo hediondo, algo que me faz acordar de sobressalto. O suficiente para me afastar de qualquer amor paterno que poderia residir em mim.

Depois de um tempo com minha cara enterrada no chão, ele enfim me puxa de volta através dos meus cabelos. O ar em contato com as feridas em meu rosto faz com que eu sinta falta do chão. Lentamente (nos meus sonhos, tudo é lento), enquanto gargalha, ele redireciona meu rosto em direção ao dele, e aos poucos sinto seu hálito putrefato... a cada sonho, o cheiro de carne podre em seu bafo é pior.

Eu começo a achar aquelas gargalhadas bastante familiares.

Quando sou obrigado a olhar para cima, vejo que no lugar de sua cabeça, há o crânio ensanguentado de um lobo.

III

— Ah, olha aí a bela adormecida!

A voz de Luana fez com que eu acordasse de vez. Espere... o quê? Aquela na minha frente não era Luana. Luana não tinha a pele escura, não tinha cabelos lilases. Aquela era uma figura ainda mais excêntrica. Pendurado em seu pescoço havia um colar com algum estranho símbolo... o mesmo que eu vi na operação e/ou ritual que acabara de presenciar. Aliás...

— Você está dormindo faz quase um dia — ela disse, o que me foi um calafrio — vamos, fala alguma coisa, preciso saber se a operação deu certo.

— Que.… horas são? — Foi tudo que consegui dizer. Não sentia dor nenhuma, exceto um pequeno formigamento na região abdominal.

— São... quase... seis... da... tarde — ela se desatou a rir — você sempre fala tudo pausado assim? Quem foi que te alfabetizou?

Creio que ruborizei. Não estava habituado àquele tipo de comportamento, fora o humor negro de Jeong. Tentei me levantar e, curiosamente conseguindo, me vi mais rejuvenescido e desperto que antes.

— O que você fez? — Não resisti a tentação de perguntar.

— É um segredo — ela respondeu com uma piscadela — mas se precisar de mim, eu estou sempre aqui. Só não vai se jogar no primeiro lobo que aparecer.

Lobo, a palavra me fez estremecer, e provocou outra dúvida, irrompida dos meus lábios:

— Que lugar é esse?

— Ah... isso... — Ela olhou para mim por um tempo com a face paralisada. Não consegui manter o contato visual por tempo suficiente. Quando resolvi olhar para o restante da sala, ela se levantou, e abriu as cortinas, o que causou um desconforto latente em meus olhos.

Ela pediu para que eu me aproximasse. Com a luz do sol poente, pude ver melhor os detalhes do seu rosto: sua face era maltratada pelas olheiras, é verdade, mas fora isso, era bonita, com lábios voluptuosos e olhos amendoados, com íris escuras, a misturar-se com as pupilas.

— Para de me olhar com essa cara de besta. Vem ver!

E assim o fiz, ainda um pouco trêmulo, não de dor, mas de nervosismo. Por trás das grades, eu vi algo que parecia o pátio de uma escola. Se pareceria muito com Sempiternum, se aquele lugar não fosse... anárquico. Os alunos estavam espalhados, em grupos, e curiosamente, todos eles usavam mantas negras tais como meu uniforme, mas sem nenhum símbolo. As árvores retorcidas que vi no bosque outrora, existiam em menor quantidade naquele pátio, e, no entanto, eram enormes.

Vários grupos de alunos se reuniam em piqueniques rudimentares. Muitos deles comemoravam, mas o quê? Estavam distantes, mal conseguia ouvir..., mas as garrafas (contendo, provavelmente, bebidas ilícitas) eram coloridas e muito bem visíveis. De repente, ouço um sino bater, e a festividade vai gradativamente se encerrando, até que todos se recolham as suas coisas e vão deixando, como várias formigas, o pátio, e tomando caminhos diversos.

Então, a moça ao meu lado apertou meu ombro, chamando minha atenção, para logo em seguida apontar algo. Uma placa de pedra, no centro do pátio, cerceado por grama, que era cerceada por uma cerca pétrea. A placa estava próxima e era grande o bastante para que eu visse o que estava escrito, por mais que boa parte do seu conteúdo estivesse soterrado:

Instituto Resistência. ...

IV

Quando pensei em pedir permissão para sair daquela sala, vi Jeong e Luana entrarem, e se surpreenderem ao me ver de pé, frente a janela.

— Vince! — Luana tentou me abraçar, mas eu, receoso, me afastei, tropeçando ridiculamente e caindo sentado na cama — desculpe... eu sei que as coisas estão confusas, mas...

— Que lugar é esse? — Interrompi — isso aqui tudo... é uma escola também?

— Olha! — Ironizou a mulher dos cabelos lilases — o Einstein faz muitas perguntas. Tenham paciência.

Eu teria sido muito grosseiro, se Jeong, com sua calma, não tivesse intervindo.

— É uma escola, sim. Ou costumava ser. Agora é um...

— Uma resistência — disse Luanna.

— Ao quê?

— A isso daqui, Tesla — sem tirar aquele sorriso irritante da face, a moça cutucou minha barriga, que ainda estava enfaixada — você não ouviu minha conversa com seu professor? Nos protegemos dos vermes. Dos demônios. Dos...

— Var’croz. Eles se intitulam Var’croz. — Jeong disse, enquanto eu cruzava os braços — são extraterrestres que invadiram nosso mundo há anos. Eles conseguiram... escravizar a população. O mundo inteiro. Nós somos os poucos que restaram... uma verdadeira resistência.

Cada palavra me era um calafrio. Mas não! Eu não podia acreditar em nada daquilo. Bufei, simulando ceticismo, e em seguida:

— Isso inclui o lobo, certo?

— Sim. O lobo é um deles. Antes que pergunte... ele estava cativo. É o único Var’croz que conseguimos capturar. Ele estava preso naquela árvore através de uma barreira mágica... liberamos para que você lutasse contra ele.

— Por que fizeram isso?

— Para você despertar o seu poder! — Luana já estava irritadiça. Aquela mesma dor de cabeça que me acometera estava de volta. Aquele estanho cubo mágico à minha frente estava voltando a se embaralhar. — Pensei que você fosse mais esperto, Vince!  

— Não decepcione seus amigos, Vincezinho. Vai acabar matando todo mundo intoxicado com essas suas perguntas.

— Vá se foder.

Silêncio, como era de se esperar. As coisas estavam solvendo-se ao invés de se esclarecerem. Apesar da presença do lobo, invasão extraterrestre ainda era algo que não me soava verossímil. Mas, como você deve imaginar, caro amigo, minha resistência era mais medo do que verdadeira desconfiança. Já te adianto: estávamos de fato sendo invadidos.

— Limpe essa sua boca antes que a arranque do seu rosto — a moça disse, com abrupta seriedade, e seu semblante era análogo ao que tinha se tornado no proceder do ritual — eu preciso que saia daqui. Tenho que limpar essa sujeira que você fez.

— Desculpe por isso, Ivre — pela primeira vez ouvi o nome da curandeira, pela boca de Luana, que junto com Jeong saía da sala, os semblantes decepcionados.

Olhei para a cama em que eu estava sentado, e vi que uma mancha de sangue tomava conta de toda sua extensão. Pensei em pedir desculpas, mas o clima não estava propício.

Antes de sair, dei uma última olhadela pelo vidro da janela.

Um aluno encapuzado estava mais próximo que todos os outros. Antes, ele parecia estar só de passagem... mas, não, se aproximava. Fixei nele meu olhar, curioso com seus movimentos.

Meu corpo ficou frio quando ele se voltou para mim. Estava olhando nos meus olhos, e sorria.

Suas mãos foram até o próprio rosto. Usava luvas, sabe-se lá porquê... aliás, sabe-se sim: seus dedos faziam uma espécie de careta em sua face, puxando suas bochechas... e puxavam, puxavam, puxavam... até que sua face inteira fosse arrancada. Uma máscara.

Conforme o aluno caminhava, eu via por trás do seu capuz um focinho canino sorridente e cadavérico a sumir do meu campo de visão.


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Notas finais do capítulo

Comentem suas impressões, e até o próximo capítulo. Arrivederci!



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