Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 4
Déjà vu


Notas iniciais do capítulo

Bem, acabou saindo um pouco mais tarde do que planejava. Mas, antes tarde do que nunca.
Boa leitura!



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I

Diante dos mais excêntricos acontecimentos em nossas vidas, tendemos a nos agarrar à tênue possibilidade de que tudo não passou de um grande sonho. Por comparação, a realidade em si se torna apenas um lado da moeda de um jogo de cara ou coroa. Apesar de sabermos disso, omitimos: ambos os lados da moeda são idênticos, no final das contas.

Foi exatamente esse fenômeno que ocorreu quando eu acordei num quarto tão estranho quanto às minhas memórias de tudo que tinha acontecido até então. Minha cabeça doía, por dentro e por fora, e eu me lembrava perfeitamente do porquê. Creio que você também se lembra.

Levantei-me de súbito. Era uma cama macia, e apesar disso, eu não me sentia confortável. O resto do lugar não possuía, para mim, nenhuma familiaridade. Eu estava cercado por quatro paredes mal rebocadas; ao meu lado, uma basta janela com cortinas avermelhadas deixava passar um fio de luz – e creio que eu estava alucinando, pois a luz aparentava uma tonalidade lilás que não podia de forma alguma ser natural. Uma escrivaninha desorganizada encontrava-se logo abaixo dessa janela. Um líquido mal cheiroso fizera uma mancha em toda sua extensão, em materiais de estudo, com minha agenda inclusa.

Sobressaltei-me novamente ao me deparar com aquilo, e fui em direção à mesa, tomando para mim o livreto. Estava intacto.  Por último, fitei a parede à minha frente, e nada mais vi além de escrituras feitas com giz, símbolos algébricos ou não, que nada me indicavam. Quando tentei fitá-la por muito tempo, senti minha cabeça latejar fortemente, e eu caí na cama, baqueado, como que ouvindo uma interferência de sinal fortíssima.

Ainda agonizando pela sensação, cambaleei até a porta, e tencionando abri-la, percebi que estava trancada. Surrei-a com todas as minhas forças, pedindo para que alguém do outro lado a abrisse, no que ouvi um farfalho muito familiar:

— Ele acordou — era a voz de Jeong — O que vamos fazer?

Quem respondeu foi Luana.

— Como assim? Nós sabemos o que fazer. Nós vamos abrir a porta agora, e...

— E...? — O tom de voz do meu colega de quarto começou a se agravar — vamos ser francos de uma vez por todas! Nós não fazíamos ideia de que iríamos chegar à esse ponto. A ideia do lobo estava fadada ao fracasso.

— Para com isso, você me interrompeu! Eu sei o que ia dizer. Eu ia dizer que... que... que a gente deve apresentar o lugar a ele! Explicar toda a situação!

Demoraram tudo isso para chegar a essa conclusão?

— Vocês podiam começar por me tirar desse lugar sujo e me dizer onde eu estou — eu disse, tentando parecer o mais brando possível. Obviamente, não fui muito bem sucedido, e ainda assim, apesar de não terem dito nada, abriram a porta.

— Desculpa — a primeira a falar foi Luana — imaginamos que se deixássemos destrancada, você podia acabar saindo por conta própria. Isso seria muito problemático.

Já lhe aviso, querido confidente, que tudo o que fiz a seguir foi motivado não pela mais engenhosa razão, qual sempre priorizei, mas sim, por um ímpeto que estava, há muito, acumulado em minha alma. Sequer olhei para a garota, mas sim, avancei diretamente em Jeong: agarrei seu manto e empurrei seu corpo contra a parede inúmeras vezes. Provavelmente, uma veia saltava na minha testa, e meus olhos eram duas esferas assombradas com uma diminuta pupila em um mar infindável de branquidão. As palavras que eu proferia fariam mais sentido se estivessem saindo da boca de um cão raivoso, mas para bom entendedor, se fizeram compreender com facilidade:

— Você está armando contra mim — balbuciei enquanto sentia suas costas baterem contra a parede — você desenhou aquela porra daquele lobo e vocês dois me enganaram — mesmo que Luana estivesse gritando para que eu parasse, eu continuei. Não só isso, como também forcei seu corpo contra o solo. Estava por cima, puxando seus cabelos e tentando bater sua cabeça contra o chão — foda-se seu sonho com lobos, Jeong! Você sabe que eu não podia sair daquela merda daquela escola, e mesmo assim, armou para que isso acontecesse! Agora eu... eu...

II

Sinto muito, caro amigo, mas o que aconteceu em seguida está além da minha memória. Acontece de vez em quando — lapsos e mais lapsos às vezes constituem dias inteiros de memória abandonada.

A próxima coisa da qual me lembro é que eu estava sentado no chão de uma pequena sala, e ao nosso lado, uma lareira remanescia apagada. Luana me induzia a respirar fundo, e a cada expirar, eu me desculpava pelo que tinha feito com Jeong, que estava mais vermelho que um pimentão, e escondia alguma coisa em sua face com algum tecido qualquer.

Estávamos — Luana dizia — em uma dimensão distinta, acessada através de um portal, que para o povo comum, era um reles viaduto. Eles podiam passar reto por aquele lugar sem perceber nada estranho, mas as pessoas mais sensitivas, e com o conhecimento necessário para tal, poderiam acessar esse mundo novo; e também, se tivessem para isso algum motivo. Disse também que quanto menos eu pensasse sobre, melhor. Algumas coisas não possuíam, ainda, explicação plausível, e se tivessem, seria alguma bem difícil de engolir. E de fato, tardei a engolir tudo aquilo.

— Sei que tudo isso parece muito... — Disse ela, tentando remendar sua explicação — absurdo ainda, eu entendo. Mas existe um bom motivo para você estar aqui. 

Interrompendo meu exercício de respiração, exclamei:

— E qual seria ele? Que motivo vocês teriam para acabar de ferrar meu tratamento? Sabe quão grave é o que vocês estão fazendo?

— Vince — conforme eu falava, a cabeça de Luana abaixava lentamente. Jeong estava calado, cabisbaixo, como que arrependido. — Te dar alguma resposta, por ora, seria possível, mas igualmente danoso. A sua mente é... ou melhor, está frágil. Você pode entrar em colapso, e não queremos isso. Precisamos de você intacto, e é por isso que deve confiar na gente.

Respirei fundo por uma última vez, e me levantei. Apesar do incômodo que a estranheza do lugar me provocava — a começar pela iluminação arroxeada partindo da janela — eu começava a me sentir quase que confortado. Era uma espécie de casarão, muito parecido com os dormitórios de Sempiternum, porém, cercado por vegetação grosseira. Olhando pela janela, eu pude supor que estava amanhecendo, e se as palavras de Luana não bastavam para crer que eu não estava na Terra, a vegetação do local exercia essa função: o tronco das árvores tinham desenhos abstratos, ainda que simétricos, retorcidos, com seivas que não eram puramente esverdeadas ou esbranquiçadas. As cores variavam como se o âmago das árvores possuísse algum tipo de tinta artificial, brilhante. A grama, os cogumelos, as flores, tudo era absurdo em questão de cor e tamanho.
Mas minha mente, dolorida e confusa, não queria acreditar em nada daquilo.

— Por que eu estou aqui? — Perguntei abruptamente.

— Você não deveria ter saído daqui. Nós vamos te reintegrar quando for possível, o que vai ser breve. Eu e Jeong resolvemos chamar o Manibus. Ele vai poder te explicar tudo melhor.

A coisa só piorou. Bernardo Manibus era nosso professor de ética (disciplina obrigatória para todos os cursos). Além de ser o professor mais novo, era próximo, no sentido de realmente cultivar uma amizade, da maior parte dos alunos. Era o único docente que conseguiria me arrancar algumas palavras, ainda que não estivéssemos numa prova oral. Mas qual era seu envolvimento naquilo tudo? Resolvi não perguntar: cedo ou tarde eu iria descobrir.

III

O professor apareceu no horizonte enquanto eu assistia à janela pacientemente. Os outros dois se levantaram e se fixaram ao meu lado, fitando Bernardo enquanto ele chegava. Quando sua silhueta desapareceu de nosso campo de visão, Jeong se precipitou em atendê-lo na porta, que estava não trancada, mas barrada. Não precisei perguntar para saber que, aquele lugar aos pedaços, não tinha sequer uma sala com uma porta decente.

Manibus era um rapaz não muito alto. Vestia um sobretudo, calças sociais e uma camisa branca com o símbolo de Sempiternum quase oculto. Sua barba era sempre por fazer, e seus cabelos nunca estavam abaixo ou passavam de seu pescoço.

— Olá, Vince. É um prazer te ver por aqui — sua voz era tão suave, apesar da firmeza, que eu quase amoleci. Mas a dúvida era grande, e ainda me provocava pulsações raivosas.

— O que o senhor tem a ver com tudo isso? – Disse, de pronto.

Ele olhou para os dois, com um misto de decepção e ira, mas ambos os sentimentos muito sutis. Nada no rosto de Manibus era verdadeiramente expressivo ou exagerado.

— Eu recomendo — disse ele, brando — que você tenha toda a paciência e confiança que ainda lhe restam. Você sabe que eu nunca lhe faria nenhum mal.

— Luana me atacou. Depois disso, eu não duvido de muita coisa.

O mesmo olhar recaiu sobre a garota, que se mantinha cabisbaixa, como que envergonhada.

— Tudo isso se fez necessário. Eu consigo compreender completamente sua confusão, Vince. Todos conseguimos, e justamente por isso estamos trabalhando para te libertar. Te trouxemos, pois você é realmente importante para esse lugar, mas peço que mantenha a calma e não tenha medo. Somente nós três sabemos desse plano.

Plano. Eles estavam planejando isso há quanto tempo?

— Retire esse olhar da sua face, homem. Eu sei que você esperava por algo assim. Está vendo esse lugar? Esse é seu lugar. Quantas coisas no seu passado não são nebulosas? O quanto você sabe sobre si mesmo? Sobre sua família? Uma hora ou outra, as coisas iriam começar a ressurgir, e você deveria estar preparado para isso.

— Eu deveria? — Eu ouvia minha própria voz baqueada, trêmula, mas insisti em — eu não esperava por nada disso, se quer saber. A cada dia, eu tento me afastar do passado que eu não conheço. Eu não quero me lembrar de nada, ora!

— Não quer? — Ele se aproximava de mim, o que repelia meu corpo quase que instantaneamente, contudo ele continuou avançando, e chegou ao ponto de sua proximidade me causar a centelha de um pânico — existem pessoas que querem menos que você. Querem que você continue esquecendo. Continue... entorpecido.

Entorpecido. Quem ele pensa que é? Como que buscando abrigo, olhei para Luana e Jeong, e seus olhares nada indicavam. Eu me sentia sozinho com aquele professor audacioso.

— Isso. Olhe para eles. Eles se importam contigo. São os únicos que estão se arriscando para te libertar, e você prefere se refugiar em sua ignorância, em seu estratagema de cárcere de que tanto se orgulha — eu senti suas mãos puxarem meu colarinho para cima, mas a minha cabeça demorava a processar qualquer coisa. Talvez meu rosto estivesse inundado de lágrimas. Talvez eu estivesse me contorcendo em caretas de dúvida e pane, e ele continuava lá, implacável.

— Nós vamos sair daqui, Vince. Nós vamos sair desse lugar claustrofóbico que você chama de rotina. Esse lugar, sem você, está fadado à obliteração. Você vai voltar a correr, homem. E é melhor que prefira vir com a gente.

Me soltou, por fim. E depois, me teve completamente amedrontado, mas não só por isso me manipulou: ele havia, com aquela incisão, atingido uma parte da minha mente que antes estava adormecida. Eu não sei, ainda, como chamar essa parte, nem como ela se parece exatamente... mas não fosse por ela, as coisas não teriam sido tão complicadas dali pra frente.

IV

Não tardou que estivéssemos os quatro numa estrada de paralelepípedos que atravessava o bosque e se projetava numa ponte acima de um rio. Conforme o sol ascendia, a luz ficava menos arroxeada e mais próxima ao que eu estava acostumado a ver. Talvez a coloração diferenciada fosse realmente mera ilusão.

— Isso chega a ser nostálgico. Os três, assim, juntos — disse Bernardo, com um humor que eu não sei bem de onde surgiu, mas que aos poucos contagiava Luana e Jeong. Ele fazia questão que eu ficasse ao seu lado, sabendo que minha tendência era ficar para trás.

— Para onde vamos? — Perguntei, com genuíno interesse.

— Você vai ver uma coisa bastante familiar, Vince — e como que mudando de assunto: — as árvores ao seu redor não lhe dão nenhum conforto? Esses sons não lhe são de todo agradáveis?

E dói-me confessar que eram, de fato. Apesar de tão abjeta, a natureza daquele lugar era reconfortante. A trilha parecia abraçar-nos conforme andávamos por ela, e mesmo as árvores com seus desenhos retorcidos carregavam uma espécie de simpatia. Era quase um refúgio. Sempiternum também me dava essa impressão, mas em contrapartida, o colégio estava repleto de armadilhas: grupos de pessoas conversando, exaltadas, aos risos; olhares maldosos ou simplesmente curiosos, e conversas que, direcionadas a mim ou não, ainda me incomodavam. Eu estava sempre nos lugares mais reclusos e fechados, me refugiando do engodo da exposição. Porém, aquele bosque... ah, amigo, é difícil explicar. Eu, aos poucos, me tranquilizava, e passava a querer agradecer àquelas pessoas por terem me trazido, mas lhe adianto que esse sentimento durou pouco.

— Eu não sei — Jeong se aproximou, desculpando-se, a voz baixa e fraca — se você ainda está muito bravo comigo, mas... espero que saiba que não foi minha intenção te confundir. É que...

— Não tem problema — cortei-o — eu que devo... me desculpar — e foi o suficiente.

Chegou um ponto do trajeto em que abandonamos a trilha e adentramos a mata, até chegarmos numa clareira. Em seu centro havia uma árvore anciã, e a imagem desta me causou a mesma dor que as escrituras, no início deste relato, me causaram.

Caro confidente, sabe do que se trata um dejavù? A sensação de que as imagens na sua frente já foram vistas de forma idêntica pelo menos uma vez no passado. As mesmas sensações, os mesmos pensamentos. Sentir isso daquela forma, ali, me foi ainda mais estranho, pois se tratava de outro mundo! Eu não queria me aproximar, mas meus passos me forçavam para tal. A simples memória começou a surgir, como uma besta feroz expondo seu focinho à luz solar.

Interrompi meu andar. Estávamos indo em direção àquela árvore, e eu sabia que não éramos a única alma viva ali. Perguntei, num tom débil que confessava o fator retórico da dúvida:

— Por que um lobo? Por que logo... um lobo?

Eles silenciaram completamente. Luana aproximou-se, segurando meus ombros, o que nada alterou meu semblante.

— Você se lembra de alguma coisa agora, né?

Sim, eu me lembrava. Eu meneei a cabeça e ela quase engasgou de satisfação, mas disfarçando, disse logo em seguida:

— Olhe para Jeong agora — ele, que estava ouvindo e observando tudo, tirou o pano de sua face. E lá estava: uma queimadura. Fresca, com gotículas de água pelo gelo que o tecido envolvia. Foi triste entender o que tinha ocasionado aquilo... ou melhor, quem tinha ocasionado. Eu assenti. Meu colega de quarto sorriu, tristemente, guardando o pano agora inutilizado. Prosseguimos o caminho, até chegar à árvore, cujas raízes eram tão bastas que projetavam uma espécie de concavidade no chão, e tudo dentro desta era escuro, invisível.

Até que uma focinheira branca como osso se pôs para fora do buraco, e aos poucos, o lobo, ganindo, saía de lá de dentro.

Merda. Merda. Merda. Merda...

Como que tentando me certificar de que tudo aquilo não era um sonho, tateei meu corpo, e lá encontrei o objeto quadrado e voluptuoso: minha agenda estava intacta embaixo do manto.

O canino, grande feito um cavalo e negro como a noite, estava mancando em sua pata traseira, e, contudo, aquele brilho avermelhado em seu olhar me causou um instinto de ameaça latente. Eu senti como se minhas veias ardessem. Essa ardência começou a ferver meu sangue, viajar pelo meu corpo, até que alcançassem os pulsos... as mãos, que ardiam como nunca antes. 

Eu nunca me senti tão... em casa. Eu nunca me senti tão bem.

Quando olhei para meu próprio corpo, vi que minhas mãos — e apenas elas — estavam em chamas.


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Notas finais do capítulo

E ai, o que acharam? O capítulo foi um pouco maior, espero que isso não tenha pesado ao leitor. De qualquer forma, comentem suas impressões.

Até o próximo capítulo. Arrivederci!



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