Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 14
Sofismas


Notas iniciais do capítulo

Perdão pela demora, e boa leitura!



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“Tal como cada coisa se apresenta para mim,
assim ela é para mim;
tal como ela se apresenta para você,
assim ela é para você. ”

— Protágoras

I

Dos meus dedos quase curados à minha cabeça latejante, tudo vibra. Não é uma dor pujante, mas um impulso que me motiva a continuar caminhando. Parar, neste instante, significa render-se. Render-se, agora, é matar-se. A morte até pouco tempo não me significava muita coisa, mas, agora, Ela surge com força, vinda do mesmo modo que nasceu, no perecer do primeiro organismo vivo: implacável, grotesca e invencível.

Peripatético, vi que caminhar, mesmo que fugidio e com o corpo roçando em vegetação, fazia a mente se acalmar, e foi caminhando que tive meu primeiro diálogo com a Morte.

— Você está mudado, garoto — provocou — toda vez que me aproximava do conforto do seu quarto, podia ter certeza que, quando eu lhe encontrasse de novo, aceitaria minha visita de bom grado. Me enganei! Aí está você, correndo sem saber aonde!

— Não seja estúpida — disse, ofegante — correr da morte é tudo que nós fazemos.

— Não há ninguém se fazendo de estúpido aqui, senão o meu querido Vince. Neste mundo, ninguém se importa menos comigo do que você. Em alguns momentos, chegou a me desejar!

— E você nunca veio. Mas está aqui agora... quando eu não pedi sua presença.

— Poucas pessoas realmente querem a minha presença, mas você sim. Você já me trouxe ao mundo diversas vezes, e não se lembra disso.

Engoli seco diante da declaração, mas independentemente do que aquela figura representava, eu não ficaria abatido.

— Você não é de fato relevante — disse, tentando me impor diante da situação — Você só não é.

Só que nada mudou em sua expressão cínica e risonha.

— Eu consigo sentir sua agitação e sei que ela nada tem a ver com sua caminhada. Você é temente a mim o tempo todo. Não porque tem medo de morrer, mas pelo poder da morte ao seu redor. Veja!

Foi quando eu comecei a sentir pequenos flocos negros caírem sobre meu corpo. As folhas caíam e secavam em pleno ar; os troncos das árvores ficavam cada vez mais retorcidos, fracos, até que toda a floresta parecesse um punho cerrando-se.

O cheiro acre da flora logo era substituído por um bolor de natureza morta, e conquanto esse cheiro se apossava das minhas narinas, uma solidão tomava a minha mente... não só ela, como a cruel sensação de estar exposto.

— Agora você não tem onde se esconder, não é? É isso que te incomoda de verdade. Não é a solidão em si, mas o vazio a sua volta.

— Não — pestanejei, gaguejante — desista, eu não vou acreditar em você.

— Não se trata de acreditar. Eu existo e estou aqui! Não, não, Vicente. Não se mente para alguém como eu.

Arremessei a esfera flamejante contra a Morte, de forma que nem o vi se diluir no ar. Nada ouvi; nada, senão um riso petulante e amargo.

— Por quê? Eu não sou as criaturas que você tem matado. Eu sou bem maior que isso...

— Você não é nada! Não é nada! Não representa nada para mim!

Se meu corpo, até então, era gelo seco, logo meu âmago se torna chama pura. Até minha saliva estava esquentando, fazendo com que eu ofegasse, até não sentir mais nenhum órgão de meu corpo. Em verdade, não sentia nada... apenas um sentimento difuso em minha mente.

Medo. Que me assolava dentro e fora da floresta; no conhecido e no desconhecido. Na saúde e na doença. Contudo, era verdade... por que eu temia aquela entidade? Por que não me entregar de braços abertos a ela?

— Você sabe que eu não sou assim tão importante.

A morte significa algo para nós? Se quando ela existe, nós não existimos... e quando existimos, ela não pode existir. A não ser que...

— A não ser que haja algo depois?

Como podemos ter certeza?

— Vá para o inferno com as certezas!

Quando senti suas mãos frias tocarem meu rosto, o calor foi logo expulso do meu corpo. Não porque eu morria; mas porque as chamas foram expelidas de minha boca.

II

A indiferença imperava tão logo a minha mente era posta contra a parede pela dúvida. Desde que me vi atraído por Rebeca, minha única estratégia foi agir como se nada estivesse acontecendo. A caixa onde residia o desejo pouco a pouco se esvaziava, e nada mais a preenchia. A psiquiatra deve ter notado o torpor que se estabelecera em meus olhos.

— Farei uma pergunta um pouco retórica agora — anunciou — você está bem?

Abaixei um pouco o olhar, e algo como um sorriso surgiu em meus lábios.

— Está tudo bem. É só que...

Estava planejando me desfazer da mentira que contei, através de uma derradeira. O mal dos farsantes é estar preso num ciclo vicioso — a solução para o seu mal é sempre ele próprio. Se ele fala a verdade, se enfraquece, então, precisa continuar mentindo, mentindo, mentindo...

— A garota. Ela está namorando.

Eu esperei — e creio que você também esperaria — complacência em seu olhar. Porém, permaneceu o mesmo, impassível.

— Vince — ajeitou-se na cadeira, enquanto desprendia e prendia novamente o cabelo — é importante que você não minta para mim.

O sangue começou a correr mais rápido. Gaguejei, em vão, que não estava mentindo.

— Eu não vou te julgar por isso, apesar de isso complicar nossa relação.

Nossa relação. Eu entendo o que ela quis dizer, mas o termo carregava um duplo sentido que minha mente não conseguiu se desafixar.

— Desde o começo, eu achei estranho o que me contou, omitindo a existência dessa sua amiga... agora você quer se livrar da história mentindo para mim de novo. Como falei, não vou te julgar nem te punir por isso, mas... as coisas ficariam muito melhores entre a gente se você falasse de fato o que está acontecendo.

Imagine que eu já estava em prantos. Não conseguia falar nada... minha mente apenas suplicava perdão. O erro acometia meus braços, minhas pernas, e tudo tremia, apesar da indiferença ter estado lá, latente, em algum reservatório do meu ser, e mesmo titubeante, minha voz carregava parte dela.

— Você tem razão... eu menti. Me desculpe. Me perdoe, por favor. Eu não sei como pude ter inventado... eu não sei como pude pensar que...

— Eu não estou brava com você, não me entenda mal, é só que...

— Não sei como pude dar a entender que existe algo como “amor”.

Dessa vez, aconteceu o que previ: o olhar de Rebeca ficou incrédulo. Ela se limitou a esperar o desenvolvimento do que eu havia dito.

— Às vezes, eu quero me aventurar nessas ilusões. Pode não parecer, mas..., mas eu escuto as pessoas, e... E por vezes... eu gostaria de não escutar. Só que, outras vezes... é fascinante como que tudo que as diverte é ilusório. É frágil. Quer dizer... as pessoas... elas veem o amor como uma espécie de jogo. Eu percebi isso.

— Um jogo...

— Não tem nada de errado... eu acho... em enxergar o amor como um jogo. É apenas uma maneira de... de ver a coisa. O problema, é que... quando vira uma espécie de jogo de azar, sabe? Quando você... por exemplo... se relaciona com alguém, comete um erro... e, de repente, não só perde a pessoa, como também a credibilidade com todas as outras. Porque sua falha, não foi só uma falha... ela foi um deslize dentro do jogo. E, é óbvio, as pessoas vão comentar. Isso ficará incrustado na sua imagem... para... sempre.

Ao passo que a incredulidade passava a abandonar os olhos de Rebeca, eu perdia o ar. Nunca tinha me prolongado tanto, mesmo diante dela; em verdade que lutava para defender meu ponto de vista, o que seria assaz importante naquele momento.

Vejo-a desviar o olhar.

— Não creio que você saiba tanto sobre amor, se nunca experimentou a sensação, Vince.

— Eu... eu só... só digo isso baseado nas coisas que ouço.

— Ouvir não é o bastante. Se criar imagens tão fixas das coisas que ouve, baseada em preconceitos seus, sempre viverá na mentira. Como sua orientadora, eu preciso te indicar os melhores caminhos para lidar com seus problemas e ter uma vida usual... só que, quando você me apresenta opiniões tão fortes..., eu vejo que está se tornando impenetrável.

Meus olhos são atraídos pela janela, num esforço pífio de espantar as lágrimas que se acumulavam no canto do meu olho.

— Não, Vince, eu não quis dizer que...

— Se a minha imagem é assim, tão equivocada... me diga, o que é amor para você?

Ouvi um riso nervoso.

— Isso não é sobre mim, Vince. E, mesmo que fosse, não quero, de forma alguma, te influenciar.

Só que ela já influenciava, e mesmo não sabendo disso, passou a se deparar com um Vince inerte, impassível, ligado no piloto automático, apenas reagindo aos seus conselhos, e dizendo o que fosse relevante, mas nunca de fato revelador.

— Só vamos esquecer isso tudo, certo?

Ela disse isso, mas eu sabia que não esqueceríamos — muito embora esquecer fosse meu esporte de maior maestria. Tudo estaria anotado, tanto em seu laptop, quanto em minhas paranoias.

III

Acordei com o corpo frio e exasperado, e minha garganta continha a memória do ardor do fogo trespassando-a. Nunca havia feito isso... ou havia? Não confie em suas memórias, idiota. Mais importante que isso: onde estou?

Meu tato fugazmente percebe que estou numa superfície dura. A contradição me incomoda, afinal, ainda sinto o cheiro da floresta... que deveria ter sido expurgada instantes atrás.

Quando tenho coragem de abrir os olhos, vejo um losango vermelho e amarelo que se multiplica conforme meus olhos deslizam. É um... pano?

— Bom dia, Vicente Filho — era a voz da Morte, que forçou meu corpo a se prostrar, sentado, frente ao que parecia ser uma mesa, cravada no centro de uma clareira. Um banquete a céu aberto.... muito embora ele estivesse nublado.

Eu e Morte não estávamos sozinhos. Pelo menos mais três pessoas lá estavam, ocupando parte dos assentos. Faltavam, no entanto, mais duas pessoas, conquanto ninguém ali parecia se importar com isso; e quanto aos presentes: todos eles, senão a Morte, tampavam a cabeça com lenços negros com escrituras em branco... em grego.

— O que... é isso?

A clareira era cercada por árvores altas, cujos desenhos em seus troncos eram marcados por seivas multicolores e brilhantes, contrastando com o céu escuro e com as folhas das árvores cujos tons eram de um verde morto muito próximo do azul. Aquela flora abjeta me dava náuseas e agravava a vertigem que me assolara.

— Sirva-se, Vince — disse um dos mascarados, cujos dizeres em sua faixa eram: σόϕισμα — vamos ter muito o que conversar. É bom hidratar a garganta.

— Sim — reiterara uma voz jovial; os dizeres eram: αγάπη — temos todo o tempo do mundo, pequeno mago.

Não, não temos. Eu estou em fuga. A não ser que nada disso seja real, o tempo está fluindo cá fora, mas a fome era ainda maior que a racionalidade desses pensamentos. O cheiro dos biscoitos e do café era um convite tentador, minhas mãos tremiam e a boca salivava.

— Não seja tímido — disse a Morte — temos muita comida aqui.

— O que isso significa? — Percebo que minha voz está rouca e cada fonema sai dolorosamente.

— Nós só queremos conversar — disse a voz jovial — você parece estar com muitas dúvidas.

— É verdade, mas eu... eu não posso garantir que vocês são reais.

A terceira pessoa nada dizia; era o único naquela mesa a bebericar uma xícara de chá, cujo odor era acre e assaz desagradável. A voz anciã estalou a língua em desaprovação.

— Você está há tanto tempo tateando o que é real e o que não é, que não percebe que essa não é a pergunta a ser feita. Tem certeza que devemos perder nosso tempo? — Ele direcionava a pergunta à Morte, que se limitou a rir, sem emoção.

— Por que nós não seríamos reais, mago?

A pergunta parecia simples, mas me surpreendi quando não consegui formular a resposta. A voz jovem insistiu para que eu comesse. Levei minha mão a um pedaço cortado de bolo de cenoura, e comi-o, com desconfiança. Estava bom, tanto em sabor quanto em textura. Não demorei a comer mais outro pedaço, para depois empurrar os remanescentes com uma golada de café preto.

— Certo, agora vamos lá. Por que nós não somos reais?

— Não adianta — queixou-se a voz anciã.

— A realidade é uma mera conveniência, mago. Para a maior parte das pessoas, a realidade é uma coisa só... e se você não adotar essa mesma realidade comum, te chamam de louco... de lunático...

A voz jovial começara a ficar mais emocionada, como se tivesse tocado em um ponto nevrálgico.

— E se busca incansavelmente por essa realidade definida e sólida — continuava o ancião — vai sempre cair em perdição. É o que tem acontecido. Por que não aceita a realidade que se mostrar mais prazerosa? A realidade que lhe traz mais perguntas? A realidade mais... literária?

— Porque não é assim que as coisas funcionam! Não importa o que digam, a verdade é só uma...

— Verdade! Você fala tanto em verdade! Tudo é verdade, nada é verdade... a verdade é uma palavra inútil, Vince! Acabou a verdade!

— Eu já discordo — o jovem reiterou — a verdade existe! Ela está nos nossos prazeres! O que chamamos de verdade, que seria oposta às nossas sensações, é uma mera abstração, por isso confunde-se... mago, estão dizendo para você se privar dos seus desejos. Ora, por que não os manda à merda? Eles dizem que está entorpecido, alienado..., mas estás bem, não está? Estás confortável! Então, qual o problema?

Sabia que estava se referindo a Manibus e companhia. Não possuía objeções àquele argumento, ao passo que sentia que estavam querendo levar-me a algum lugar. Me influenciar... ao quê?

— Você consegue nos tocar — disse a voz anciã, enquanto estendia a sua mão até o meu pulso — consegue nos ouvir... nos ver.… por que não seríamos reais, então?! E aqueles que não conseguem nos ver, sentir, tocar... não somos reais para eles! Mas uma coisa, veja, não anula a outra. Somos reais para você, e irreais para outrem.

— Quantas coisas você não desconhece? Quantas coisas são subservientes na sombra da inexistência, simplesmente por que não surgiram para você? E só existirão pela sua vontade, pelo seu desejo de conhecer. O que não for visto, não existe... e temos o infinito poder de fechar os olhos! Nós coordenamos aquilo que existe e não existe, aos olhos da nossa alma! Não vê quão belo é isso?!

O homem da voz jovial levantava-se, teatral, enquanto proferia os dizeres. Seu corpo esguio produzia gestos e mais gestos, ignorando o pedaço de bolo comido pela metade em seu prato.

Ficamos em silêncio depois daquela pequena apresentação, até a Morte depois de muito tempo levantar a sua voz.

— Agora, vamos ao prato principal! — É verdade, tinha voltado a ficar com fome. No meio da mesa extenua, havia uma redoma de ferro, que foi retirada pelas mãos da Morte. E o prato principal...

Era uma esfera de luz branca.

Antes que eu pudesse perguntar alguma coisa, ouvi uma, que partia da pessoa que bebia chá. Os dizeres da sua faixa: λόγος.

— Eu queria — disse, inexpressiva, enquanto pegava a esfera com a mão — que começássemos logo.

O quê? Já não começamos? Em verdade, ele não tocava na esfera, mas a manipulava com o calor de sua mão, como que magnetizada.

— Você sempre é apressadinho!

— Fiquei em silêncio durante muito tempo, deixando vocês falando baboseiras. É uma pena que eu tenha que dar a voz para sujeitos tão risíveis.

— Você é mesmo muito estranho, tomando esse chá esquisito.

— É um chá necessário ao meu corpo. De fato, não é agradável ao paladar, e nem me faz mais feliz..., mas eu sei que meu corpo continuará vivo durante muito tempo enquanto consumi-lo. Assim é a Verdade. O bolo que comeis é saboroso, mas deteriora o corpo pouco a pouco, enquanto a boca deleita seu sabor. Por isso, quando negam a Verdade, adaptando-a para o que acham que é mais agradável ou deleitoso, estão exterminando vossas mentes lentamente, tornando-a um organismo inerte, pútrido e frágil, respondendo apenas aos estímulos mais primários, que, como dizeis, é o principal atestado da Verdade. Em verdade vos digo: os sentidos são um estorvo a descoberta da Verdade... pois, ela está muito além deles.

Aquela voz era um barítono desagradável. Muito embora sua erudição fosse maior, era deprimente e amarga, como um discurso de funeral.

— Você fala, fala, fala... e ainda assim, não me convence a deixar de seguir o caminho dos prazeres!

— Não estou aqui para convencer ninguém — redarguiu — cada um sabe o que é melhor para si. Estou apenas expondo o desdém que sinto pela estupidez que, a mim, é tão ou mais malcheirosa que o chá que tomo.

O clima começou a ficar mais rarefeito. Olhei para Morte, vendo se não haveria nenhuma intervenção, e sua face estava apática.

— Ora! Você é muito grosseiro. Nem sei porque ainda te convidamos.

— Porque sou necessário. E por falar nisso, é hora de começarmos, finalmente. Vicente.

Cada parte do meu corpo se agita quando ouço aquela voz proferir meu nome. Assistindo aquela discussão, me sentia um mero espectador, como que minha presença fosse tão importante quanto as folhas secas que vez ou outra caíam sobre a mesa, mas minha evocação fez com que eu me lembrasse que eu estava ali, me desesperando de pronto, pois sabia que o tempo estava passando, e eu precisava continuar fugindo.

— Espero que considere o que cada um de nós falou. Ninguém dirá quem está certo ou não.

— O... quê?

— Não se trata do que é verdade ou não, nisso eles acertaram. Se trata de que pergunta fazer. Por isso, você tem direito a cinco perguntas. Elas só podem ser respondidas com Sim ou Não. No primeiro caso, a esfera brilhará em verde; caso contrário, em vermelho.

— Por que estão fazendo isso?

— Está valendo a partir de agora. Escolha bem suas perguntas.

IV

É isso que se ganha quando se busca incessantemente a verdade? Talvez. É um problema: buscamos respostas o tempo todo, mas propostas como essa incomodam. Sim ou não são insuficientes para noventa por cento de nossas dúvidas mais primárias. Era uma armadilha: aquilo não me traria nenhuma resposta de fato, porém, não considerei essa variável; por isso, amigo, não me insulte ao continuar ouvindo meu relato... tampouco se irrite.

V

— Esse não é um jogo de xadrez! Apenas pergunte alguma coisa, não fique queimando seus neurônios em vão.

— Eu não sei o que vocês estão tramando... eu não sei o que vocês querem. E se.… se for uma armadilha?

— Só podemos responder com sim ou não — disse o estranho, detrás da esfera implacável — suposições não serão respondidas.

— Por que está fazendo isso?!

— Isso não pode ser respondido idem.

Eu vi minhas mãos agarrarem o pano que cobria a mesa, puxando-o e derrubando todo o seu conteúdo na terra; no entanto, a esfera de luz continuava lá, flutuando acima da mesa de madeira.

— Eu não preciso fazer isso — e muito embora não tivesse certeza, comecei a correr. A perna doía; já havia andado demais. Quando adquiri uma distância considerável, me espantei ao ver que a mesa continuava ao meu lado, junto a esfera e as pessoas.

Ela se movia junto a mim, e as extremidades da clareira eram inatingíveis.

— Por que estão fazendo isso?

— Perguntas iniciadas em...

— Já entendi! Já entendi.

Voltei a me sentar, e, cabisbaixo, passei a tentar formular alguma pergunta, e para minha surpresa, algo dentro de mim se iluminou. Havia uma pergunta que era decisiva, e que, talvez, colocaria fim naquilo tudo.

— Vocês são reais?

A esfera brilhou em verde.

— Você tem mais quatro perguntas.

— Ah, não... vocês estão brincando comigo, não estão?

A esfera brilhou em vermelho. Espero que já não esteja irritado comigo.

— Não! Eu não quis perguntar... foi uma maneira de...

— Você tem mais três perguntas.

Lágrimas de frustração começaram a escorrer pelo caminho árido do meu rosto, fazendo um rio entre a sujeira — só assim percebi o quanto estava imundo. Percebi que olhar para baixo e olhar para frente era a mesma coisa: todos estavam mascarados, não havia olhares que pudessem me condenar; eu pensei, de começo, que as máscaras seriam um jogo sujo... eram uma ajuda.

Bastante conveniente, aliás. Eu não aguentaria mais pressão. As dúvidas do meu passado de repente emergiram, superlotando o vazio que jazia cá dentro — e eu precisava escolher apenas três! As perguntas formavam uma centrífuga; tudo começava a girar ao redor de mim. Eu não sabia mais o que perguntar... só sabia que, se perguntasse, eu poderia sair dali. Pergunte qualquer coisa! Você me diria..., mas algo em mim ia contra essa atitude.

Foi quando perguntei, finalmente.

— Rebeca está bem?

Os homens da voz anciã e jovial fizeram um amplo gesto de desaprovação, mas aquilo era tudo que passava pela minha cabeça. A esfera brilhou em vermelho.

— Mais duas perguntas.

— Anistia apanhou minhas memórias?

A luz acendeu verde.

— Você só está perguntando coisas óbvias! — Reclamou a voz jovial.

— Me deixe... em paz...

— O tempo de influência de vocês já acabou — disse a Morte, implacável — ele está certo. Deixe-o decidir sozinho.

— Última pergunta.

E eu perguntei, sem pestanejar:

— Moedas de chocolate compram barras de ouro?

A luz acendeu, vermelha. Todos se entreolharam. O rapaz da voz jovial levantou-se, indignado.

— Você desperdiçou todas as chances de saber mais sobre o seu passado! É arrogante, estúpido, incompetente! É por isso que você está entorpecido! É por isso que estão enganando você!

— Pare já com isso — protestou a voz anciã, aos tossidos.

— Sabe por que eles substituíram os seus sentimentos? Porque eles são fracos! Você não é um homem! É por isso que pisam em cima de você! Você acha que é forte só porque faz magias? Não me faça rir! Mesmo sabendo magias você foi entorpecido, porque...

A Morte estalou os dedos, e o corpo morto daquele rapaz caiu sobre a mesa.

— Você sabia disso? — Perguntou a voz anciã, verdadeiramente indignada — você estava o irritando só para fazê-lo abrir a boca?

— Ele é como eu — respondi, sorrindo — não controla a língua quando está pressionado. Tive direito a um pouco mais que cinco perguntas graças a isso. Mas não importa... vocês não são reais de fato.

— Como sabe disso?

— Na verdade, vocês são... parte de mim, e as respostas não são de fato respostas... são reflexos do que estou sentindo. A última vez que vi Rebeca, ela não estava de fato bem, ela estava preocupada... vocês não podem saber se ela está bem ou não, porque eu também não sei.

— Você não pode saber de tudo isso! É contra o ciclo natural das coisas que você se conheça dessa forma, e — em seguida, seu corpo também caiu morto.

Minha cabeça, mesmo cansada e aturdida, levantou-se. Empolgado, perguntei à Morte:

— Eu estou certo, não é? — Mas a Morte não estava lá. Quem estava lá...

VI

Era Anistia. E eu estava jogado no meio da clareira. Não havia mesa. Não havia bolo. Havia fome, cansaço, e meu corpo sujo. O professor e diretor do Instituto Sempiternum estava diante de mim, junto a três guardas que passaram a carregar meu corpo.

— É hora de partir, Vince — disse a voz afônica do professor — eu sinto muito.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Até a próxima!



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