Repito: escrita por Gabriel


Capítulo 1
Carta de Miguel


Notas iniciais do capítulo

em Covah, data desconhecida.



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Leitor,

 

Não sei como, nem quando, essa carta vai chegar em suas mãos, mas a escrevo em forma de aviso aos que virão depois. Simplesmente, uma confissão em vídeo ou segredar a alguém não teriam o mesmo efeito, visto que poucos acreditariam em mim, ainda mais com a minha aparência atual. Então, optei por esse meio tão antigo, tão físico — Ana não parece interagir muito bem com nosso plano físico.

Obviamente, Ana interfere na realidade de alguma maneira que não sei explicar. Quando cheguei a esta casa, se restringia ao sótão, onde aparentemente foi seu lugar de descanso, criando um ranger estranho e compassado em uma das tábuas soltas. Depois, ao se soltar pela casa, começava a esvoaçar as cortinas quando não tinha vento, ou ainda quebrar vasos ao se descuidar.

Mesmo assim, sua interferência no plano terreno é limitada. E é isso que me dá esperanças.

Talvez eu devesse começar do começo. Meu nome é Miguel Vargas, e recentemente me mudei para esta cidade, Covah, para fugir do caos da metrópole. Ledo engano. Encontrei aqui mais mistérios do que nos becos de minha cidade natal; mais inquietude do que em uma noite nas ruas de bordéis e luzes neons; mais olhos do que em uma aranha. Em verdade, nunca mais me senti totalmente privado da exposição alheia; senti-me sempre, no entanto, observado.

Muito dessa sensação é culpa de Ana. Ana morreu, pelo que me contou, há mais de cem anos, ou assim estimei, naquela mesma casa, de forma horrenda, embora não tenha me dado detalhes. Fato era que, desde então, vinha habitando o sótão, com medo de sair, porque sempre que saía coisas ruins aconteciam.

Segundo Ana, não fui o primeiro a estabelecer contato com ela, mas o primeiro a lhe oferecer ajuda. Olhando para trás sob a perspectiva atual, não teria mudado minha oferta de auxílio. Contudo, não teria ido tão longe como fui. Mesmo que significasse quebrar minha promessa e castigo eterno no além-vida, seria melhor; pelo que fiz, já estou certo de meu eterno sofrimento; e o castigo já começou antes mesmo de minha morte, aqui, neste plano terreno.

Tudo aconteceu em uma tarde chuvosa de novembro. O vento era forte; os pingos caíam grossos; relâmpagos cortavam os céus, e trovões anunciavam a tempestade. Todas as janelas da casa batiam, e tive que sair rapidamente para fechá-las sem que muito da mobília ficasse molhado. Eu retornava para meu escritório quando olhei para o portão que levava ao sótão; dele, um som insistente e repetitivo era emitido, e imaginei ser alguma janela que ficara aberta da mudança. Abri o alçapão e puxei a escada de madeira, subindo em seus degraus espaçados, que grunhiam a cada pisada. Entrei no cômodo pela primeira vez desde que me mudara e encontrei uma janela circular parcialmente destrancada, o suficiente para que a batida contra a amurada produzisse aquele ruído.

Estava me aproximando quando um vento frio passou por mim e bateu a tal janela, inesperadamente. Em um primeiro momento, me assustei, mas logo sorri de minha momentânea sorte e soltei um agradecimento baixinho, para ninguém em específico, em tom de brincadeira.

Eu não esperava obter resposta.

Mas obtive.

Um rouco, distante, mas ainda assim bem audível e consistente "de nada". Dessa vez, realmente me assustei e me joguei para trás, caindo contra o chão e batendo a nuca na borda do alçapão parcialmente aberto. Não tenho muitas lembranças além da escuridão até acordar após um intervalo de tempo distinguível apenas pela cor escura do lado de fora e a ausência da chuva.

Mexi sutilmente a cabeça e notei uma garota próxima a mim.

Em sua silhueta, estava delineado um vestido branco, somente alguns tons diferentes da cor de sua pele, como se fosse de porcelana, um vislumbre vago e branco-perolado, esfumaçado, opaco. Pessoalmente, nunca fui de acreditar em espíritos, mas o que estava em jogo ali não era minha crença ou a falta dela; percebi tardiamente que a questão também não era de loucura ou sanidade; nem de aceitação ou não de um plano paralelo, possivelmente fantasmagórico, de espíritos ou outras formas de energia. A bem da verdade, nenhuma opinião minha mudaria a existência daquela garota, que se apresentou como Ana, ali.

Ana pedira desculpas pelos sustos. Revelou-me que achara que eu tinha morrido, e talvez por isso eu tenha sido capaz de vê-la, embora depois seu contorno tenha se tornado aparentemente aleatório, mostrando-se ou não, dependendo de sua vontade (ou de minha percepção). Ela me contara sua história já relatada aqui, e que desde então mantinha-se presa àquele lugar.

Entenda: em tal momento de minha vida, necessitando de um pouco mais de companhia, eu, em minha ignorância benevolente, não tinha outra alternativa a não ser oferecer-lhe ajuda. De novo, repito: só não esperava que ela fosse tão longe assim.

Enfim, interessei-me pelo caso de Ana. Pesquisei sobre seu caso na cidade, com corretores de imóveis e vizinhos antigos, e consegui montar um vago quebra-cabeças que me fizera entender um pouco mais sobre sua triste história. Em todo caso, minha ajuda não envolvia conhecer o passado, mas resolver o futuro; desvencilhar Ana daquela casa era meu objetivo.

Dissera-me ela, e talvez tenha sido nesse momento que eu devesse ter sido mais atento, que rumores corriam entre os outros como ela sobre um livro antigo, há muito perdido no esquecimento, cujo conteúdo continha todos os segredos da humanidade, com relatos tão antigos quanto a própria escrita. Como se não bastassem todas aquelas informações misteriosas, eu ainda contava com um desejo íntimo de poder tocá-lo, quiçá lê-lo. A ideia de ter o conhecimento de anos da história humana em minhas mãos, você há de concordar, era tentadora.

Segundo Ana, sua localização estaria em uma tumba do pequeno cemitério da cidade, localizado no mesmo terreno que a pequena igrejinha, mais para uma capela de orações. Talvez, ela supunha, esse fosse o motivo para alguns espíritos da cidade estarem, assim como ela, inquietos e impossibilitados de descansar. Confiei em Ana, para minha desgraça.

Planejamos tudo juntos. Descobri como arrombar túmulos em meio a taças de vinho, e Ana me dera instruções precisas sobre a situação da lápide, onde uma tal de família Gliehiria estava enterrada. Questionei-me da procedência de tais indicações, uma vez que Ana não saía de casa, mas ignorei aqueles temores; ah!, se me tivesse dado ouvidos, quem sabe minha situação não estivesse melhor. Ninguém exatamente prestava atenção àquela parte da cidade naquele momento para notar. O caixão principal também não estava tão fundo, e a madeira úmida tornou minha tarefa muito menos custosa.

Peço uma pausa ao leitor. Antes de dar mais detalhes sobre a visão que tive, preciso falar sobre Ana e sua perversidade lenta, maliciosa, sutil como uma apunhalada pelas costas, mas tão venenosa quanto uma cobra.

Em algum momento, Ana tornou-se uma constante presença, e eu compartilhava meus pensamentos com ela, que me aconselhava de volta, participando de momentos importantes e íntimos de minha vida. Parecia quase natural, a mim, verbalizar as estranhezas que eu transformava em hipóteses, esperando algum comentário de Ana; e tornou-se tamanho costume a ponto de eu, quando saía sozinho, soltar frases ao ar sem ninguém por perto, às vezes esperando uma resposta de Ana, às vezes uma resposta de algum outro espírito. Nunca as obtive, e esse foi mais um momento em que depositei pouca atenção sobre o mistério que me cercava.

Eventualmente, descobri que Ana não gostava de luz. Por esse motivo, agora, enquanto escrevo meu relato, tenho uma vela acesa; sua chama no ar, que hoje está excepcionalmente revolto por causa da chuva, que danificou a situação elétrica da casa; uma chuva também de novembro, como no dia em que conheci Ana. Essas labaredas me acompanham, junto com uma caixa de fósforos emergenciais, desde quando voltei do tal cemitério, não mais do que cinco horas atrás, antes das primeiras nuvens começarem a chorar.

Desde então, mantenho tal fogo aceso comigo, tanto para conforto, quanto por iluminação, literalmente e figurativamente falando. Pois a visão do que estava no caixão não era completamente processável por minha sanidade humana.

Havia, sim, um corpo — porém mais cadavérico do que o esperado, com carne decomposta entre os ossos, manchas de sangue seco, partes descoladas do corpo. Seu odor era além do horrível, e não consigo fazer comparação com nada conhecido. Em algumas partes, a pele parecia ter sido raspada, como uma carcaça parcialmente atacada por urubus. Arriscar-me-ia a dizer que a figura fora obra de alguma prática nojenta, talvez rituais ocultistas de má-fé, pela presença de marcas nada usuais em áreas sexuais e tecidos necrosados. Os braços estavam em tal posição que parecia que seguravam um livro, mas que já não se encontrava mais por lá. Talvez tenha sido muita inocência minha imaginar que tal relíquia passaria desapercebida de caçadores de recompensas ocultistas.

(Poupo a ti e a mim de maiores detalhes, pois mesmo as palavras mais grotescas parecem falhas em questões descritivas; e tantos eram os tons de variadas secreções desconhecidas, que eu teria que inventar uma nova paleta de cores para nojo, além dominar um vocabulário médico impróprio a mim.)

De qualquer forma, não era nada do que descrevi que mais me assustava. Minha real fonte de medo era... o movimento do corpo. Possivelmente minha mente tentou me pregar um truque, mas fato era que aquela massa humanoide parecia pulsar, quase respirar, mas de uma maneira funda, seca, abissal. Mesmo morta, ainda era uma constituição orgânica em funcionamento debilitado.

E tinha um sorriso diabólico, provavelmente obra do ladrão que anteriormente teria retirado o tal livro secreto do lugar. Seus lábios, ao menos o que havia de semelhante ao redor dos dentes, estavam mais abertos do que o natural, como se cortados até o meio das bochechas, e as carniças ao redor dos olhos traziam riscos em forma de cruz.

Sei que corri. Não esperei tempo suficiente para me entregar à insanidade. Corri, e corri muito, fugindo daquele riso sarcasticamente deixado como recordação. Corri de volta para minha casa, aqui, sempre com uma fonte de luz comigo. Atualmente, minha maior preocupação é não deixar Ana se aproximar de mim novamente.

As janelas batem por causa da chuva.

Quero confidenciar meus planos próximos para também eu me certificar do que farei: arrumei minhas coisas mais importantes, fiz uma mala provisória, e fugirei desta cidade. Pretendo, sempre, andar com alguma lanterna ou cigarro comigo, ainda que não fume. Assumo que estou com medo e, por esse motivo, também sei que não perdi minha razão completa.

Ouço Ana por trás da porta, no corredor, batendo com alguma faca ou outro utensílio mortal; por mais que não tenhamos conversado, sei que quer minha morte. Repentinamente, a casa não me parece tão acolhedora, se é que um dia já foi, e a presença de Ana só me cerca, como me sufoca.

Como últimas palavras, peço que tenha cuidado com Ana. Nunca, em momento algum, esqueçam desse recado.

Preciso ir. A chuva cai mais forte, e os ventos se animam. Em seu canto, a vela, cuja chama reside em uma crescente poça de cera, faz as sombras dançarem ao ter o fogo atacado pelas brisas.

Tenham cuidado com Ana. Repito:


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Notas finais do capítulo

É minha primeira tentativa de escrever algo dessa temática, então aceito dicas, sugestões e críticas. Comentários e recomendações são ótimos para o autor. ;)



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