A Era Mais Escura escrita por MarleyMAlves


Capítulo 1
Pelo Sangue Retorna


Notas iniciais do capítulo

Estou muito feliz em começar a postar esta história aqui, e espero que eu possa atender a expectativa de todos os leitores; não sei muito o que dizer sobre a história, então acho que é melhor ir para o que interessa logo de uma vez!



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Ela acordou em sua cela, assim como no dia anterior, e na semana anterior, e no ano anterior.

            A visão turvada pelo sono inquieto que aquela cama de pedra a provera pelos últimos três anos, tempo em que estivera confinada a aquele lugar imundo.

            Quando finalmente se sentou, olhou para cima, para a tão distante janela gradeada que permitia a entrada da fraca e distante luz da lua; tal luz não iluminava muito, só o suficiente para que soubesse o quão sujo e precário era seu eterno exilio.

            Olhou então para o rachado e escurecido espelho que lhe fora dado, este jazia pendurado na parede a sua frente, não sabia se sempre estivera ali, ou se por algum motivo o havia mudado de lugar, não se importava na verdade.

            Como todos os dias, viu seu rosto magro e desnutrido; seu cabelo negro como as penas de um corvo, sujo, seco e quebradiço; seus lábios, um dia rosados e magníficos, estavam ressecados e rachados; somente por fim observou seus olhos, não os deixava por último por nada, eram a única coisa que ainda reconhecia como seu, o mesmo brilho, a mesma cor verde esmeraldina brilhante, quase como se reluzissem com luz própria.

            A que ponto chegara, o quanto mais poderia decair, seus olhos ainda vibrantes provavam que ainda havia sentido em sua existência, entretanto isso mais a assustava do que acalmava.

            Teria continuado ali sentada, refletindo sobre o que havia sido, sobre o que era e não poderia ser, caso não tivesse finalmente notado o temível som do que pareciam ser garras estalando contra as grades de sua cela. Um visitante.

            Quando a mulher finalmente virou o rosto e encarou quem a esperava do outro lado das grades, sentiu sua espinha gelar e sua pressão cair.

            A figura era vermelha e decomposta, sua pele reluzia como se fosse feita de cera. Uma aparição; não via seus olhos pois estavam vendados, talvez não os tivessem.

            Uma grande coroa enferrujada adornava a cabeça do espectro quase translucido, e um longo e úmido cabelo negro caia pelos lados de sua perturbadora face. O ser usava um longo e destruído vestido negro, este não cobria seu busto, que estava apodrecido assim como todo o resto.

            A prisioneira não conseguia falar, faziam meses desde a última vez.

            - Minha criança. – Sussurrou, gritos de dor e desespero ecoavam ao fundo de sua voz tenebrosa. – Corta-me o coração vê-la nesse estado...

            A monstruosidade passava as longas, afiadas e enegrecidas unhas pelas barras de ferro que impediam a prisioneira de sair de seu confinamento. 

            - Quem é você? – Disse por fim, a voz rouca e destreinada.

            - Mila, você conhece meu nome assim como eu conheço o seu. – Respondeu o espectro, sorrindo, para o desespero da cativa.

            A jovem temia saber o nome da figura diante de dela, mas não a daria o prazer de ouvi-lo.

            - O que quer comigo? – Questionou, levantando-se.

            - É chegada a hora de você finalmente tomar seu lugar, pois ele está voltando, e a história vai se repetir, só resta saber de qual lado o oráculo vai ficar desta vez. – Disse o fantasma de maneira enigmática.

            - Como?

Ainda sorrindo, a figura escarlate cruzou os dedos, como se esperasse sua reação.

— Eu não sei do que você está falando, e eu não acredito em lendas. – Respondeu por fim, a voz já um pouco mais alta e clara.

            - Querida... – Ronronou o ser, aproximando-se das grades e enrolando suas monstruosas mãos nas barras. – Mas é claro que você acredita.

            - Não pode me dizer em que acreditar! – Exclamou em vão, pois sua voz não atingiu o tom desejado.

            - Não preciso... – Constatou a aparição vermelha, ao abrir ainda mais seu sorriso doentio. – Você acredita em mim.

            Sentindo cada centímetro de seu corpo arrepiar, a prisioneira deu passos para trás, poucos, pois logo se encontrava de costas para a parede.

            A criatura então abriu a porta da cela, como se esta não estivesse trancada por três chaves, as quais não fazia ideia da localização.

Lembrava-se de o quanto a porta rangia, o quanto tal som marcará o início de sua interminável prisão, mas quando o espectro a escancarou, não houve nem um ruído, tornando o momento ainda mais sobrenatural do que já poderia estar.

Quando a criatura se moveu para dentro do calabouço, percebeu o sangue que era deixado em seu rastro, muito sangue.

Ao ficar frente a frente com ela, o fantasma tão rápido quanto um pensamento segurou seu rosto e aproximando sua face da dela, inspirou o ar com o buraco onde deveria ser o seu nariz, quase como se a cativa fosse um perfume a ser apreciado.

— Minha filha, senti falta de seu sangue...

Não piscou, respirou ou pensou, mas aquilo já não estava mais ali, havia sumido no ar.

Questionaria sua sanidade, porém a porta de sua cela ainda estava aberta, convidando-a a mais uma vez caminhar por terras livres.

Com um pouco de relutância, passou pelas barras de ferro que lhe foram fieis companheiras pelos últimos três anos. Se vendo diante de um longo corredor vazio, com uma escadaria ao longe, se pôs a caminhar para fora de seu confinamento, sua prisão, seu tão merecido cativeiro.

Conforme subiu as escadas que levavam a liberdade, às suas costas ficaram apenas as pegadas vermelhas de seus pés descalços, para sempre decorando o antigo calabouço que a prendera.

A luz das poucas tochas que ficavam ao lado de sua cela começou a ficar distante, e seu caminho começou se tornar indistinguível conforme subia mais e mais. Agora sabia porque a janela em seu exilio era tão alta e inatingível, colocaram-na literalmente em um buraco!

            Ao subir os degraus, o silencio começou a ceder espaço a ruídos, e vozes masculinas, será mesmo que o tão temido rei havia relaxado tanto ao ponto de deixar apenas recrutas a guardando?

            Quase não teve contato com outras pessoas desde que fora levada para aquele lugar, o único rosto que viu durante todo o seu confinamento foi o de um velho homem rude que uma vez por semana a levava comida e agua, somente o suficiente para não morrer desnutrida, assim foi durante toda sua infernal estadia ali. Não mais.

            Não enxergava um palmo a sua frente e os ruídos estavam bem altos e distinguíveis agora, ficou bem obvio o porquê quando encostou em uma porta dupla de madeira, passou a mão por uma boa parte de sua extensão, até que a palma encontrou uma forma redonda gelada. A maçaneta.

            Não ousou emitir um ruído sequer quando com muito cuidado encostou a orelha na madeira podre, concentrando-se para ouvir o que acontecia do outro lado.

            - Cale-se, sua donzelinha aproveitadora, faço o que eu quiser! Se eu tiver vontade de sair agora mesmo dessa espelunca e ir me divertir em um puteiro, quem vai me impedir? Mas você, ah, você não pode fazer nada do que tem vontade, por que você tem que impressionar o chefe! Ou é outra pessoa que você quer impressionar? – Exclamou uma voz jovial, com um modo de falar muito característica que fez Mila trincar o maxilar em repulsa. “Um nobre bancando o soldado”, Pensou. Era comum ver homens em cargos altos obrigarem seus filhos a fazer parte da guarda real (mesmo que contra sua vontade), mas ao contrário dos outros, eles não passavam por uma peneira para definir se tinham ou não as qualidades, ou mesmo a vontade, de um protetor do reino. Eram uma escória.

            Não demorou nada para outra voz masculina, esta não tão insuportável, retrucar:

            - Albert, fui escolhido para ficar aqui e vigiar essa desgraçada durante a noite toda, e é isso que eu vou fazer. Não para impressionar ninguém, só porque eu tenho responsabilidade. – “Ah, já ouvi coisa pior amigo”, respondeu mentalmente.

            Era engraçado como a segunda voz soava tão firme, sentia nela um certo senso de honra e dever, admirava muito aquilo; mesmo que ela própria jamais houvesse se comprometido com qualquer código ou coisa do tipo que a proibissem que tomar atitudes inesperadas e “fora da lei”.

            - Me diz só uma coisa, já viu ela alguma vez? – Questionou o jovem nobre.

            - Não, nunca vi. – Admitiu a voz fria e decidida do outro.

            Poderia até achar engraçado aquela conversa sobre conhece-la ou não, poderia até mesmo se sentir uma celebridade (o que no fundo sabia que era), mas a situação a fazia se concentrar num único e importantíssimo objetivo, sair daquele maldito lugar.

            - Não sabemos nem se a maldita ainda esta viva lá embaixo, Finlay pode estar mentindo só para ganhar algum dinheiro, o velho sabe que nunca vai achar um serviço melhor! – Gritou o jovem novamente, já estava ficando irritada com todo aquele escanda-lo que este estava fazendo. – Ele não tranca essa droga de porta nojenta a um ano, não acha isso suspeito?

            A prisioneira afastou o rosto da madeira em decomposição, e ficou ali, fitando a escuridão onde sabia que estava a tal porta que dividia seu exilio da liberdade.

            - E o que vai fazer? Entrar lá e ver se a mulher ainda tá viva? – Indagou aquela voz firme.

            Envolvendo sua mão na maçaneta começou a enfrentar uma luta interna. Estava aberta, bastava girar e sair dali, sair daquele maldito buraco; mas não podia simplesmente ignorar os soldados do lado de fora. Podia mata-los, talvez só nocautear, não... preferia que morressem, eles poderiam ser um problema mais tarde.

            Preparou-se para girar a maçaneta, mas se impediu quando ouviu novamente a voz irritante do soldado nobre:

            - Pois bem, é isso mesmo que vou fazer! – Decidiu o garoto metido a soldado; podia ver claramente seu nariz empinado, fingindo ter estomago para ir ali e abrir a porta. Conhecia muito bem aquele tipo, bem demais, muito mais do que gostaria de conhecer na verdade.

            - Estou esperando, vamos lá Albert! – Exaltou a outra voz.

            O outro lado da porta então se tornou silencioso, talvez o tal Albert estivesse paralisado, isso não seria surpresa; mais uma vez aproximou-se e encostou seu rosto na madeira.

            Ouviu passos lentos, porém esses passos vinham em sua direção. “Que desenrolar interessante”, Notou.

            Olhou envolta, a procura de qualquer coisa que servisse de arma, não precisava ser grande coisa, aceitaria um prego, um alfinete, uma pedra! Mas não havia nada ali. “Sem problemas”, tranquilizou-se, já esteve em situações piores.

            Sentiu um arrepio na nuca, como se claramente houvesse alguém a espreitando, conteve o impulso de virar-se, por medo de que mais uma vez precisasse confrontar o espectro vermelho que a libertou de sua cela. Levada por essa lembrança tão recente e tão terrível, refletiu sobre aquela situação:

Um recomeço desprezível, foi tirada de seu exilio eterno por algo que não completamente entendia a existência, estava agora prestes a assassinar dois jovens soldados, porque? Porque o horror e a morte não permaneciam longe, porque sempre suas roupas tinham que se manchar de escarlate! Não era justo.

— E então, não vai abrir essa droga de porta? – Ouviu uma voz dizer, atiçando o colega.

— Cala sua boca! Ou eu juro que você nunca vai conseguir algo na sua vida de pobre! – Chegava a ser engraçado ouvir o medo na voz daquele jovem bem-nascido, seu terror em escancarar aquela simples porta que normalmente não representaria nada, nada além de uma porta de madeira velha; irônico que justamente naquela noite em que finalmente o menino começaria a virar homem, a “lamina sinistra” esperava do outro lado.

Ouvia agora a respiração acelerada do soldado, então desencostou seu rosto da madeira e usou os próximos instantes para se concentrar; mas havia algo cochichando em seu ouvido, como uma consciência invasora, tentando-a a todo segundo.

Sangue.

Ouviu a maçaneta tremer com o toque do jovem do outro lado da porta, sabia o que deveria fazer; mas tinha medo, não queria admitir, mas tinha muito medo de que acontecesse de novo, que perdesse o controle e a razão, que a sua visão se tornasse vermelha e sua consciência não fosse mais sua.

Sangue.

— O que vai fazer Albert? Pedir para o seu pai falar com o general e me tirar da guarda real só porque você não teve coragem para abrir uma porta de madeira? – Questionou o jovem de voz fria e decidida.

Sangue.

A maçaneta girou, e Mila estava pronta; afastou a voz horrenda que lhe infectava a mente e decidiu que nunca mais seria aquela pessoa, realmente esperava que aquela entidade desprezível pudesse ouvir seus pensamentos, pois teve muito prazer em manda-la se ferrar com todo o seu sangue.

A porta se abriu, mas não foi o jovem elitista que a escancarou, foi o impulso da fugitiva que abriu as folhas da porta velha e podre; nem teve tempo de admirar a expressão de espanto nos rostos deles, pois instantes depois já quebrava o pescoço de Albert com um movimento tão gracioso quanto rápido.

Percebeu quando o outro antes recostado na parede da pequena sala sacou sua espada e tomava impulso para partir para cima da fugitiva, mas obviamente foi mais rápida e sacando a lamina do nobre recém assassinado antes que este despencasse no chão, a arremessou com um movimento simples e equilibrado. O ferro atravessou a perna do homem, fazendo-o urrar, tal grito arrepiou todo o seu corpo, uma sensação que sempre gostou muito de sentir.

Nem um segundo depois estava prensando o soldado contra a parede, havia pego sua espada e agora a apontava para a garganta de seu dono. Notou que na base de sua lamina estava escrito: Damian Adalion.

Voltou-se para o jovem de cabelos negros, não seria nada mais que um rosto na multidão não fossem seus olhos, azuis como poucos que havia visto em sua vida; mas não eram as cores que chamavam sua atenção, era os sentimentos explodindo por trás delas, a mistura caótica de raiva, dor, medo, e vontade de sobreviver. Já havia visto olhos assim antes, todos morrerão vítimas de sua lamina, ou de sua língua.

Mate-o.

Damian não aceitava a submissão com facilidade, olhava para todos os lados tentando encontrar uma maneira de sair daquela posição, mas só haviam dois jeitos, morto pela própria espada empalada em sua garganta, ou poupado por sua captora.

— O que vai fazer? Me matar, então faça logo, vão me matar de qualquer jeito por deixar você escapar! – Exclamou o jovem, já longe do frio equilibro que exibia menos de um minuto atrás.

“Porque é tão difícil? ”, questionava, “É melhor terminar a vida dele aqui, é um qualquer, vai morrer de qualquer jeito ”. Fazia esforço para acreditar naquilo, mas sua mente não parecia se convencer.

Mate-o!

Olhou por cima do ombro e viu o corpo do pobre Albert, morto no chão, um tolo, mimado e inconsequente. Um bode expiatório perfeito.

— Damian, você parece um homem esperto! – Começou persuadindo o jovem, não por ele, por si mesma. – Você não precisa morrer, não foi você quem me soltou, na verdade eu mesma não sei quem foi! – Admitiu.

— O que? – Indagou o soldado confuso.

— Shhh – Murmurou, pressionando mais a lamina contra o pescoço dele, uma gota de sangue escorreu. – Me deixa terminar. Vamos combinar assim, você diz que quem me soltou foi esse coitado caído atrás de mim e que quando você descobriu já era tarde e eu tinha sumido, mas você conseguiu pegar o maldito, não vivo é claro!

Quando percebeu já estava exibindo um característico meio sorriso felino, sentia-se até mal por aquilo, mas a ilusão de estar poupando uma vida suavizava a culpa do último crime.

— O que me diz, temos um acordo? – Perguntou, fixando seus olhos verdes, mais brilhantes do que nunca, mais imponentes e livres do que se era possível ser.

O homem apenas meneou positivamente com a cabeça, afinal era tudo o que conseguia fazer sem ter a garganta aberta.

— Perfeito! Foi bom fazer negócios com você meu jovem, boa noite. – Despediu-se, acertando a cabeça do jovem com o cabo da espada, desacordado ele escorregou pela parede, até terminar sentado, com sangue escorrendo do local da pancada.

Sangue.

A voz havia deixado a sua cabeça, sabia muito bem o porquê, mas não realmente importava, havia conseguido poupar uma vida e isso por algum motivo a fez sentir algo como uma flor florescendo em seu peito. “Compaixão, será que isso é tão gratificante assim? ”, ainda olhando para o jovem desacordado no chão, afastou uma mexa de seu cabelo nanquim que recaia sobre seu rosto.

— Hm, acho que não. – Respondeu para si mesmo.

Então virou-se, e procurou envolta por algo que a pudesse agasalhar naquela noite fria, achou muitas garrafas de bebida vazia que não lhe serviriam para nada, muita comida estragada, a qual sem dúvidas deveriam ser para ela. “Finlay iria receber uma visitinha uma hora dessas. ”, decidiu. Por fim encontrou uma capa negra, grossa, porém muito velha e batida, mas não se importava, não estava exatamente na posição de julgar o quão nova e intacta estava uma peça de roupa, qualquer coisa era melhor que só os trapos que lhe davam para vestir ali.

Virando-se para a porta, onde sem dúvidas era a saída, se sentiu insegura, não sabia o que esperar daquele recomeço, nem sabia se aquilo era realmente isso, poderia ser nada mais que a brincadeira de um espectro vermelho macabro; mas não seria nada se não tivesse coragem. Era hora de mudança, era hora limpar o sangue que derramara pelo caminho.

Com pensamentos positivos, Mila passou por mais uma porta, a terceira e última entre ela e a liberdade, deixando para trás tudo o que era e com a vontade de ser algo mais do que um dia havia sido.


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Notas finais do capítulo

Gostaria de pedir que me deixem comentários sobre o que acharam do capítulo, suas opiniões são muito importantes para me motivar e principalmente pelo feedback!

MUITO OBRIGADO!



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