Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 10
O Driblador da Morte


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoal! Essa semana eu fiquei muito atarefada então atrasou um pouquinho... kkkk

Espero que gostem do capítulo! Super beijo :*



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Ele tinha de confessar, a mulher era bonita. Os cabelos curtos, de uma cor amarelo pálido, os olhos castanhos delineados por cílios grandes e curvos, além de uma expressão travessa de quem gostaria de falar ‘sim’ para tudo. Ele desviou o olhar, um sorriso tímido no canto dos lábios, e se concentrou na próxima pessoa da fila, na próxima troca de palavras e na próxima dedicatória.

O livro da vez se chamava ‘A Noite Eterna’ e foi escrito num ímpeto de inspiração em apenas uma semana. A semana em que uma febre de trinta e nove graus veio lhe visitar, acompanhada de uma gripe forte. A cada página concluída, a pele queimando, ele sentia que a doença estava indo embora pouco a pouco… “Seiscentas páginas em sete dias? Uau! Temos um novo recorde, Neville!” seu agente literário assoviou um tanto impressionando quando ele levou o manuscrito ao escritório na semana seguinte.

Ele próprio estava impressionado também. Era um escritor prolifero, com oito títulos publicados aos seus trinta e cinco anos, todos sucessos de vendas, entretanto cada obra nascia, crescia e se desenvolvia numa lentidão necessária para se tornar uma leitura única. Noite Eterna era única, era seu best-seller, e quebrava todas as outras regras.

─ Devo assinar no nome de quem? ─ Neville perguntou a mulher que havia o devorado com os olhos durante todo o tempo na fila.

Estava acanhado pelo evidente interesse da moça, como de costume, mas não surpreso. Neville Longbottom era um homem bonito, um homem que despertava olhares longos e avaliadores, possibilidades múltiplas no inconsciente das mulheres de quem chamava a atenção (e de alguns homens também). Seu olhar era “ingenuamente malandro” como brincava sua esposa, seu aspecto, embora passivo, tinha qualquer coisa de secreta e instigante.

─ Jane─ a mulher respondeu entregando um exemplar rechonchudo de Noite Eterna nas mãos dele, dedos deslizando nos dedos dele sem necessidade, e molhando os lábios ao dizer.

─ Jane então… ─ o escritor baixou os olhos, controlando o leve rubor no rosto que se insinuou quando ela inclinou o corpo para frente e seu decote entrou em cena como Melhor Coadjuvante.

─ Pode anotar o nome e o número do seu hotel ao lado de ‘Jane’ ─ ela sussurrou muito próxima do ouvido dele. Uma colônia adocicada se desprendendo da pele do pescoço e fisgando o olfato de Neville enquanto propunha.

Neville terminou de rabiscar seu autógrafo, a mão pesando um pouco na letra ‘e’ e entregou o livro para a moça, um sorriso cuidadosamente gentil para a fã animada demais.

─ Na verdade eu e minha esposa estamos na casa de amigos. Obrigado por adquirir meu livro, espero que a leitura seja boa.

Toda a sagacidade se quebrou no rosto da bela mulher. Um tanto desorientada, certamente aquele era o tipo de pessoa que não costumava ouvir negativas, ou aceitá-las, foi empurrada pela próxima pessoa da fila, uma senhora atarracada, de quadris excessivamente largos e carnudos, com cara de cão Sharpei, que deitou meia dúzia de livros na frente do escritor anunciando que nenhuma das dedicatórias seria para ela, mas para os netos. ‘Detesto essas historinhas baratas de terror’ resmungou a velha. Neville se sentiu bem mais confortável diante da senhora rabugenta. Às críticas ele estava bem mais adaptado. Sua literatura era construída para um público muito específico, os entusiastas do terror e os curiosos ecléticos. Sangue, morte, brutalidade e temas pesados permeavam as histórias do adulto escritor que Neville havia se tornado. Quando ele era convidado para comparecer em uma entrevista em um talkshow ou numa revista local, os entrevistadores sempre lhe faziam a rotineira pergunta: ‘De onde você tira essas ideias terríveis para os seus livros?’

Neville não conhecia a resposta.

Era como se a afinidade para escrever sobre o mal, o impuro, o maligno tivesse nascido com ele… Aquela coisa que muitos chamavam de talento e alguns de psicopatia. Mas Neville não era psicopata. Ele era um homem curioso, que lia muito, assistia muito e, sobre tudo, observava muito. Todos os comportamentos humanos lhe fascinavam e em especial o medo. Então, normalmente, ele pigarreava de leve e dava uma resposta trazida do seu empório de respostas genéricas prontas no fundo da mente ‘Eu assisti muitos filmes do Jason e do Freddy Krueger quando criança’.

A velha Sharpei foi embora resmungando e carregando uma penca de livros e Neville nem achou esquisito o fato de todos os netos dela se chamarem Marylane na dedicatória das contracapas. Ninguém era muito normal no fim das contas, principalmente os fãs das suas histórias.

Ele finalizou a noite com mais meia dúzia de assinaturas e bocejou de exaustão quando pôde descansar a caneta. Os dedos estavam castigados e doloridos depois de quatro horas seguidas rabiscando nomes em papéis, assim como o rosto, as laterais da boca dormentes, que teve de abrir em sorrisos educados durante o mesmo tempo. Do que Neville precisava agora era de um banho quentinho e demorado, além de um prato de sopa ou alguma outra coisa tão leve quanto, para embalar seu sono de logo mais.

─ A Jane ficou ressentida… ─ sua ajudante de eventos aproximou-se da mesa e começou a recolher os exemplares novos que sobraram amontoando-os em pilhas mais altas.

─ Se minha mulher não estivesse por perto ela poderia ter saído sorrindo daqui ─ ele comentou, os braços dobrados para atrás apoiando a nuca e um olhar despreocupado sobre o dela.

─ A única forma dela sair sorrindo daqui é eu acertar meio quilo de Neville Longbottom ─ e balançou um dos livros com suas seiscentas páginas diante dele ─ bem no meio das fuças da moça.

─ Você é mulher de um homem famoso, deveria estar acostumada, meu bem ─ Neville provocou a ajudante… que era também sua esposa ─ Mas eu sei que você não faria nada disso, estamos falando de Luna, a garota que tem dó de matar uma formiguinha que seja.

─ Ainda assim… Luna pode ser possuída se invocada, falando nos seus termos, MEU BEM.

─ É difícil te ver com ciúmes e insegura ─ ele saiu da cadeira e foi até a mulher, abraçando-a por trás. Muito mais alto do que ela, muito mais alto do que a média dos homens, o escritor inclinou bem o corpo para frente e apoiou o queixo no ombro direito dela ─ Eu gosto de sentir isso de vez em quando, sabia?

─ Você é um bobão, Nev… E eu não estou sendo insegura ─ ela retrucou, mais amolecida.

A confiança que o casal Neville e Luna depositavam um no outro era daquele tipo de relacionamento que causava inveja nos casais ao redor. Eles viviam apenas um para outro desde o dia em que se conheceram e se apaixonaram e isto, sem uma nesga de dúvida, bastava para ambos. Somente Luna, por exemplo, era capaz de acordar no meio da madrugada e não se assustador com um marido de um metro e noventa parado de pé, em frente a janela do quarto, suado e ofegante, os olhos injetados de pânico como os de uma criança de cinco anos, após um dos seus estranhos pesadelos. Com toda a paciência do mundo, ela se levantava da cama e o puxava de volta para os lençóis, acariciando sua cabeça até que ele adormecesse novamente.

─ Vamos comer em algum lugar ou existe algo comível naquele maravilhoso hotel que o Rick nos enfiou? ─ Neville perguntou a Luna, que terminou de guardar os livros dentro de uma caixa de papelão reforçada.

─ Eu quero mesmo é ir pra casa… Ver se estão todos bem ─ ‘Todos’ eram os cinco pássaros, as duas cachorras, os nove peixe, os três jabutis e os sete gatos que moravam com eles num apartamento na Califórnia.

─ Seu pai ficou encarregado da tarefa, não? Ele não nos desapontaria… Afinal, aqueles são os netos de Xenofílio Lovegood.

Luna riu baixinho, apesar de ter tentado ficar séria com as provocações do marido. Dando uma pequena cotovelada para trás, suficiente para afastar Neville com um resmungão ressentido enquanto massageava a barriga, ela puxou a caixa de exemplares extras de A Noite Eterna e jogou para ele carregar.

─ Leve isso para o carro, espertinho! Vou no banheiro antes.

Fazendo um muxoxo, Neville acompanhou a esposa sumir entre as prateleiras da livraria, seu belo corpo arredondado num vestido estilo indiano lilás, e partiu em direção a saída. Acenou com a cabeça – as mãos já estavam ocupadas – para os funcionários do estabelecimento e abriu a porta de vidro com os pés. Na rua, caminhou na noite fria de outono até o carro deles, não muito longe da livraria, e apoiou a caixa no chão para que pudesse abrir o porta-malas.

Então aquela sensação de urgência o atravessou. Ela aparecia numa erupção caótica de taquicardia, estarrecimento e dificuldade respiratória, como se Neville tivesse levado um choque elétrico ou afundado nas águas mais profundas dos confins gélidos do oceano Pacífico. Um aviso mágico, misterioso, que se apoderou dos seus sentidos em momentos decisivos de sua vida… Momentos em que ele deveria estar morto, mas driblou seu destino. Driblou a própria morte.

A primeira vez que tinha lembrança daquela intuição maciça fora quando desviou de um acidente de carro na estrada interestadual da Flórida. Algo dentro dele, não uma voz, mas um sentimento, o direcionou para a pista da esquerda segundos antes da pista da direita sofrer um terrível engavetamento. O caminhão que freou bruscamente, o que estava na frente dele, seria facilmente o responsável por causar a decapitação de um jovem escritor em vias da sua primeira publicação.

Na segunda vez, ele já namorava Luna. Os dois haviam ido visitar um parque itinerante, nas imediações da cidade natal dela, Louisiana. Entre algodão-doce e barraquinhas de tiro ao alvo, Luna se viu muito empolgada para estar na principal atração da noite, o Chapéu Mexicano. Assim que viu o brinquedo rodando as cadeiras no ar, Neville teve um agouro de má sorte. Não era covardia… Ele já havia visitado muitos parques itinerantes e Chapéus Mexicanos em outras oportunidades, quando atravessava o estado com os pais para visitar a avó, mas naquela noite segurou Luna pelo pulso e praticamente ordenou ‘Eu não vou… E nem você!’.

Luna nunca tinha visto um Neville tão decidido e autoritário. Ela até se permitiu ficar magoada com ele pelo resto daquele passeio, mas isso durou até o dia seguinte, quando eles descobriram no rádio, já na estrada, que uma das atrações do parque, o Chapéu Mexicano, se desprendeu das armações de ferro e arremessou diversas pessoas ao ar, trezentos metros no ar, senhoras e senhores, que tragédia! Especificou o locutor.

‘Você sabia’, Luna constatou de imediato, olhando espantada para o marido. De algum modo, ela tinha a percepção de que não era apenas intuição. Neville sabia que tudo acabaria mal e ponto.

Tudo acabaria mal ali, agora, diante da livraria, Neville sentiu de novo. Sua consciência gritou ‘pule para o outro lado do carro’ e seu corpo reagiu dando uma cambalhota desajeitada, as pernas cumpridas demais para formar um arco gracioso, e ele estatelou agachado contra a lateral do carro, salvando seu corpo de ser alvejado pelo projétil de uma arma de fogo, segundos antes dela poder atingi-lo bem no meio do peito.

Mais dois disparos assoviaram na noite, mas todos tiros precipitados, um furando o pneu do Ford que estava no nome de Luna e outro ricocheteando contra o asfalto e escapando para o alto, como o primeiro tiro.

─ Arg! Seu idiota, porque se escondeu? ─ a voz de uma mulher berrou cheia de ódio. Neville, sentindo a pulsação esmurrando na garganta, se agachou e tentou enxergar do outro lado da rua por baixo do carro. Viu apenas um par de pernas magras num jeans apertado e botinas pretas.

“Continue aí, Neville” sua cabeça ordenou.

Mais um disparo mal calculado. Desta vez a bala acertou um carro a frente do dele. O alarme disparou e alguém gritou na outra calçada, passos apertados correndo para longe da confusão. Um carro começou a vir de encontro a eles e foi alvejado no para-choque, brecando e dando ré com os pneus cantando e fritando o asfalto.

─ MASQUEPORRA… ─ alguém gritou.

─ Apareça, Neville Longbottom! Apareça para receber seu autógrafo, seu filho da puta esnobador!

“Mais um minuto apenas” a certeza arrebatou o escritor. Suas mãos estavam suando, assim como suas têmporas… O mais prudente seria rastejar para a calçada e se esgueirar pelas laterais dos carros encostados ao meio-fio, mas seus músculos ordenaram a ele para permanecer aonde estava. Meio minuto depois as duas próximas balas atravessavam um dos carros que ele havia pensado em ir se esconder.

“Só mais vinte segundos, dezenove, dezoito, dezessete, dezesseis…”.

─ Moça, largue o revólver e mãos para o alto ─ uma segunda voz entrou em cena ─ Eu sei que as balas terminaram! PARA O CHÃO, AGORA!

─ Vá se fuder! ─ a voz da mulher berrou e um clique seco e frenético começou a ecoar pela rua mortalmente deserta.

─ EU DISSE ‘PARA O CHÃO’!

Correria e som de carne se chocando contra algo sólido se seguiu. Alguém reclamou, alguém gritou em revolta e vinte segundos depois do momento em que Neville começou a contar, uma voz anunciou:

─ A senhora está presa. Tem direito a um advogado, se não tiver um o estado pode lhe conceder…

Neville foi autorizado a esticar as pernas. Olhando por cima do capô do carro, desconfiado e trêmulo, viu um policial pressionando uma mulher contra o asfalto e terminando de algemar seus pulsos para trás. Jane virou a cabeça naquele instante e penetrou Neville no fitar. Sorriu com tristeza para ele, os dentes sujos de vermelho-sangue, e se deixou arrastar pelo oficial da lei.

Olhando naqueles olhos dementes de uma fã enlouquecida, ele teve a sensação de que o medo de morrer ali não era nada parecido a outro medo que ele enfrentou no passado, e que embora este medo viesse lhe visitar em pesadelos constantes, jamais conseguia se recordar de sua origem quando acordado.


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