Thorns escrita por MaeveDeep


Capítulo 1
thorns


Notas iniciais do capítulo

"a thorn without a rose", diz a música, "something people fear". Tive dificuldades em classificar a história, definir exatamente seu espaço-tempo e as regras de seu mundo, mas a verdade é que o texto é curto e auto-explicativo.
Julia, eu não sei onde estaria sem você. Feliz aniversário adiantado (apenas um dia!) Acho que esse é o único tipo de textão que eu sei fazer... (e não exatamente meloso, diante do casal e do tema, mas enfim.)
Enjoy!



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DIES SOLIS

As begônias têm pétalas macias. Cora tem sempre o prazer secreto de roçar a ponta dos dedos sobre as pétalas das flores que cultiva – às vezes, muito mansa, escorrega a mão e se permite tocá-las com os dedos inteiros. As begônias estão muito rosadas e muito vivas. Cora herdou o talento para jardinagem de sua mãe.

A floricultura está quase vazia naquele fim de tarde e ela aproveita a solidão. Sempre gostou dela. Sente os raios mornos de sol entrando pelas vidraças e ouve os sapatos das pessoas marcando seus passos na calçada, seus dedos nas pétalas macias da begônia e seus olhos quase fechados.

Ouve então o sino. Ergue o rosto, surpresa, e o homem que acabou de adentrar a floricultura não é nada como seu cliente habitual. Não há o que se diga sobre seus olhos e cabelos escuros, ou sobre seu terno bem cortado, o formato de seu nariz ou de seu queixo. Há algo nele que transcende sua aparência e que deixa Cora, trêmula, certa de que ele é antigo para além de seus anos.

Sabe que não pode ajudá-lo. Sustenta seu olhar, curiosa, os dedos encolhidos apenas um pouco. Sem se alterar, o visitante dá um passo à frente, e então outro e outro. Seus sapatos sociais ecoam estrangeiros na cerâmica clara e ele não tira os olhos dela até chegar bem perto.

— Boa tarde.

Cora não conhece seu sotaque e se mesmeriza pelos tons escuros de seus olhos.

— Eu estive me perguntando... espero não estar invadindo... – e seu meio sorriso é acompanhado de um gesto vago com uma das mãos; ao olhar para ela é como se a visse inteira. – A senhorita saberia me dizer em qual apartamento eu encontraria um Augusto Fontes?

A floricultura é apenas o começo de um sobrado antigo da época em que as banheiras tinham pés em formas de pequenas garras. Cora sabe do estado lamentável em que se encontra porque mora no primeiro dos apartamentos e é vizinha de Augusto há anos.

— No segundo – responde, encontrando a própria voz. – Os interfones não funcionam há tempos, o senhor terá de usar as escadas.

É quase como se ele lhe tirasse o chapéu: inclina a cabeça um pouco e sorri em satisfação.

— Muito obrigado. Tenho um recado de um velho amigo. – Abaixa os olhos e, quando os ergue, os universos nele estão faiscando. – É incrível ver begônias assim nessa época do ano.

Cora não tem como lhe explicar que tudo o que toca floresce. Tem sido assim desde menina.

— São macias.

Um meio sorriso. Mais uma inclinação mínima da cabeça e, naquele andar elegante, seu visitante se afasta. Fecha a porta da floricultura atrás de si e o sino tocando marca seus passos enquanto se encaminha para a escadaria estreita que leva aos apartamentos.

Augusto é um homem truculento que já teve dias melhores e só mora ali por herança de uma tia distante. Cora mal o conhece, mas já o viu bater o pé no chão para espantar um cachorro abandonado.

Com os dedos, volta distraída a tocar as begônias: elas estremecem e vicejam, florescendo brilhantes e muito coloridas em tons intensos de cor de rosa. Cora as aprecia, toca a parte debaixo da maior das pétalas. Devagar ela amolece sobre seus dedos, escurecendo cada vez mais.

Quando o visitante por fim volta à calçada, erguendo brevemente seus olhos para o interior da floricultura, a begônia na mão de Cora está quase inteiramente morta e ela sorri.

DIES LUNAE

Não há muito com o que se ocupar em uma floricultura quando as flores desabrocham a um toque. Cora está podando pequenos cactos para montar vasos delicados quando ouve o barulho do sino e, erguendo os olhos, ela se satisfaz ao reencontrar o visitante misterioso do dia anterior.

Não o havia tirado da cabeça por um instante, mas, afastada do magnetismo do primeiro encontro, Cora consegue observá-lo melhor. Seus olhos captam a precisão com que suas roupas foram cortadas, sua pele clara e seu cabelo muito escuro. Ele tem dinheiro, vive bem e tem a educação de um pequeno conde.

Sua avó, é claro, sempre lhe disse que o diabo era um cavalheiro.

— Boa tarde – e ainda há aquele sotaque macio. – Não pude deixar de notar suas orquídeas.

Algumas arriscam atingir os trinta centímetros. Cora sabe que passou dos limites com elas, mas são lindas.

— São ótimas para ornamentação.

— É para isso que uma flor serve?

Uma flor serve para uma carícia macia e uma morte doce, mas Cora não pode lhe dizer isso. Curva seus lábios de leve. Há terra em seus dedos e, movendo-os uns contra os outros, sente também os espinhos dos cactos e não se incomoda.

— Tem interesse por alguma em particular?

Ele olha por cima do ombro e Cora observa as linhas em seu pescoço.

— A terceira – o homem diz, devagar. – Da direita para a esquerda.

É a coleman’s coralroot que chamou sua atenção, e Cora se pergunta se ele sabe que a orquídea não deveria existir fora de um canyon no Arizona. É uma das flores mais raras do mundo.

— Não posso vendê-la.

— Eu sei. – Encontra seus olhos de novo. – Uma pena.

E naquele momento a mente muito jovem de Cora entende – por fim – que ele só retornou para vê-la. A ideia é tão estranha e tão inesperada que ela não sabe o que dizer.

— Seu nome? – ele pergunta, e é quase um convite.

— Cora – ela lhe diz, como a variação de Corinna que significa donzela.

— Koré – ele diz de volta, contudo, e a palavra é muito estrangeira e também familiar como uma memória distante de infância. – Sim. Eu estive... – contempla-a por um instante e as palavras lhe fogem. – Estive esperando por você.

E Cora percebe que esteve esperando por ele também.

DIES MARTIS

Augusto Fontes é encontrado morto e Cora sente tanto por ele quanto pelas flores apodrecidas entre seus dedos. Observa o movimento na frente da floricultura enquanto removem o corpo e percebe, sem que nada lhe seja dito, que só não sentiu o cheiro vindo de seu apartamento porque respira flores para onde quer que vá.

— O que você fez com ele?

O nome de seu visitante misterioso é Hades e a mera ideia sempre faz com que Cora se arrepie um pouco. Ele está ao seu lado, organizando os pequenos vasos de cactos sobre a bancada, e ergue os olhos com desinteresse para a comoção do lado de fora da floricultura.

— O bulbo é a porção inferior do tronco encefálico – ele lhe diz. – Sua forma lembra um cone cortado e ele é um órgão condutor de impulsos nervosos. Relaciona-se a funções vitais, como a respiração e os batimentos cardíacos, e também vários tipos de reflexos, como o piscar dos olhos. – Olha para ela de lado com aqueles olhos escuros. – Uma pancada nessa área causa morte instantânea.

Talvez ele seja médico. Talvez seja um assassino em série com um código de conduta bastante único. Talvez Cora não devesse deixá-lo entrar na floricultura e ajudá-la a pôr em ordem os vasos pequenos de decoração de escritório.

Mas lá está ele, bem sério, a poucos centímetros de distância enquanto seus dedos criam uma sequência geométrica com os cactos. Ele tem mãos precisas – é claro que tem – e seus dedos são compridos e seu método de organização bem sistemático.

— Conheço seu pai – Hades lhe diz, enquanto Cora se interessa por uma tulipa pequena. – Vocês não se parecem em nada.

Cora é por inteiro filha de sua mãe. Negar isso seria como tentar domar a mãe natureza, atribuir-lhe rédeas.

Deméter tem plena certeza de que deus é uma mulher.

— Não o vejo há anos.

Como Deméter, Cora tem a pele escura e o cabelo cacheado revolto muito macio. Encontra o olhar de Hades e se pergunta como ele pode conhecer seu pai, tão rico e tão formal, orgulhoso e alto como um prédio bancário.

— Ele cuida de você. Seu guarda-costas toma café da manhã e almoça todos os dias na delicatéssen do outro lado da rua. Troca de carro e de disfarce com frequência. Tem certeza de que não está presa aqui?

Cora não tem. A floricultura é tudo o que conhece. A tulipa é muito macia e seus dedos acariciam suas pétalas: cada flor tem seis, e Cora tem preferência pelas que possuem forma de lança.

— Quando você vai embora?

É fácil ver que ele não é dali.

— Não posso te levar comigo.

Cora se pergunta se ele só vem a uma cidade para provocar o que fez a Augusto. Se é um dos quatro cavaleiros, manso e enviesado e sempre trazendo notícias ruins.

Sua mãe o chamaria de corvo.

DIES MERCURI

O primeiro presente que Hades lhe traz vem em uma caixa de madeira pequena de mercearia forrada com papel claro. Cora geralmente as vê recheadas de morangos ou uvas, mas, quando destampa aquela oferta delicada, encontra romãs muito vermelhas.

Uma delas já está partida, posta propositalmente no centro. Hades é sempre muito preciso em tudo o que faz. Cora ergue os olhos para ele e se pergunta que mito estão recriando, que dança é aquela. Não consegue parar de pensar nele por uma noite sequer.

É um teste, seus olhos muito escuros lhe dizem. Ou, na tradução mais delicada de seus cílios compridos, uma tentativa.

Cora come as sementes da romã e percebe que nunca provou nada tão doce. Usualmente o açúcar lhe deixa um gosto pútrido na boca, adocicado demais, atrasado, como as pétalas escuras de flores mortas e frutos apodrecidos. Mas a romã é doce de verdade, nova e fresca, e Cora tem os dedos sujos e os lábios entreabertos em realização.

Hades dá um passo à frente como se houvesse esperado por aquilo, toma a caixa de seus dedos e a põe sobre a mesa. Seus olhos encontram os dela e Cora se sente sua, atrelada a ele como se houvessem se beijado e jurado amor eterno.

Não juraram. Uma parte sua duvida de que alguém como Hades seja capaz de amor. Esteve em sua pequena cidade por quatro dias e três pessoas já foram encontradas mortas pela atordoada polícia local. Mas se não é capaz de amor é capaz de eterno, Cora sabe, entende a antiguidade em seus olhos escuros e ter sido escolhida por ele faz com que sorria.

É um diabo, um corvo, e sua mãe tão fértil e tão viva gritaria diante do ar de desolação que ele traz. Mas Cora sabe que tudo retorna para a terra e depois dela floresce, e por isso se aproxima dele e toma seus dedos finos nos seus como se dissesse sim.

Hades sorri e Cora vê pela primeira vez calor em seus olhos.

DIES IOVIS

O carro é sofisticado e caro como Cora havia imaginado que seria. Sentada ao lado de Hades enquanto ele dirige pela rodovia escura, ela cruza as pernas e afasta o cabelo dos próprios olhos. Está usando um vestido que não chega aos seus joelhos e é da cor de champanhe, seu antigo avental estampado por rosas abandonado na floricultura escura.

Não o usará de novo tão cedo.

Hades pôs pérolas ao redor do seu pescoço e uma tiara sobre seus cachos castanhos. Mas está descalça, movendo os pés de leve enquanto sente o frio do ar condicionado ligado sobre eles. A seda macia contra sua pele é como uma carícia.

— Para onde vamos?

— Abra o porta-luvas.

Há um revólver ali dentro e também uma agenda de capa escura. Poderia ser o caderno de rascunhos de um artista, mas Cora encontra nomes e cidades listados numa caligrafia elegante e pequenas datas dividindo as entradas.

— Quem são eles?

— Pessoas perigosas.

A risada que escapa dos lábios de Cora é doce como a romã, um som que talvez nunca houvesse soado no interior de couro daquele carro.

— Como você?

Ele lhe sorri de verdade, mesmo que com a atenção na estrada, a pele macia de seu rosto cedendo e formando vincos ao redor de seus lábios e também de seus olhos.

— Não há pessoas como eu, amor. Esses são apenas pequenos contratempos.

Pequenos contratempos listados em tinta preta. Alguns ainda estão vivos, comendo, rindo, conversando, sem saber que um homem com voz mansa e uma arma no porta-luvas vem atrás deles ouvindo Eagles baixinho com uma florista morena no banco do carona.

— Sabe – começa – se está me sequestrando agora, deveria ter guardado as romãs para depois.

— Eu não chamaria de sequestro – Hades murmura, sua atenção na estrada deserta. – Não quando você veio de bom grado.

— Não é o que meus pais vão pensar.

— Você se importa?

— Fui Cora a minha vida inteira – ela diz apenas, e, ao balançar a cabeça, sente seus cachos castanhos contra seus ombros nus e suas costas expostas. – É hora de nascer de novo.

Hades mantém apenas uma das mãos no volante e estende a outra para segurar a dela. Leva-a até seus lábios e a beija sem tirar os olhos de seu rosto, gentil e cavalheiro do começo ao fim. Cora sabe que acabou de virar uma rainha.

— Perséfone – ele lhe propõe, como se a seduzisse.

Seus dedos se encolhem contra a palma fria de sua mão.

Em sua nova vida, irá descobrir que pessoas e flores não são tão diferentes assim. O barro ao barro, sua avó costumava rezar, lentamente, o pó ao pó, a terra à terra, nada começa que não tenha que acabar, tudo o que começa nasce do que acabou.

Encontra o olhar de Hades e recepciona a morte com um sorriso.

— Perséfone.

Esteve esperando por ele por anos.

{...}


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Notas finais do capítulo

A citação da avó de Cora, aqui no final, é na verdade de Saramago.
Comentários são recebidos com flores e um lindo banquete.
Mil beijinhos.