Enquanto você dormia escrita por Any Marie Whitlock


Capítulo 5
Capitulo 2 parte 3




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Durante as semanas que passei com tia Esme, não me aventurei além das lojas mais próximas de sua casa. No dia em que finalmente fui com Marcel e Félix ao local que esperava vir a ser minha nova casa, eu tinha apenas uma ideia muito vaga de como seria o castelo, com base apenas no vislumbre que tivera dele na chegada à cidade.
Eu esperava que fosse grande e bem fortificado, mas, quando enfim emergimos do labirinto de ruas sinuosas de St. Eugene, fiquei boquiaberta ante a simples massa da fortaleza que se esparramava, desafiadora, no alto do morro à minha frente. Grossas muralhas de pedra pareciam haver irrompido da terra para cercar o amontoado de torres na parte interna. Atrás das ameias, os torreões espetavam o céu, com algumas janelas estreitas sendo a única indicação de que lá dentro viviam pessoas.
Por um momento, o peso daquilo fez meu ânimo esfriar, e fui invadida por uma súbita relutância em entrar. Criada ao ar livre, com terras que se estendiam em todas as direções, eu nunca havia pensado no que significaria viver encerrada entre paredes.
Marcel e Félix haviam continuado a avançar, juntando-se a uma multidão de carruagens, carroças e outros viajantes numa subida íngreme. Obriguei-me a me livrar daquele pressentimento tolo de perigo e corri para alcançar meus acompanhantes. O exterior sombrio do castelo devia esconder luxos deslumbrantes, falei a mim mesma. Caso contrário, por que o rei viveria ali? Embora eu logo viesse a ser seduzida pela beleza do interior, nunca esqueci aquela primeira reação visceral. A maioria via aquelas muralhas como proteção contra o perigo, mas eu havia reconhecido, em algum lugar nas profundezas de minha alma, que nem todas as ameaças vinham de fora.
A massa de pessoas moveu-se em direção a um portão em arco, com guardas postados de ambos os lados.
— Por aqui – disse Marcel, empurrando-me à sua frente e puxando o filho para o seu lado.
O rapaz olhava direto para a frente, como tinha feito desde nossa saída da casa da minha tia, aparentemente distante. Tinha a constituição leve de um rapaz a alguns anos da masculinidade da vida adulta, mas seu nariz reto e sua pele alva pressagiavam a beleza que ele desenvolveria. A cabeleira farta e escura tinha um corte irregular e caía sobre a testa de forma desigual, e os olhos me intrigavam com sua seriedade. Os poucos garotos que eu conhecera na minha aldeia eram fanfarrões ou então de uma timidez canhestra ao conversarem com meninas da mesma idade. Nenhum jamais parecera tão à vontade na minha presença quanto Félix. Até seu silêncio, tão desconcertante no começo, tinha se tornado estranhamente reconfortante. Seu pai matraqueava o bastante pelos dois.
Marcel fez um aceno com a cabeça para um dos guardas e tirou do ombro a sacola que carregava. Depois de abri-la, começou a descrever em termos amorosos os sapatos em seu interior. O guarda deu uma olhadela pouco interessada na sacola e fez sinal para cruzarmos o portão.


Entramos num pátio grande, tão agitado e barulhento que eu não soube para onde olhar primeiro. Carruagens passavam tão perto de nós que cheguei a sentir o açoite do vento enquanto se deslocavam, e o caminho à frente foi barrado por um círculo de homens que comparavam espadas, se gabando. Servos vestindo a libré da realeza gritavam ordens para um grupo de trabalhadores. Levantei os olhos por sobre a multidão diante de mim e vi o castelo elevar-se para o céu.
Era uma visão majestosa de pedras cinzentas, delimitada por quatro torres enormes, todas montando guarda sobre as figuras minúsculas que se aglomeravam abaixo. Lembro-me tão bem do momento em que parei ali, enfim cara a cara com o objeto dos meus sonhos! Ainda recordo o arrepio que me percorreu da cabeça aos pés, aquela mistura extasiante de medo e expectativa frente ao início de uma vida nova. Deixando de lado minhas dúvidas anteriores, ansiei por participar da ação que me cercava, por desempenhar algum papel, ainda que ínfimo, na preservação daquela grandiosidade.
Mais adiante, uma via pavimentada levava a uma pequena rampa que subia até as portas de entrada, decoradas com brasões de ouro.
— É por ali que entra a gente de alta estirpe – disse Marcel. – O resto de nós batalha para abrir caminho pelos fundos.

Ele segurou minha mão e me puxou para seu lado quando uma carroça veio desabalada na nossa direção. Percebi que a maior parte da movimentação no pátio aumentava e diminuía em torno de um arco do lado esquerdo do castelo. Acotovelando-nos com os outros na passagem, emergimos em outro pátio de proporções similares, porém ainda mais abarrotado. Do lado oposto a nós, cavalariços conduziam cavalos nos estábulos.
Logo à minha direita, portas se abriam para o nível inferior do castelo; a julgar pelas lareiras imensas que vi lá dentro, calculei que levavam às cozinhas. À nossa esquerda, trabalhadores descarregavam mantimentos das carroças para os depósitos. Ao passarmos, vislumbrei uma cesta do tamanho de uma gamela para cavalos, cheia de cebolas até a borda. A seu lado havia sacos de farinha e aveia quase da minha altura.
— Cuidado! – gritou Marcel.

Distraída com essas imagens, quase pisei numa mistura de lama e comida apodrecida. Levantei a saia acima dos tornozelos e a enrolei com força em volta das pernas. Uma voz atrás de mim gritou “Cuidado aí!”.
Antes que eu tivesse tempo de me virar, Félix passou um braço em volta dos meus ombros e me puxou para trás, livrando-me da colisão quase certa com um barril atirado dos depósitos. Era o mais perto que eu já estivera de um jovem da minha idade, e fiquei surpresa com sua força e a firmeza de seu peito quando me choquei contra ele.
— Ei! – gritou Marcel para os homens do lado de dentro. – Tomem cuidado!
— Tome conta da sua garota, isso sim! – gritou alguém de volta. – Isto aqui não é lugar pra ficar passeando!
Comecei a agradecer a Félix por sua vigilância, mas ele recuou e desviou o rosto antes que eu terminasse. Será que aquele jovem de aparência imperturbável tinha se abalado com nosso quase acidente? Ou será que, como eu, ficara momentaneamente perturbado com o súbito contato entre nossos corpos?
— Melhor irmos andando – apressou-nos Marcel. – Não sei exatamente onde encontrar a governanta, mas perguntaremos nas cozinhas.
Andamos com cautela por entre a sujeira, seguindo Marcel, até entrarmos num cômodo com três lareiras em brasa, cada uma ocupada por um caldeirão pendurado. O calor era asfixiante.
Uma mulher suada, de avental cheio de manchas e cabelo emaranhado, deu um passo e parou à nossa frente.
— O que vocês querem? – perguntou, desconfiada.
— Tenho uma entrega para lady Winter – respondeu Marcel, com a pompa de um cavaleiro que se aprontasse para uma audiência com o rei.
— Esperam por mim no Grande Salão. Esta mocinha veio ver a Sra. Norton. A mulher me olhou de cima a baixo. Sem se impressionar, deu um suspiro de irritação.
— Você vai encontrá-la no Salão Inferior – informou, apontando para o outro lado do aposento. – Passando por aquela porta, desça o corredor e suba a escada.
— Então é aqui que nos separamos – disse-me Marcel. – Direi a sua tia que a trouxemos em segurança.
Olhei para Félix. Mal havíamos nos falado, mas ele tinha uma firmeza no porte que me fez lamentar isso. Parecia estar prestes a me dizer alguma coisa, mas seu pai nos interrompeu com uma profusão de bons votos, antes de dar meia-volta e se retirar. Félix baixou a cabeça num breve aceno e seguiu o pai até os dois desaparecerem de vista.
Sozinha e amedrontada, senti meu ânimo fraquejar, mas não me arriscaria a despertar a ira da cozinheira ficando à toa naquela cozinha caótica. Segui as instruções dela, andando com um ombro sempre encostado numa parede para não ser derrubada pelas pessoas que passavam carregando sacos e baldes à minha volta. A procissão interminável me trouxe à lembrança as formigas que marchavam pelo chão de terra batida de nossa casa, à procura de migalhas largadas por meus irmãos.
Ruborizada pelo calor da cozinha e sendo empurrada de um lado e de outro no corredor estreito, senti-me tonta ao subir um lance de degraus largos de madeira e emergir num cômodo comprido, que se estendia até onde eu conseguia enxergar.
Tempos depois, eu soube que esse Salão Inferior  era o ponto central de encontro de todos os que trabalhavam ali. Era lá que a criadagem fazia suas duas refeições diárias, recebia ordens da governanta, saudava o ano-novo e chorava a morte dos seus. Observei aquela longa extensão de espaço, tranquilizada por sua impressão de simetria e ordem.
Mesas e bancos simples de madeira alinhavam-se ao longo de todos os lados. A meu redor, as paredes de pedra cinzenta elevavam-se até as vigas maciças que sustentavam o teto alto.
Avancei lentamente, olhando de relance para as salas que saíam do salão. Uma continha teares e cestos de fios para tecer, em outra havia pessoas fazendo gravações em aparelhos de jantar e castiçais. A seguinte era cheia de peças de tecido e carretéis de linha, a sala de costura.
Estaquei, tentando evocar uma imagem de minha mãe como uma jovem costureira, debruçada sobre um pedaço de seda. Para minha aflição, só consegui visualizar a mãe que eu havia conhecido, arruinada por anos de vida difícil, e a lembrança trouxe uma dor latejante.
— Posso ajudá-la em alguma coisa?
Virei-me abruptamente, desnorteada.
Uma jovem alta e esbelta, de pele e cabelo claros, usando um avental branco imaculado, observava-me com uma expressão que era um misto de desconfiança e curiosidade.
— Estou procurando a Sra. Norton.
Depois de ponderar por um momento, ela pareceu concluir que eu não representava um perigo.
— Por aqui – falou.
Guiou-me até a outra extremidade do salão, em direção a uma porta entalhada com figuras de parreiras e flores. Fiquei maravilhada com o fato de uma mera governanta viver num lugar decorado com mais elegância do que a casa mais refinada da minha aldeia. A porta estava entreaberta, mas a moça parou diante dela e bateu.
— Entre – ordenou uma voz.
Comparada ao sombrio Salão Inferior, a sala era iluminada e acolhedora. Em frente à porta, uma janela grande dava para o pátio.
Havia uma mesa coberta de papéis e alguns livros, encostada numa parede, abaixo de uma tapeçaria que retratava um leão e um unicórnio. Ao longo da parede oposta ficavam uma cama e um baú de madeira multicor marchetado. Se esse era o quarto da governanta, eu não conseguia imaginar quão luxuoso seria o da rainha.

A Sra. Norton estava sentada à mesa e não disse nada quando entrei no quarto. Depois eu soube que ela comandava mais pelo silêncio do que pela estridência. Num castelo em que a atividade nunca cessava, sua presença serena a distinguia; ela era capaz de atrair a atenção de uma sala inteira com meia dúzia de palavras bem escolhidas. Não consegui saber ao certo quantos anos teria; o rosto redondo exibia as rugas da meia-idade e o cabelo tinha mais fios grisalhos que castanhos, mas os olhos não apresentavam o cansaço tão comum nas mulheres da minha aldeia. Ela usava um vestido preto simples e solto que envolvia um corpo que se tornara mais volumoso e mais flácido com o tempo. Curvei a cabeça, como tia Esme havia me ensinado a fazer, em sinal de respeito aos mais velhos.
— Meu nome é Branca Morgan – informei. – Acho que a senhora conheceu minha mãe, Carmem.
— Carmem.
A Sra. Norton murmurou o nome devagar, como se não estivesse acostumada àquele som. Levantou-se da mesa e se aproximou para me examinar mais de perto. Em seguida, pôs a mão no meu ombro e sorriu.
— Sim, agora estou vendo – comentou.
— Você tem o mesmo porte. Carmem sempre teve uma boa postura.
— Sim, senhora – concordei, lembrando-me de minha mãe recurvada sob o peso de um bebê de um lado e um balde de água de outro.
Se a tivesse visto nos últimos tempos, a Sra. Norton talvez não tivesse reconhecido a mulher que me criara.
— Onde ela mora atualmente? Tem passado bem?
As palavras não vieram com facilidade:
— Ela faleceu há menos de um mês.
Senti as lágrimas prestes a inundar meus olhos.
— Ah, que pena!  
As palavras educadas tiveram um toque de sincera tristeza.
— Ela me disse para procurar a senhora – declarei, forçando-me a firmar a voz. – Eu tinha esperança de conseguir uma vaga para trabalhar aqui.
— Quantos anos você tem? – perguntou ela.
— Catorze.
— Se cresceu numa fazenda, deve estar acostumada ao trabalho árduo.
— Costumo avisar às moças que as camareiras daqui não têm uma rotina fácil. Mas é provável que seja menos difícil do que a vida que você conheceu. Pelo menos você não estará cheirando a estrume de vaca no fim do dia!
A Sra. Norton riu, e me apanhei sorrindo também. Ela estendeu a mão e, com os dedos, afastou meus lábios para examinar meus dentes, como faria com um cavalo. Correu os olhos por meu corpo, fazendo uma pausa nos braços. Pegou uma de minhas mãos e virou a palma para cima. A aspereza dos meus dedos atestou minha vida de trabalho duro, embora eu me orgulhasse de ter conseguido evitar a vermelhidão e as rachaduras na pele que eram muito comuns nas famílias de lavradores. A Sra. Norton meneou a cabeça em sinal de aprovação.
— Que prendas sua mãe lhe ensinou? Costura, presumo?
— Aprendi a bordar ainda pequena. Ela também me ensinou a ler e escrever, o que faço razoavelmente bem.
— Ah!
 A Sra. Norton pareceu satisfeita e fez um gesto para a mesa atrás dela.
— As governantas que me antecederam mal conheciam o alfabeto, e nenhuma sabia cuidar das contas da cozinha como eu. A rainha é uma grande defensora da educação das mulheres. Fez até a gentileza de me dar alguns livros. Se você sabe ler, isso pode lhe ser útil aqui, depois que houver provado sua capacidade.
— Obrigada. Tudo o que sei é graças à minha mãe.
— Fico contente por ela ter lhe criado assim.
Houve uma pausa na conversa, longa o bastante para me deixar com medo de que a Sra. Norton estivesse buscando uma forma polida de recusar meu pedido. Desde então me pergunto se ela pensou em me contar tudo o que sabia sobre a desonra da minha mãe. Será que já naquela época teria considerado o perigo que eu poderia correr em consequência disso? Ela poderia ter me alertado, ter me mandado embora. Mas não o fez. Guardou os segredos de minha mãe.
— Você é bastante apresentável para uma menina do campo – observou, enfim. – Ainda está crescendo, é claro, mas tem grande potencial. Nunca desmereça a importância da aparência, especialmente aqui. Você também tem um recato que considero muito agradável. Sim, sim, creio que a rainha a apreciará bastante.
A rainha? Antes que eu tivesse tempo de perguntar à Sra. Norton o que queria dizer com isso, ela prosseguiu:
— Vou deixá-la aos cuidados de Rosalie. Será bom você aprender com ela, com seu exemplo. Rosalie!
A criada que me acompanhara até o quarto da Sra. Norton entrou correndo pela porta, tão depressa que pensei que ela devia estar escutando tudo do lado de fora, bem de perto.
— Mostre a Branca o quarto das camareiras. Há uma cama vazia, não há?
— Mais de uma.
— Ótimo. Fique com ela nos próximos dias. Se tudo correr bem, ela poderá assumir as suas tarefas, e passarei você para o salão.
— Obrigada, senhora – disse Rosalie, com um sorriso encantado.
A Sra. Norton tornou a voltar a atenção para mim.
— Venha aqui no primeiro dia de cada mês, para receber seu pagamento. Duas moedas de ouro, para começar, e se você tiver um bom desempenho elas passarão a três. Era mais do que eu jamais havia sonhado.
— Obrigada.
—  Então, vão andando – disse a Sra. Norton, com um sorriso bem-humorado. – Rosalie, venha ver-me no sábado, para conversarmos sobre as suas perspectivas, está bem?
Depois que a Sra. Norton e eu terminamos de nos despedir, Rosalie me segurou pelo cotovelo e me puxou de volta para o Salão Inferior.
— Você é esperta, não é? – disse, olhando-me com um ar de admiração.
— Não sei o que quer dizer.
— A Sra. Norton não aceita qualquer menina humilde que aparece à porta dela! Vocês são parentas?
Balancei a cabeça, negando.
 – Mas ainda assim ela designou você aos aposentos reais, em vez de mandá-la carregar baldes de lavagem na cozinha. É um sinal e tanto de prestígio. Tudo o que eu tinha feito fora invocar o nome da minha mãe, mas alguma coisa me disse para guardar essa revelação comigo. Haveria outras pessoas ali que se lembrariam da desonra de mamãe, e ela não gostaria que eu fosse maculada por sua vergonha. Sem se deixar perturbar por meu silêncio, Rosalie engatou o braço no meu e me levou em frente:
— Bem, graças a você, meus dias de carregar lenha e urinóis logo chegarão ao fim. Agora somos amigas – decretou, com uma fala ligeira e animada que me deixou imediatamente à vontade.
Andamos até uma pequena alcova ligada ao salão, onde uma escada estreita subia em um caracol em direção à escuridão acima da nossa cabeça.
O cheiro do ar úmido e bolorento me causou um momento repentino de pânico. Meu corpo todo protestou contra a entrada num lugar assim, isolado de luz, engastado num anel de pedra.
— Venha! – chamou Rosalie do alto da escada.
Apressei-me a segui-la, com pavor de ficar para trás. Ela deve ter visto o medo em meu rosto, pois parou por um instante para me tranquilizar:
— Parece um labirinto, eu sei, mas logo, logo você aprenderá a andar por aqui.
A escada atravessava o centro da fortaleza original, levantada na época dos antepassados do rei, quando a construção tinha sido pouco mais que um forte para soldados. Com o tempo, foram acrescentadas torres e alas, todas erguidas para abrigar o número crescente de nobres que transformavam a corte em seu lar. À medida que subimos, procurei acompanhar as descrições rápidas que Rosalie foi fazendo de cada andar por que passávamos.
Um corredor levava aos aposentos de Estado, onde eram tratados os assuntos oficiais; os quartos de dormir da família real ocupavam o andar acima desse. Continuamos a subir, até que a escada terminou num corredor estreito.
— Chegamos – anunciou Rosalie.
Fez um gesto para que eu a seguisse e passamos por uma série de cômodos, a maioria de portas fechadas.
— Os servidores de nível mais alto e os casados têm quartos particulares – explicou. – O resto de nós não tem a mesma sorte.
Ela me levou até o fim do corredor, onde entramos num aposento amplo, de teto inclinado, imediatamente abaixo do telhado do castelo. Fileiras de camas simples estendiam-se a partir da porta, cada uma com um baú de madeira a seus pés.
— O cômodo das criadas – anunciou Rosalie. – Venha, vou arranjar um lugar para você perto de mim.
Examinei o quarto enquanto a acompanhava. Devia haver vinte camas enfileiradas nas paredes. Rosalie apontou para a sua, no fim de uma fileira.
— Agora Kate está do meu lado, mas vou passá-la uma cama para lá. Ponho a culpa na Sra. Norton – disse.
Abriu um baú e tirou uma braçada de roupas, empilhando-as de qualquer jeito noutro baú mais adiante.
— O lado de cá é muito melhor. Você não será incomodada pela porta abrindo e fechando.
— Todas as moças da criadagem dormem aqui? – perguntei.
— De jeito nenhum! – exclamou Rosalie, rindo. – Há outro quarto deste tamanho do lado de lá, e os rapazes ficam na outra ponta do corredor. Longe o bastante para se resistir à tentação, pelo menos na maioria dos casos.
A Sra. Norton não tolera ninguém andando sorrateiramente por aí, e qualquer moça apanhada no lado dos rapazes é despedida sem receber seu pagamento. Ela dirige o serviço com rigor. Mas você não parece ser do tipo que desobedeceria às regras dela.
Rosalie pegou minha sacolinha e a pôs dentro do baú. Minhas poucas posses pareceram ainda mais escassas naquele imenso vazio.
— Quando começar a receber seus pagamentos, você vai encher isso – afirmou Rosalie. – Também vamos ver as costureiras para lhe arranjar um vestido novo.
— Quais são as minhas obrigações?
— As de camareira, como todas as outras garotas quando começam. Acender as lareiras toda manhã. Esvaziar e lavar os urinóis. Fazer qualquer coisa que precise ser feita. Estou encarregada dos aposentos da rainha, mas no momento ela está viajando, por isso tenho tempo para treinar você. Depois a Sra. Norton decidirá de qual das damas você vai cuidar.
— Essas damas são muito exigentes? – perguntei, com medo de que minha inexperiência as desagradasse.
— Algumas são – respondeu Rosalie, com um sorriso irônico. – Mas, na maioria dos casos, você vai descobrir que elas nem notam a sua presença. A Sra. Norton nos ensina a trabalhar como espíritos invisíveis, sem jamais conversar com nossas patroas nem olhar para elas, a menos que se dirijam diretamente a nós. Já vi criadas serem despedidas no ato, por agirem com excesso de familiaridade. Mas, se uma das damas puxar conversa com você, faça o melhor possível para encantá-la. A aliada certa pode fazer toda a diferença no seu progresso aqui.
A aliada certa.
Embora parecesse improvável que uma garota como eu viesse a despertar a atenção de qualquer senhora bem-nascida, lembrei-me de uma coisa que minha tia me dissera, pouco tempo antes: O poder é a verdadeira moeda da corte. Os que o possuem brandem-no sem piedade, sejam criados, sejam cavaleiros. Eu havia ingressado nesse mundo sem ter laços com qualquer família ou facção. Se quisesse conservar meu emprego e ganhar o bastante para garantir meu futuro, deveria ter um defensor. Alguém poderoso o bastante para me proteger de ameaças que eu não compreendia plenamente. – Não se preocupe – disse Rosalie. – Vou lhe mostrar tudo. Mas, primeiro, vamos resolver a questão do seu vestido. A Sra. Norton vai me dar uma bronca se você não estiver com a indumentária certa.
Ela rodopiou na direção da porta e me apressei em acompanhar seus passos. Achava que voltaríamos à escada pela qual havíamos subido, mas Rosalie me guiou a uma escadaria diferente. De ambos os lados, um labirinto de corredores escuros e estreitos perfurava as paredes grossas, permitindo que os criados atravessassem o castelo sem serem vistos. A ideia de andar sozinha por aquelas passagens úmidas causou-me um aperto de pavor no peito, e me mantive junto de Rosalie, temendo me perder para sempre se ela sumisse da minha vista. Ao nos aproximarmos da base da escada, ouvi ao longe um som de trombetas.
— É o rei Carlisle, voltando da caçada – disse Rosalie, e me olhou com um sorriso travesso.
— Ele vai passar pelo Grande Salão. Quer vê-lo?
Fiz que sim, ansiosa.
Ela me conduziu a uma colunata que ladeava um corredor largo.
Paramos atrás de uma das colunas, na metade do caminho, para espiar pelos lados dela. Antes de poder ver alguém, ouvi a comoção: um chocalhar de correntes, armaduras e espadas, acompanhando o som trovejante de botas pesadas. Alguns jovens pajens passaram diante de mim, seguidos por um grupo de homens que carregavam arcos longos e aljavas cheias de flechas. Temi não conseguir avistar o rei em meio àquele amontoado de gente.
E então ele passou, perto o bastante para que eu o tocasse. É uma imagem que ainda carrego comigo,é assim que mais gostaria de lembrar dele: no auge do poder, supremamente confiante em que seu destino poderia ser moldado como ele desejasse. O rei não era o homem mais alto do grupo e usava um traje de caça, em vez de manto e coroa, mas tinha um porte de tanta autoridade que minha atenção se fixou nele. Vi seu nariz longo e proeminente e o queixo pontudo formando um perfil marcante o suficiente para ser reconhecido numa moeda. O cabelo desgrenhado e a barba eram de um loiro escuro, com toques de mais claros a ponta, e ele tinha ombros largos e braços musculosos. Senti um arrepio de empolgação e compreendi por que os homens eram capazes de seguir um líder como ele numa batalha, sem levarem em conta a própria segurança.
Segundos depois de passar o grupo de homens, o salão voltou ao silêncio.
Aos poucos, outros criados correram da colunata, onde também haviam se escondido às pressas para sair do caminho do rei.
— Ele é como você o imaginava? – indagou Rosalie.
— Ainda mais bonito – disparei, e em seguida desviei o rosto, envergonhada pelo meu fervor. Rosalie riu.
— Ah, você devia tê-lo visto há alguns anos. Ele envelheceu.
— E a rainha? – perguntei. – Também é bonita? Rosalie deu de ombros.
— A maioria diz que sim, mas é uma aparência bem diferente da dele. Você poderá julgar por si, quando ela voltar à corte.
Agora, vamos cuidar do seu vestido. Não vai demorar para servirem o jantar no Salão Inferior, e isto você não pode perder. Aqui não ficamos só com as sobras. Comemos quase tão bem quanto o rei.
Ainda me lembro da sensação daquela primeira noite, deitada sob lençóis recém lavados, com as pernas explorando a novidade de uma cama só minha. Apesar dos sons abafados das outras criadas, senti-me profundamente só. Sem os grilhões do passado, mas como uma estranha naquele mundo novo. Queria desesperadamente fazer parte daquele lugar mágico, onde mulheres se gabavam de seus conhecimentos e homens marchavam acompanhados pelo clangor de espadas. Minha mente evocou a lembrança do rei Carlisle atravessando o salão em passadas orgulhosas. Se a rainha tivesse metade da magnífica aparência dele, os dois formariam um casal imponente. Como eu poderia ser digna deles? E, se eu não fosse considerada boa o suficiente e me mandassem embora, como é que meu coração já dilacerado sobreviveria a esse golpe?


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