Enquanto você dormia escrita por Any Marie Whitlock


Capítulo 2
Capitulo 1 Parte 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/722436/chapter/2

Na primavera em que completei 14 anos, temporais terríveis transformaram nossos campos em rios de lama, atrasando a semeadura, enquanto nossas reservas de alimento para o inverno se esgotavam.
Papai havia começado a falar em me casar logo, dizendo que seria menos uma boca para alimentar, e minha fome era tanta que eu bem poderia ter dito “sim” a qualquer homem que me oferecesse um prato de comida.
Embora algumas garotas explorassem a aparência para melhorar suas perspectivas de casamento, eu não achava que essa tática pudesse me favorecer. Ao contemplar meu reflexo na água do rio, não via sinais da beleza marcante de algumas outras jovens da aldeia. Enquanto o cabelo delas era de um louro com fios dourados e seus olhos, azuis ou verdes, minha cabeleira farta e ondulada era castanho-escura. Meus olhos pretos, apesar de grandes e agradavelmente emoldurados por cílios compridos, eram incapazes de reproduzir os olhares sedutores que outras mulheres haviam aperfeiçoado; eu fitava o mundo com um olhar direto e franco. Notava alguns sinais a meu favor: minha pele era alva e lisa e as curvas de meus quadris e seios davam a meu corpo uma solidez saudável. Com a roupa certa, eu poderia vir a ser uma esposa adequada para um comerciante, destino que se tornara o ápice da minha ambição.

No fim das contas, outro casamento na aldeia permitiu que eu adiasse o meu. A esposa de um rico senhor de terras contratou minha mãe para bordar o enxoval de cama e mesa de sua filha, prestes a se casar, e nos salvou da inanição. Arquei com o máximo que pude desse trabalho, sentada junto ao fogo até altas horas da madrugada, de agulha na mão, estreitando os olhos para as flores que eu criava com linhas coloridas. A vida em nosso casebre girava em torno da lareira, único lugar em que o calor era assegurado.
Minha mãe passava horas ali, cozinhando e esquentando água para lavar a roupa; quando fazia frio demais para secá-la do lado de fora, pendurávamos a roupa de baixo molhada numa corda diante da lareira e tínhamos de lutar com as peças balançantes para arranjar um lugar para nós mesmos.
A farinha, o sal e a aveia com que nosso trabalho de costura foi pago permitiram que nossa família sobrevivesse mais um mês, e achamos que o pior havia passado.
E então o gado adoeceu.
Tínhamos três cabeças: um touro velho, que meu pai usava nos campos, e duas vacas leiteiras. Fui a primeira a notar as crostas vermelhas nas tetas delas, ao ordenhá-las certo dia de manhãzinha. Pareciam escamosas, mas não havia sinal de sangue, por isso não lhes dei maior atenção. Só no dia seguinte, quando uma das vacas me olhou com expressão atordoada, encostando-se contra a parede do celeiro, foi que percebi que havia algo terrivelmente errado.
Quando saí para chamar meu pai, vi-o caminhando na minha direção, entre resmungos frustrados. Ele costumava baixar a cabeça quando estava com raiva, soltando xingamentos enquanto andava, e era o que fazia nesse momento.
— Pai... – comecei.
— Quieta! – vociferou ele. – A Molly morreu.
Fiquei arrasada. Molly era o nome que dávamos à maior de nossas porcas da vez; sempre que uma Molly morria, a maior fêmea seguinte assumia o nome, e assim sucessivamente. Essa última Molly tivera uma ninhada de leitões não fazia uma semana. Se não estivesse viva para amamentá-los, todos poderiam morrer, e com eles iria a nossa carne do resto do ano.
— O que aconteceu? – perguntei, seguindo-o no caminho de casa.
— Varíola.
Não era preciso dizer mais nada. A varíola era uma doença que varria as fazendas sem aviso, fazendo rebanhos e pessoas caírem com uma imprevisibilidade alarmante. Podia ser branda e apenas enfraquecer suas vítimas por alguns dias, mas também podia ser devastadora. Contava-se que certa vez, anos antes de eu nascer, havia matado famílias inteiras na aldeia.
Minha mãe foi a primeira a notar as manchas no meu rosto, no dia seguinte. Eu havia acordado com uma tosse seca e rouca e com febre, mas isso, por si só, não era razão para me ver liberada de minhas tarefas cotidianas. Só uma doença muito grave permitiria o repouso na cama dos meus pais, com seu colchão de penas. Nós, os filhos, em geral dormíamos amontoados no sótão, embaixo das vigas.Era tolerável quando eu tinha que dividir o espaço apenas com Alec, o irmão de idade mais próxima à minha, mas, à medida que a família aumentava, o lugar foi ficando cada vez mais abarrotado. Era comum eu acordar assustada no meio da noite por causa de um pé chutando minha barriga ou um braço jogado sobre o meu rosto.
— O que é isso? – perguntou mamãe, olhando para minha bochecha.
— O quê? – falei.
— Essas manchas. – Ela afastou o cabelo do meu rosto e pôs a palma da mão na minha testa.
— Você está ardendo em febre.
Eu já ia argumentar que me sentia bem quando vi o medo no rosto dela. Mamãe segurava meu irmão caçula num dos braços e o pressionou mais de encontro ao corpo, longe da ameaça da minha doença. A quentura que eu havia tentado ignorar percorreu meu corpo feito um relâmpago, deixando um calafrio em seu encalço. Minha pele coçou, como se a varíola estivesse prestes a estourar em dolorosas erupções vermelhas.
Mamãe deitou o bebê no berço junto à lareira e tirou meu vestido de lã, deixando-me apenas de combinação.
— Você precisa de repouso – falou com urgência, empurrando-me para sua cama. – Se tomar cuidado, ouvi dizer que a varíola pode passar sem deixar danos permanentes.
Queria acreditar nela. Aos 14 anos, que menina já achou que é mortal?

Os dias seguintes se passaram num crepúsculo eterno e nebuloso, pois essa doença atormenta suas vítimas com uma insônia que não permite alívio dos horrores.Meu corpo ardia de dor, conforme as bolhas irrompiam em minha pele, mas eu não conseguia fugir para o alheamento do sono. Delirante, tinha visões do castelo e me imaginava andando por seus corredores largos.
Eram quentes, sempre quentes, enquanto eu passava por uma lareira após outra. Eu olhava embasbacada para as chamas, admirada com a extravagância de deixarem lareiras acesas dia e noite.
Tenho vagas lembranças de minha mãe sentada à beira da cama, inclinando-se para passar em minha testa um pano úmido. Depois, curvando-se para fazer o mesmo com meu irmão Alec, a meu lado, e com outro irmão ao lado dele. Ela nos observava com o rosto inexpressivo, os olhos fixos, como se a quentura da nossa febre os tivesse cegado. O bebê ficava deitado em seu colo, numa quietude sinistra. Eu fechava os olhos, resignada a morrer.
Mas não era esse o meu destino. Depois do que poderiam ter sido horas ou anos, tive consciência do travesseiro manchado de suor sob meu rosto e senti o peso do cobertor estendido sobre meu peito. Meus olhos ardiam de cansaço, mas a febre que tanto me atormentara tinha cedido.
Vi Alec deitado junto de mim, com o rosto vermelho e deformado pelo inchaço. Ouvi sua respiração, que fazia o ar entrar com esforço e sair num sibilo.
O resto da cama estava vazio. No lado oposto do cômodo, brasas tênues brilhavam na lareira. Nossa casa, em geral movimentada e cheia, estava em silêncio.
Sentei-me depressa demais e minha cabeça latejou com o esforço. Tive de fechar os olhos para afastar as imagens que dançavam diante de mim. Quando a sensação de afobação passou, abri os olhos novamente. À penumbra do fogo quase apagado, vi uma pilha de roupas jogada no chão.
Mais uma vez, a respiração de Alec estremeceu e ele pareceu prestes a exalar o último suspiro com o esforço. Olhei para o monte de roupas e notei um movimento.
Um rato, pensei. Eles entravam em casa de vez em quando, mas raramente se demoravam, pois comíamos cada migalha de que dispúnhamos. Levantei-me da cama, obrigando-me a arranjar forças para ficar de pé e enxotar o intruso. Só depois de atravessar o cômodo com passos trôpegos me dei conta de que a pilha de roupas era minha mãe.
Desabei ao lado dela, que estava embrulhada em sua capa, com o capuz cobrindo a cabeça. As pernas dobravam-se junto ao peito, as mãos escondiam-se nas dobras da saia. Afastei o capuz e me deparei com uma visão terrível: o rosto da minha mãe, tenso e cansado desde que eu me entendia por gente, mas ainda com vagos traços de beleza, havia se transformado no rosto de um monstro. Pústulas vermelhas, que expeliam pus e sangue, haviam irrompido em sua pele.
O pescoço estava deformado por um enorme inchaço, e os lábios, manchados de sangue, encontravam-se imobilizados numa rigidez de dor. Seus olhos se abriram devagar. Já tinham sido azuis e bondosos, mas agora eram vermelhos e esvaziados de qualquer sentimento.
— Mamãe – foi tudo o que consegui pensar em dizer.
Não tive certeza de que ela houvesse me reconhecido. Seu corpo não se mexeu, uma das mãos emergiu do tecido e se estendeu para mim. Os lábios se entreabriram de leve, deixando escapar um som. Podia ter sido meu nome, podia ter sido um gemido de dor. Eu não soube dizer.
— Por favor, venha para a cama – insisti.
Não consegui pensar em nenhum modo de tratá-la, mas vê-la ali, deitada no chão feito um bicho, me deixou arrasada. Ela merecia coisa melhor do que esse destino.
— Branca.
Dessa vez, reconheci meu nome e sorri. Se ela ainda me conhecia, talvez houvesse esperança.
— Venha – pedi, puxando-a pelos ombros.
Ela os levantou um pouco e me estendeu os braços, mas não teve força suficiente para se levantar. Arrastei-a pelo cômodo da melhor maneira que pude, torcendo para que a saia diminuísse o impacto em suas pernas, mas ela não se queixou. Pus sua cabeça e seus braços sobre a lateral da cama, depois me curvei para levantar a parte inferior do seu corpo.
Com o esforço, senti minha cabeça doer e, quando enfim a deitei ao lado de Alec, tive medo de desmaiar. Subi na cama a seu lado e comecei a afagar seu braço.
— Mamãe, os outros... – comecei, mas parei.
Seus olhos marejados fitaram os meus, confirmando o que eu não conseguira pôr em palavras. Eles estavam mortos. Durante o período em que eu ficara mergulhada na febre, minha família havia desaparecido. Lembrei-me de ter visto o bebê no colo dela, tão pequenino e tão quieto. Torci para que o fim ao menos tivesse sido rápido para ele.
 Mas eu sobrevivera. E isso significava que a varíola, esse flagelo terrível que havia dizimado minha família, podia ser vencida. Apesar de fraca, senti as ideias clarearem, o corpo ganhar força. Envolvi minha mãe nos braços, desejando que a vida voltasse a ela.
— Por favor, não me deixe – implorei. – Não vou suportar ficar aqui sem a senhora.
— Esme – disse ela devagar, baixinho, num tom que mal chegou a um sussurro. O inchaço no pescoço devia tornar a fala insuportavelmente dolorosa, e pude sentir seu sofrimento a cada palavra.
— Você tem que ir.
Cheguei a cabeça mais perto, para que ela não tivesse que se esforçar para ser ouvida. Um filete de sangue escorria de seu nariz e eu o limpei delicadamente com a beirada da manga.
— Sim, eu vou para St. Eugene – concordei –, mas só quando a senhora melhorar. Podemos ir juntas.

Suas mãos remexeram com esforço nas dobras da saia. Segurei-as nas minhas, como se o contato comigo pudesse impedi-la de me deixar. Ela soltou os dedos das minhas mãos e puxou o vestido esfarrapado. Acompanhando seu olhar, observei a bainha. Mamãe meneou a cabeça, gemendo com o esforço, e corri os dedos pela barra de sua anágua até achar uma protuberância dura. Discerni o formato de uma moeda de metal, depois outra, e mais outra.Dinheiro que ela havia escondido sem que meu pai soubesse. Dinheiro que me permitiria fugir.
A ideia de começar uma nova vida sozinha, sem ela, fez as lágrimas rolarem por minhas faces. Um gemido baixo, pouco mais audível que um sussurro, brotou da garganta de mamãe, e percebi que ela tentava me consolar, que ver a minha tristeza lhe doía mais do que os tormentos do seu corpo.
Decidida a não agravar seu sofrimento, reprimi os soluços e forcei um sorriso. – Não se preocupe – acalmei-a. – Vou arranjar um lugar no castelo. Vou deixá- la orgulhosa.
De repente, suas mãos agarraram meus braços e estremeci à pressão aguda de suas unhas. Minha febre ainda não havia cedido por completo, mas a pele dela parecia fogo contra a minha. Ela já não conseguia falar, apenas produzir uma respiração rápida e superficial, como quando se sobe uma ladeira íngreme. Mal consigo pensar nesta lembrança: minha mãe querida, tão perto da morte, mas tão aflita para me proteger.
Uma única palavra escapou de seus lábios rachados. Soou como “pel”, mas poderia facilmente ter sido “bel”. Estaria ela me aconselhando a me afastar? Insistindo em que eu partisse? Desatinada, perguntei-lhe o que significava aquilo, mas ela não conseguiu emitir mais que um ruído áspero e rouco.
— Vou buscar água – falei, desesperada para fazer algo, qualquer coisa que aliviasse sua aflição.
Lutei para me levantar da cama. Um dos primeiros deveres matinais de meus irmãos era buscar água no poço, mas quando isso devia ter sido feito pela última vez? O balde estava entre a porta da entrada e a lareira, como se tivesse sido largado às pressas. Olhei para dentro dele e vi uma poça rasa de água, que mal cobria o fundo. Foi o bastante para eu molhar uma ponta da minha camisola e voltar com ela para a cama, pingando.
Mas era tarde demais.
Os olhos de minha mãe tinham se fechado e ela estava imóvel, com o rosto horrivelmente alterado pela devastação da doença, mas livre da expressão de dor. Ela estava em paz. Agachei-me ao lado da cama, entregue ao desespero. A tristeza e o choque prostraram meu corpo enfraquecido e foi como se eu me tornasse de novo uma recém-nascida, incapaz de falar ou ficar de pé. Sem minha mãe, minha protetora, eu não tinha nada. Fiquei arriada sobre as mãos e os joelhos durante o que me pareceram horas, tão esgotada pela provação da morte dela que nem sequer consegui chorar.
O único som do cômodo vinha da respiração entrecortada de Alec. Seus ruídos de inspiração e expiração se sucediam, lentos porém cada vez mais regulares. Amargurada, forcei-me a me levantar do chão. O rosto de meu irmão estava enrubescido, mas sua pele não ardia em febre como a de nossa mãe.
Talvez eu ainda pudesse salvar uma vida.

Peguei o balde e caminhei aos tropeços para a porta, decidida a buscar água fresca no poço. Ao pisar do lado de fora, fui surpreendida pela luz do dia. A casa fechada me parecera existir numa noite eterna. Ouvi sons que vinham do celeiro; ao menos o cavalo poderia ter sobrevivido. Quando me aproximei da construção, a porta se escancarou e me vi cara a cara com meu pai.
— Branca! – exclamou ele, e ficou imóvel, atônito.
De camisola, enrubescida e imunda, eu devia ser uma visão e tanto, o aspecto dele era ainda mais chocante. O pai que eu acreditara estar morto parecia o mesmo de sempre. Acabado, como de costume, com os ombros recurvados e a testa franzida pela desconfiança. Mas saudável.
— Pensei... pensei que o senhor tivesse morrido – falei.
— Pensei o mesmo de você.
Ficamos ali, olhando um para o outro, dois fantasmas.
— A mamãe... – balbuciei. – Ela disse...
— Ela está viva? – perguntou meu pai, surpreso.
Balancei a cabeça e minha voz tremeu:
— Ela se foi.
— É, era o que eu imaginava. Pensei que ela tivesse falecido ontem, mas não pude ter certeza.
Como era possível ele não saber se sua mulher estava viva ou morta?
— O senhor não estava cuidando dela? – perguntei.
O rosto dele foi tomado pela expressão sombria que costumava assumir antes de me dar uma surra.
— Eu fiz o melhor que pude, mocinha. Vi meus animais morrerem, um por um, até só me restarem algumas galinhas e um cavalo. Enterrei quatro filhos enquanto você estava acamada!
Não me escapou que ele havia falado dos animais antes dos filhos.
— Eu devia ter ficado naquela casa e me arriscado a morrer também? – perguntou ele. – Quem você acha que deixou água e comida na porta, todas as manhãs? Como se atreve a dizer que não cuidei da minha família?
Talvez ele tivesse nos ajudado a sobreviver, mas eu não me curvaria de gratidão por suas magras oferendas.
— Dormi aqui, na palha – continuou –, mas, agora que você melhorou, pode arrumar a casa. Bem que eu poderia dormir na minha cama, para variar.
— O senhor se esqueceu de perguntar pelo Alec.
Meu pai se limitou a me olhar. Não estava nem enlutado nem esperançoso. Apenas esperou.
— Acho que ele vai sobreviver.
— Ótimo. Ele é forte. Vou precisar da ajuda dele para lavrar os campos.
— Ele não está em condições de arar – retruquei, em tom ríspido. – Não consegue nem ficar de pé.
— Vai melhorar logo. Até lá, você pode cuidar dele. Algumas outras fazendas perderam animais, mas nenhuma tanto quanto nós, e os fazendeiros que foram poupados nos mandaram carne e tortas, o bastante para que não morrêssemos de fome. Vou lhe mostrar o que tenho guardado no celeiro e você pode cuidar da comida para logo mais. Comece tomando um banho; ache alguma coisa da sua mãe para vestir.
O corpo dela ainda não tinha nem esfriado e ele já me mandava mexer nas suas coisas. A raiva que eu mantivera represada durante tantos anos cresceu, como um rio transbordando.
— Vou cuidar da casa por meu irmão, não pelo senhor.
Ele me olhou fixo, pego de surpresa por meu desacato.
— Assim que enterrarmos minha mãe, vou embora para St. Eugene. Ela arranjou um lugar na corte para mim.
A mentira escapou tão facilmente de meus lábios que quase acreditei ser a verdade.
— Corte? – reagiu ele, chegando o mais perto de uma risada que eu já tinha visto, com os olhos arregalados e a boca aberta. – Vão dar com a porta na sua cara.
— Vou encontrar uma vida melhor lá do que aqui.

Para isso ele não teve resposta. Passei o resto daquele dia interminável limpando a casa, até ficar com as mãos raladas e ardidas. Só parei quando senti a cabeça rodar de cansaço e tive medo de desmaiar. Meu pai embrulhou o corpo de mamãe num lençol, resmungando sobre quanto custaria repor aquela peça de cama, e disse que ela poderia ficar no celeiro até que fosse possível providenciar o serviço fúnebre com o padre da aldeia. Antes que ele cumprisse esse dever sinistro, pedi um momento a sós com minha mãe para rezar. Quando ele saiu, ajoelhei-me ao lado dela e murmurei o que meu coração mandara: disse quanto eu a amava e prometi deixá-la orgulhosa. Enquanto isso, corri os dedos pela bainha de sua anágua e fui arrebentando com as unhas a linha que a costurava, até sentir os discos lisos de metal escorregarem na minha mão. Cinco moedas de prata. Tudo o que minha mãe tinha conseguido em troca de uma vida inteira de trabalho. Pus as moedas no sapato e saí correndo da casa, antes que meu pai pudesse ver meus olhos vermelhos e meu rosto molhado.

Nos dias que se seguiram, enquanto minhas forças iam voltando aos poucos, só vi meu pai durante as refeições. Comi mais por determinação do que por fome, porém me animei ao ver Alec recuperar seu vigor habitual.Em algumas ocasiões, separei uma porção extra para ele comer depois que papai voltasse para o campo. Em nenhum momento vi meu irmão chorar.
Assim que pôde andar, ele começou a passar o tempo quase todo nos cercados dos animais ou ajudando nosso pai a capinar o terreno. Não o censurei por querer fugir de uma casa que havia assistido a tantas mortes.
Mamãe foi enterrada num dia luminoso e claro. Seu corpo foi sepultado junto ao de seus filhos, no cemitério da aldeia. Eu nunca tinha ido a um enterro, e só mais tarde me dei conta de que o padre havia oficiado o rito mais curto possível, muito provavelmente por meu pai haver economizado na taxa de contribuição pelo serviço.
Por mais rápida que tenha sido a cerimônia, senti o peso da minha tristeza aliviar-se por um momento, como se o próprio Deus insistisse em me fazer tirá-lo dos ombros. Mamãe e os meninos tinham sido acolhidos no paraíso. O sofrimento deles havia acabado.
Na manhã seguinte, quando o alvorecer começou a afastar a escuridão, desci do sótão e passei por meu pai, que roncava na cama. Peguei a trouxinha com minhas poucas posses: uma camisola, um par de meias de inverno, algumas agulhas, linha e um pedaço pequeno de pão. Abri com cuidado o armário que guardava a roupa de meus pais e peguei o melhor vestido de mamãe, o que ela reservava para os domingos. Com o passar dos anos ele havia ficado surrado e com manchas, marcado para sempre como um traje de camponesa. Ainda assim, a qualidade do tecido era muito superior à de minha roupa esfarrapada, e eu o vesti.
Ouvi um farfalhar de palha atrás de mim, virei-me e vi Alec me olhando do sótão. Ofereci-lhe um sorriso, mas ele apenas fez um aceno sombrio com a cabeça e me deu as costas. Talvez, dadas as perdas que já havia sofrido, não tenha conseguido dispor-se a chorar minha ausência.
E foi esta a minha despedida do único lar que eu havia conhecido até então.

Rumei para a trilha das carroças que levava à aldeia, cujo atrativo se estendeu diante de mim, suplantando meu medo. Onde terei encontrado forças para dar um passo atrás do outro, rumo ao desconhecido, sozinha e desprotegida?
Até hoje não sei explicar por que fixei o castelo como meu objetivo de maneira tão resoluta. Só sei dizer que senti um chamado.
Ou será que sei?
Será possível que Athenodora, à procura de uma ajudante, tenha enviado um chamado que apenas eu era capaz de ouvir, um chamado ao qual eu não tinha o poder de resistir? Seria loucura acreditar numa coisa dessas.
No entanto, o que mais poderia explicar a certeza inabalável que me levou adiante? Toda grande lenda, no fundo, é uma história de perda da inocência, e talvez fosse esse o papel que eu estava destinada a desempenhar.
Eu realmente ignorava as escolhas que haveria pela frente, escolhas que me elevariam a alturas nunca imaginadas, e outras que até hoje enchem meu coração de angústia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Enquanto você dormia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.