O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 3
Capítulo 2: Polícia Unificada




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Capítulo 2

 

Polícia Unificada

 

Estar reunido com toda a diretoria da PU na cobertura do Edifício Roberto Nascimento, sede da corporação no estado do Rio, era o mesmo que ser um rato tentando dialogar com víboras no próprio ninho destas.

A promotoria o alertara sobre as circunstâncias do encontro, certamente, desde o que deveria exigir até a descobrir de antemão quem estaria presente – porém ignorara, confiando como sempre em sua própria capacidade e abastecido pelo cego orgulho. Agora, com o notebook aberto diante de si e a chuva batendo tão insistentemente contra os vidros da sala tal qual quisesse rompê-los para libertá-lo, o juiz Pedro de Castro teria de se ancorar na defesa de sua visão no intuito de ao menos garantir a ausência de represálias contra sua pessoa por aqueles homens. Descobria, pela pior via possível, que a PU conseguia se eximir de fatos utilizando argumentos.

E esse governo não está fazendo o mesmo há anos, afinal de contas? O mesmo que seus defensores acusavam o anterior de fazer?

Júlio de Almeida, ex-secretário de segurança pública do Rio de Janeiro e atual comandante nacional da PU, encontrava-se sentado na ponta oposta da comprida mesa de mármore, bem diante de Pedro, após outros dez assentos de distância tanto à direita quanto à esquerda, ocupados pelos sócios majoritários e subcomandantes da corporação. Em dado momento, Castro cansou-se de fingir consultar dados em seu computador e ergueu o copo de água gelada para mais um gole que aliviasse a tensão, revisando os últimos aspectos de sua fala contra os vinte e um algozes em torno da mesa.

— O senhor Castro já pode falar – insistiu Almeida com ar de enfado, consciente da armadilha armada ao juiz. Homem de meia-idade, olhar soturno e sobrancelhas fartas, vestindo a farda da PU ao invés de um terno, mais parecia uma coruja cumprindo o papel de águia. E, manipulando a burocracia e a opinião pública, conseguia metaforicamente mover a cabeça em trezentos e sessenta graus para proteger sua organização.

Pedro pigarreou e, tentando somar toda a força combativa ainda residente em si, manifestou-se:

— O Ministério Público demostra urgência em colocar amplos setores da Polícia Unificada sob investigação, Almeida.

— Posso ao menos saber do que a corporação está sendo acusada desta vez? – o tédio na voz do comandante expunha uma blindagem que nem a eloquência de um Cícero seria capaz de perfurar.

— Tortura, extorsão e homicídio.

Castro enxergava-se na linha de frente de uma guerra, com um alvo pintado na testa, toda vez que trabalhava em conjunto com alguma operação do Ministério Público. Talvez o único setor do judiciário ainda livre do controle total pelo executivo no país, parte de uma fachada para justificar a “continuidade” da democracia, era o único vínculo legal que os cidadãos ainda podiam usar para denunciar abusos de poder pelas autoridades. E pensar que todas aquelas mudanças no país haviam começado justamente no judiciário... No início falavam numa ditadura dos juízes, justificada por sua cruzada contra a corrupção com o intento de finalmente “limpar a política do país” – para depois terem seu poder esvaziado a favor dos próximos governantes, colocados em Brasília com base no próprio discurso das togas...

Não que o Ministério Público fosse eficiente. Muitas das investigações abertas pelos promotores serviam “apenas para constar”, os inquéritos muitas vezes fechados sem os suspeitos sequer saberem terem sido abertos. A Constituição de 2021 era também prolífica em abarcar práticas autoritárias – como tortura, perseguição e homicídio político – dentro das normas governamentais, porém sempre havia brechas. Como os viciados que a PU vinha sistematicamente retirando das ruas e torturando em suas dependências para chegar aos traficantes.

— Tem algo a declarar? – Pedro acrescentou após breve silêncio, sentindo os olhares por toda a mesa ansiosos por desintegrá-lo.

O comandante da PU levantou-se bufando. Como era de se esperar, viria uma extensa fala justificando seus métodos enquanto andava pela sala, contornando a mesa e mais precisamente o assento do juiz tal qual um leão preparando-se para o bote sobre a presa. Pedro preferiu não acompanhar o trajeto de Almeida, voltando a focar a visão na tela do notebook. Os ouvidos, no entanto, permaneceram atentos para eventualmente filtrar algo útil do discurso de Júlio. Alguma coisa que pudesse ser voltada contra ele.

— O senhor deve saber, juiz Castro, que na virada do milênio este país era refém do crime. Os bandidos mandavam e desmandavam, incendiavam ônibus, esfaqueavam ciclistas e saiam incólumes por conta das cartilhas de direitos humanos e do falho sistema prisional do governo. Famílias inteiras eram destruídas pelos traficantes que introduziam milhões de jovens no mundo de mentiras das drogas. Até que, em conformidade ao artigo 106 da atual Constituição prevendo a reorganização das forças policiais, esta corporação surgiu. Começou aqui no Rio, e o sucesso levou-a a ser implementada no Brasil inteiro. Hoje, a PU é um modelo para as forças de segurança de vários países. O crime caiu, os dados não mentem. As taxas de homicídio são as menores em trinta anos. E não é porque um Ministério Público enviesado à esquerda sob a permissividade do governo está protestando sobre nossos supostos abusos é que mudaremos nossa postura. Um abuso a toda a população era como esta nação se encontrava antes da Reconstrução, juiz Castro. Entregada à desordem e aos vermes!

— Espero que esses dados que citou também contem as mortes atribuídas à PU... – Pedro lançou seu torpedo, embora o silêncio arguto de Almeida, e os risinhos pela sala, revelassem ter errado o alvo.

Tudo que Castro menos queria era uma aula sobre a Polícia Unificada. Estabelecida em 2023 a partir da fusão das políticas Civil, Militar e Federal, sua jurisdição era supraestadual e cobria todo o território do país. Diferente do antigo modelo de segurança pública brasileiro, a famigerada PU era na verdade uma parceria público-privada. A grande “privatização da polícia”, como diziam alguns – embora o termo ainda fosse incômodo, e por isso evitado, mesmo no Brasil pós-Reconstrução.

Uma empresa de capital aberto, a corporação possuía 30% de suas ações sob posse do governo federal, enquanto as outras parcelas eram distribuídas entre os demais grupos participantes do não-oficializado “consórcio da segurança”. A Smithney, grande fabricante norte-americana de armas inteligentes que se estabelecera como líder mundial após a ofensiva contra o Estado Islâmico, era proprietária de 10%. Outros 15% eram divididos entre as empresas que partilhavam o mercado das prisões no país, após a privatização do setor carcerário. Os 45% restantes pertenciam a consultoras particulares de segurança, firmas de tecnologia e corporações militares privadas que movimentavam milhões com as guerras sem fim no Oriente Médio.

O “servir e proteger” vendido até a alma em troca de uma pretensa segurança, com figurões nadando em dinheiro enquanto eliminam determinadas categorias de pessoas das ruas...— Pedro pensou consigo enquanto sorvia mais um gole d’água. Os homens em torno daquela mesa, vários deles estrangeiros, não eram apenas executivos, mas agentes treinados de segurança. Enquanto viam suas ações da PU subirem a cotações estratosféricas, também comandavam seus próprios exércitos particulares em intervenções nos quatro cantos do mundo, atirando primeiro para questionar depois. A lei da selva do mundo dos negócios unida ao pragmatismo das forças militares. E lá estava ele, Pedro de Castro – um legalista desarmado tentando se digladiar com gigantes que podiam comprar as leis e enfiá-las no bolso.

— O juiz deve saber que o Código Penal permite a custódia de viciados para fins de investigação, assim como tem ciência de que eles obstruem a lei quando se recusam a cooperar com a polícia – observou um dos subcomandantes da PU, sentado a três cadeiras de Almeida. – Não-cooperação com o Estado configura crime que exclui o indivíduo das garantias do Código de Proteção à Pessoa Física.

— O senhor está usando a lei para justificar situações que sequer entraram nos registros da PU – Pedro rebateu. – Nesses casos há fichas a serem preenchidas, satisfações a serem dadas. E a exclusão do Código de Proteção não justifica homicídio, subcomandante. Até onde eu saiba, não há nenhum estado de sítio em vigor. Foram feitas cinquenta e quatro denúncias no último ano sobre pessoas que foram detidas pela PU e simplesmente desapareceram, isso apenas na região metropolitana do Rio. Mais nenhuma informação sobre esses indivíduos, a maioria em situação de dependência química, pôde ser obtida a partir do momento em que foram encarcerados nas dependências da corporação.

Suspirando, Júlio de Almeida retornou ao seu assento e sentou-se pomposamente, colocando os cotovelos sobre a mesa e unindo as mãos no que pareceu uma breve prece a seja lá qual fosse a divindade que cultuava – ou puro e simples cansaço. Depois ergueu a cabeça e disse a Pedro, encarando-o através do móvel que os separava:

— Muito bem. Os filósofos pacifistas do Ministério Público não vão sossegar enquanto não conseguirem averiguar o que foi feito desses suspeitos, e os políticos em Brasília querem tranquilidade. Por isso mesmo atiram esses problemas no meu colo... Melhor lidar com eles de uma vez. O senhor e a promotoria podem abrir inquérito, nós iremos contribuir. Só espero que não se arrependam do tempo e energia desperdiçados quando derem conta de que não somos os vilões. O senhor, como juiz, deveria ter uma visão de mundo mais esclarecida. Saber o preço que pagamos por ser indulgentes com aqueles que alguns ainda insistem em rotular como vítimas...

 

X – X – X

 

Enquanto descia pelo elevador panorâmico de volta ao térreo – frente a uma ampla visão da Baía de Guanabara e das obras de ampliação da Ponte Rio-Niterói, as luzes dos guindastes e gruas envolvendo-a de ponta a ponta em meio ao dia chuvoso – Pedro de Castro sentia-se um mortal tendo acabado de sobreviver a um confronto com o deus Ares no Olimpo. O alívio misturava-se a um sentimento de dever cumprido, embora soubesse que o doce gosto do triunfo possuía grande – e talvez certa – possibilidade de amargar-se quando a PU desaparecesse com todas as provas incriminatórias. Almeida não deixaria barato, e tinha total proteção do governo federal. O processo acabaria se tornando apenas mais uma peça de fachada para a mídia noticiar que o regime era criticável...

Mas se houvesse uma chance, uma mísera chance de a PU pagar por seus desmandos... Pedro estaria tão errado em agarrar-se a ela?

Sentiu um leve nó no estômago, não sabia se causado pela descida do elevador ou por seus pensamentos. Lá fora a chuva piorava, um raio indo encontrar o topo de um dos edifícios de Copacabana.

Só esperava que o filho não estivesse fazendo besteira...

 

X – X – X

 

A diretoria da PU permaneceu reunida na cobertura por mais alguns minutos. Acionando um sistema de comunicação interna do prédio através de seu celular após o juiz Castro sair, Júlio de Almeida distribuiu ordens e instruções a diversas pessoas ao longo dos sessenta andares do quartel-general. Mas sua última e mais importante requisição foi dirigida a um dos sócios acomodados à mesa, vestindo farda com as insígnias da corporação tal qual seu comandante:

— Bastos.

 – Sim, senhor Almeida?

— Como encarregado do Setor de Inteligência, quero seus melhores homens seguindo o juiz Castro e pessoas próximas, dia e noite. Vamos escavar algo constrangedor para derrubar esse desorientado. Com sorte descartaremos mais alguém da promotoria junto com ele.

— Entendido, senhor.


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