O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 13
Capítulo 12: Fly by night




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Capítulo 12

Fly by night

A cidade continuava deprimente. Pela janela, apenas edifícios e avenidas com esparsos veículos – os hovercars buzinando, buzinando e buzinando como se quisessem precisamente perturbá-lo, piorar sua já frágil situação.

Jogado no sofá, Carlos estendeu os olhos ao relógio de pulso. Meia-noite e vinte. Dentro de aproximadamente cinco horas o grosso da população acordaria e, se o Rio já não lhe dava trégua mesmo durante a madrugada, ao despontar do sol o inferno se pronunciaria. Já não sabia mais, aliás, o que era seu próprio incômodo ou um mal-estar induzido pela droga... Sem contar a dor no pé ferido.

Através da Avenida Progresso, agora também com monotrilho, os veículos participavam de um balé de sincronia fiel. Naquele momento apenas os trabalhadores noturnos ou playboys com dinheiro suficiente para esconderem seus vícios trafegavam pelas vias magnetizadas; mas pela manhã, hovercars e trens seguiriam para todo lado, contendo em suas entranhas de aço vidas que insistiam miseravelmente em serem tocadas. Ali homens e mulheres dos mais variados tipos e idades rumariam aos seus labores. Eram operadores de robôs, propagandistas, médicos, enfermeiros, militares, promotores, juízes, secretárias, oficiais da PU, professores, faxineiros (ainda existiam alguns não mecanizados, afinal), atores e atrizes de teatro e televisão, jornalistas, advogados...

Apenas eu, incapaz de passar numa mísera prova da OAB, ficarei para trás.

De vez em quando um helicóptero ou jato particular se arriscava a voar em baixa altitude, ziguezagueando por entre os prédios. Quase sempre uma aeronave da PU, o holofote impaciente esquadrinhando a vizinhança em busca de maus elementos. Nem seus pilotos nas cabines pressurizadas ou os suspeitos esvaindo-se na escuridão dos becos feito ratos imaginavam serem observados, lá do alto, por um jovem viciado.

A cidade era fria. Moralmente fria. Por isso era muito melhor se afundar em outras realidades. Embora a tal X-Mind, forçando-o a enfrentar a verdadeira, não fosse lá uma promessa de ajuda...

Passou uma mão pelo curativo no pé, perguntando-se por que, afinal de contas, aquela droga era tão cobiçada. Só pode ser impulso suicida! – cogitou com desdém, lembrando-se de quantos conhecidos já haviam dado fim às suas vidas para se livrarem dos vícios. Os fornecedores estavam recompensando os usuários de longa data com a morte. Ou então uma penitência para repararem os erros cometidos, algum tipo tolo de "ajuda ao próximo a qualquer custo", incluindo quebrar trancas a pontapés e invadir domicílios não necessariamente ameaçados, de tal modo que também acabassem encontrando o fim. Ah, mas eu mataria alguém querendo redenção por um pouco de Perestroika, ainda mais agora!

Na escuridão azulada predominando no interior do apartamento, cortada ora ou outra por feixes de luz perdidos na cidade entorpecida que acabavam encontrando a fachada do prédio, Carlos virou a cabeça querendo ao menos que a chegada do sono freasse seus pensamentos – porém até ele resolveu castigá-lo recusando-se a visitá-lo antes da manhã surgir. Cobrindo os ouvidos com as mãos, ainda assim podia ouvir a voz monótona de mulher recitando versos através dos alto-falantes na rua:

Na violência interminável tínhamos o medo interminável e de súbito o medo nos teve. Vimo-nos humilhados, reduzidos pela mão do crime. No interior da casa não sabemos o que nos acontece, mas lá fora o medo interminável na interminável violência a que preside sente falta de nós, povo recluso.

Era assim, plagiando poetas nacionais e internacionais, que o poderoso Ministério da Propaganda popularizava a Polícia Unificada, a política de estabilidade social, o governo e qualquer outra coisa que os figurões julgassem certa.

Nesse momento, outro som começou a se sobressair, de início tímido, em meio ao discurso de propaganda e as buzinas. Carlos estranhou, cogitando ser algum efeito tardio da droga confundindo-lhe a cabeça, mas a experiência anterior dos gritos reais no apartamento ao lado lhe dava a segurança de que a X-Mind não queria mexer com seus sentidos. O barulho aumentou, subindo tanto em intensidade quanto em altitude... até que uma luz branca ofuscante invadiu o local por uma janela, cegando Carlos momentaneamente enquanto, cobrindo a face com os braços, sentia todo o apartamento estremecer e toda superfície de vidro vibrar próxima do ponto de se partir.

Mas que coisa é essa?

Sua mente agitada determinou o agora quase ensurdecedor som como hélices girando – e a própria fonte do fenômeno também aparentou girar quando o facho de claridade se moveu e, pouco depois, não mais penetrava o apartamento. Carlos abaixou os braços, arriscou uma olhadela e, com vento batendo contra seu rosto, viu um helicóptero pairando de lado bem diante da janela da sala, a força do rotor já tendo virado uma poltrona e agora repelindo objetos pelo chão.

O rapaz temeu o pior. Poderia muito bem ser a PU rastreando os seletos usuários da X-Mind – mas não foi difícil comprovar que o escudo da corporação era inexistente na pintura da aeronave. Quando a porta da cabine do piloto se abriu e este acenou amigável para Carlos, a tranquilidade substituiu a insegurança; ainda mais quando uma voz familiar chamou-o:

— Hei, Carlitos!

Mesmo com a face escondida por um capacete pichado com o desenho de um comprimido dourado, o amigo era inconfundível. Giovanni Mayer, ex-colega da faculdade de Direito e parceiro de farras e drogas. Alguém que Carlos, talvez, poderia culpar por tê-lo introduzido àquele mundo. Porém preferia enxergá-lo como um anjo leal, que agora o tiraria daquela fossa com seu próprio par de asas. O guardião da promessa de um mundo mais leve.

— Onde foi que conseguiu essa máquina? – o filho do juiz Castro indagou com a empolgação tomando-lhe o corpo, levantando-se do sofá e por pouco não sendo atirado para trás pelo vento das hélices.

— É da firma do meu pai! – o piloto respondeu numa risada. – Agora ele está prestando serviços ao governo e muita coisa acaba recebendo vista grossa, sabe como é. Está rolando o maior barato no barraco da Pastor Egberto. Quer curtir uma?

Carlos estremeceu. Um convite para uma boa festa, comprimidos e seringas à vontade, boa companhia. Remédio para a dor. Imagens e sons tentaram dissuadi-lo dentro de seus pensamentos, uma voz suplicante e um "Te amo!". Jéssica...

Mesmo mancando do pé machucado, o jovem tomou impulso e correu até a janela. Não, não soube explicar a razão. A vontade de afogar suas frustrações com Perestroika era muita ou ainda era o efeito da maldita X-Mind, fazendo-o arriscar a vida com aquela coragem desmedida que ainda não o havia abandonado.

Próximo da janela, ergueu o pé que estava intacto, saltou para o parapeito e, num novo pulo em sequência, jogou-se na direção do helicóptero tal qual tentando atingir o olho de um furacão.

Não olhou para baixo, embora sentisse as centenas de metros de queda, a cidade querendo estender cordas invisíveis até aquela altura para puxá-lo e prendê-lo eternamente a si na forma de gosma vermelha disforme atirada à calçada. Não foi aquela noite que ela conquistou seu prêmio, porém – e Carlos aterrissou meio desajeitado na cabine de trás da aeronave, cuja porta fora aberta às pressas por Giovanni tão logo compreendeu a intenção do amigo.

O piloto, aliás, agora o contemplava com os olhos arregalados, tendo erguido a viseira do capacete.

— Cara, eu ia subir e pousar no terraço, mas já que está tão atlético assim... Me fala, tá tomando bomba?

Ofegante, Carlos apenas recostou-se ao assento e abriu um sorriso.

— Aproveite para irmos logo até essa festa, antes que meu impulso de loucura passe! – replicou debochado.

— Aí, é assim que se fala, Carlitão!

Voltando a rir, Giovanni redirecionou o helicóptero em meio ao mar de edifícios do Rio de Janeiro, as luzes embaralhando a visão de Carlos, zonzo pela adrenalina.

X - X - X

Retirou a seringa do estojo metálico, a tampa soltando um estalido quando voltou ao lugar, puxada pelas molas enferrujadas. Aquilo devia, no passado, ter servido para guardar os pertences de algum médico. Um estetoscópio, talvez? De todo modo, agora apenas o líquido brilhante dentro do pequeno frasco importava, reluzindo sob o néon do beco encardido. Em roxo, depois azul.

— Essa aí não é pura... – a segunda figura na sombra observou, bem ao lado da primeira manuseando a substância.

As mãos do indivíduo pararam no ar, os dedos firmes sobre o êmbolo da seringa. Tremiam de ansiedade; mas o comentário fora tão tolo que até conseguiram se deter a meros centímetros das veias inchadas do braço exposto, para a devida resposta:

— Olha bem para a minha cara! Você acha que estou na prosperidade? Que estou na boa, para comprar da pura? Tu tem me acompanhado há meses, desgraça por desgraça. Estava junto quando tivemos que sair de Grumari. E naquela maldita batida na Ilha do Governador. Se você não andasse sempre com dinheiro para a boia, eu diria que traz azar...

O outro sujeito se contorceu, costas esbarrando num monte de entulho eletrônico ou qualquer coisa que o valesse. Ganhara um corte perto de uma das costelas. Só esperava não ser ferro contaminado. Depois que o boicote à vacinação havia se tornado "tendência contra o globalismo", tétano matava aos montes.

— Bem, você é sabido... – murmurou, olhos se erguendo para a grade de serviços, com seu emaranhado de fios e arame, servindo de teto ao beco. – Deve saber onde encontrar da boa sem gastar muitas mariannes... Só não quer gastar as coitadas.

O companheiro pareceu insultado, a face só perdendo a expressão carrancuda quando a agulha finalmente penetrou a pele e a droga avançou sangue adentro. Gastou alguns instantes em êxtase, encarando estrelas que só ele conseguia ver. Um pouco mais sóbrio, replicou em seguida:

— Qual é! Tá, deve estar rolando a maior festa na Pastor Egberto uma hora dessas. Só que é do outro lado da cidade. Está vendo alguma limusine esperando a gente?

Num riso vazio, seus olhos também subiram para o alto. Suspirou relaxado, os olhos reviraram... Até o corpo ser sacudido de uma só vez quando o buraco surgiu em sua testa, líquido vermelho viscoso de encéfalo escorrendo para seu peito e pernas antes do corpo tombar, de lado, por um nada delicado chute do coturno do outro sujeito, que acabara de se levantar. Em sua mão direita, a Smithney ainda fumegava, o contador de munição piscando numa luz leve junto ao cabo. 14/15 rounds.

— Obrigado pelos serviços prestados, saco de merda!

Resmungou algo inaudível. A arma voltou para baixo da camisa, enquanto averiguava a ferida no tórax. Mal conseguiu ver, porém não julgou ser grande coisa – fora as pontadas incômodas. A outra mão se ergueu. O comunicador já estava conectado ao Setor de Inteligência da PU.

— Central, aqui é Zulu Dois. Localização confirmada. Pastor Egberto. O galpão. Ocorrência em andamento.

Um chiado antecedeu a resposta:

— Entendido, Zulu Dois. Procedimentos iniciados.

Ele coçou o nariz. Enquanto lançava um último olhar ao cadáver do viciado, a seringa de droga agora caída aos seus pés, lembrou-se a quem o nome da avenida se referia. Egberto Mendonça. Frente da Salvação Brasileira. O deputado e pastor autor da Lei do Matrimônio, que instituíra as bolsas-casamento.

Pressionou a aliança em sua mão esquerda contra a borda do comunicador, fazendo-a girar de leve no dedo anelar.

— Acertem-nos em cheio, central.


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