O Reinado escrita por Lieh


Capítulo 1
O Reinado


Notas iniciais do capítulo

Conto antigo que só agora deixa as poeiras dos meus arquivos. Espero que gostem :)



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Há diversas coisas inexplicáveis que acontecem e nós presenciamos. Deveras, eu não sou nenhum velho sentado em sua cadeira com um cachimbo soltando fumaça, contando esses fatos para os seus netos. Ainda falta bastante para eu chegar lá – se é que esse será o meu destino. 

Sentado nessa taverna há muitas horas, eu não suspeito ter alguma história interessante para contar. Minha aparência desgrenhada - aparência de um forasteiro - não é convidativa para que uma pessoa se aproxime e puxe conversa. Então, já que estava cansando de só ficar observando as pessoas entrando, saindo e conversando - com o taverneiro trazendo mais garrafas para mim a cada hora - pedi alguns papéis e tinta, dizendo que ia escrever uma carta. 

Eis a minha carta. Sem remetente e sem destinatário, apenas uma carta qualquer. 

Eu nasci e me criei em um pequeno reino chamado Donainville, situado na parte litorânea da região, onde é bem comum o comércio marítimo. Donainville é governado por reis e tivemos sempre a benção de termos monarcas justos e compassivos com os pobres e mais necessitados. O solo do reino é muito rico para a plantação de verduras, frutas e grãos, provendo o sustendo das famílias e abastecendo o comércio.  

Todos os outros povos e reinos vizinhos nos invejavam por nossa boa sorte e nenhum desses povos tinha coragem de enfrentar o exército real caso planejassem uma invasão a Donainville. De fato, era o melhor reino para viver em tranquilidade, com belas casas situadas nas serras, montanhas e montanhas ao longe onde é possível ver o sol se pondo pondo – conhecido como o Vale das Montanhas - ruas sempre animadas por crianças correndo, mercadores vendendo seus produtos e artistas de rua encantando os passantes.  

Eu amava Donainville. E ainda hoje eu amo e continuaria lá se pudesse. Mas toda a felicidade e conforto tem um preço caro a se pagar. 

Para muitos, a maldição de Donainville era apenas uma lenda tola para assustar as crianças e fazê-las dormir. Eu pensava dessa forma antes que barulhos suspeitos perto das montanhas, nos últimos dias que fiquei por lá, despertasse na população o temor da lenda. O barulho infernal era sempre durante a noite e não durava mais que um minuto – o suficiente para crianças acordarem assustadas, curiosos abrirem as janelas de suas casas e conversarem sobre o ocorrido com os vizinhos com olhares suspeitos dirigidos para o vale. Nenhuma dessas pessoas falava em voz alta sobre a antiga lenda. Havia medo demais.  

Somente eu pensava no assunto, mas sem chegar a nenhuma conclusão. 

Donainville foi fundada há quase dois séculos por viajantes conhecidos como os Primeiros Reis. Eram quatro, vindos de uma terra longínqua que ninguém sabe de onde. Diziam que eles eram feiticeiros com incríveis poderes mágicos.  

Cada um deles fez grandes presságios para Donainville: um profetizou fartura, o segundo profetizou justiça e o terceiro, a paz. No entanto, o quarto viajante - que mais tarde seria rei conhecido como O Desertor - previu um sacrifício para que todas aquelas profecias de seus companheiros se realizassem.  

Pessoas de todos os lugares chegaram e povoaram a região e o quarto viajante foi escolhido pelo povo para ser o primeiro rei governante de Donainville. Todavia, após alguns anos de reinado, o reino passou a ser invadido por bárbaros que saqueavam e matavam quem encontrasse pelo caminho. O reino entrou em guerra com esses bárbaros deixando uma trilha de destruição por muitos anos.  

Curiosamente, ninguém sabe o que aconteceu com o rei. Simplesmente dizem que ele desapareceu no Vale das Montanhas e nunca mais foi visto. Depois do seu desaparecimento, um barulho infernal era ouvido todos os dias. Ninguém sabia o que era e muitos morriam de medo de se aproximarem daquela região. Alguns aventureiros dos inimigos que se apossaram de Donainville durante as guerras, se dirigiram até lá para descobrirem o que tinha nas montanhas. 

Porém nunca mais eles voltaram e nenhum deles foi vistos depois do ocorrido. Mas os bárbaros fugiram e nunca mais pisaram no reino, espalhando rumores de uma besta vinda do Inferno que habitava as montanhas de Donainville. Como ninguém sabia definir o que vivia por lá, todos chamaram de A Besta. E assim ficou conhecido até os dias de hoje.  

O mistério do desaparecimento do Primeiro Rei nunca foi solucionado. Sendo assim, o Segundo Viajante dos Quatro assumiu o trono e reinou por muitos anos.  

Porém, quando Donainville foi devastada por uma peste, onde quase um terço da população sucumbiu à doença, o rei - no momento onde mais precisavam do auxílio dele - também desapareceu para o desespero de todos. Meses depois de seu desaparecimento, estrangeiros que vieram pelo mar chegaram ao reino com a cura da doença. Durante esse tempo, o barulho da Besta era ouvido das montanhas. 

O padrão se manteve durante os dois séculos de reinado em Donainville. As gerações passavam e ninguém percebia esse fato curioso do desparecimento dos reis e rainhas, ou como dizia a minha mãe, ninguém “costurava os pontos”. 

Eu vivi em Donainville há dois anos, durante o reinado de Brayan II. Ele foi um rei que se apossou do trono ainda muito jovem – dizem que nem vinte e um anos ele tinha completado, na qual era a idade ideal para reinar – quando o pai faleceu. O jovem rei possuía estatura e porte dignos, com uma bela aparência. Eu o conheci o suficiente para saber que ele tinha olhos castanhos, cabelos negros até os ombros amarrados num rabo de cavalo e um rosto gentil, mas firme em suas falas quando se dirigia a alguém. Não demorou em que a população de Donainville o admirasse e respeitasse. 

Eu garanto que eu presenciei todos os fatos que irei narrar agora. Peço por favor, que tu não tentes fazer conjecturas a respeito de quem sou eu e qual foi a minha participação no desaparecimento do rei Brayan II. Mesmo depois da minha fuga do reino e estar a quilômetros de Donainville, eu ainda estou com muito medo. 

Havia uma jovem moça que frequentava a Corte chamada Lorely. Era filha de um cavaleiro muito honrado que fez grandes favores à Coroa e por isso ganhou o privilégio de frequentar a Corte. Lorely era uma jovem com dezenove anos ao qual todos diziam que era a moça mais linda do reino devido aos seus olhos azuis, a sua pele alva e seus cabelos negros.  

Logo o rei acabou se interessando pela moça e passou a cortejá-la. Lorely atendia os sentimentos do monarca, mas não por interesse ou por querer ser rainha e ter privilégios, mas sim porque ela sempre foi apaixonada por ele.  

Em uma noite, eles estavam sentados em um banco do jardim do castelo, onde havia uma bela fonte com fadas de pedra despejando água com varinhas. Os enamorados gostavam de passar o tempo daquela forma, quando podiam.  

Lorely aproveitou o momento para introduzir um assunto que há muito tempo a perturbava. 

— Eu preciso lhe precaver, querido rei, sobre alguns rumores que vem transtornando o reino. 

O rei Bryan se virou e tomou as mãos da moça. 

— O que a população anda dizendo, minha querida? 

Ela engoliu em seco. 

— Houve alguns tremores nunca sentidos antes, próximo ao povoado Orwen. As pessoas estão espalhando boatos de um terremoto. 

A expressão do rei ficou vazia de qualquer emoção. Era a sua expressão habitual quando estava pensando em algo sério. 

— Tu tens certeza absoluta desses fatos, querida Lorely? – perguntou ele. 

— Absoluta, senhor. Eu mesma ouvi essas terríveis notícias enquanto estava andando nas ruas com minha mãe. Como eu tinha ciência que o senhor não sabia a respeito, senti que era o meu dever informá-lo. 

Os dois ficaram em silêncio, apenas ouvindo os grilos cantarem e alguns vaga-lumes iluminarem a noite. Lorely temia ter feito alguma bobagem em informar o rei sobre rumores que poderiam ser falsos. 

— Obrigada por me informar, minha querida. Não vamos mais falar disso, mas sim de um assunto que há muito eu quero falar contigo. 

Lorely fitou o rei com uma expressão que misturava surpresa e tensão. Por ser naturalmente reservada, principalmente em emoções, poucas pessoas detectavam a expressão de seus sentimentos. 

O monarca ajoelhou-se perante sua amada, tomando-lhe as mãos. Havia uma emoção nunca vista antes no rosto do rei Brayan, que só era possível ser vista quando ele estava na presença da donzela à sua frente.  

Com suavidade na voz, ele iniciou: 

— Querida Lorely, não quero fazer este meu pedido soar pretensioso e farsante. Eu desejo que tu acredites na veracidade dos meus ternos sentimentos por ti, que eu venho nutrindo há muito tempo. Eu imploro humildemente que tu te tornes a minha adorada esposa e consequentemente, rainha do povo de Donainville, porque tu sabes que eu a amo e admiro de todo o meu coração. Tu aceitas? 

Os olhos de Lorely estavam marejados, tamanha a sua felicidade. Ela não sabia traduzir em palavras o quanto estava feliz, apenas respondendo: 

 

— É claro que sereis tua esposa, meu querido rei. Oh! Como estou feliz! 

Os dois riram abraçando-se logo em seguida. Estavam tão absortos em suas felicidades futuras que não perceberam os arbustos se mexendo significativamente e nem ouviram os meus passos se afastando. 

Meses se passaram depois desses acontecimentos. O casamento do rei e a identidade da escolhida foram revelados dias depois. Houve uma grande festa em comemoração por todo o reino. 

Apesar de toda a alegria presente depois do anunciado de seu casamento, o rei Brayan mantinha uma preocupação constante sobre os rumores do terremoto – agora esquecidos pela população que estavam mais preocupados em qual loja a noiva do rei iria comprar seu vestido e onde seria a cerimônia. Fazia muitos anos que um terremoto não abalava o reino. O último que ocorreu fazia quase cinquenta anos. 

O rei tinha ciência das coisas suspeitas que ocorrera com seus ancestrais, mas tinha dúvidas se a família real de Donainville era mesmo amaldiçoada. Ele temia por seu povo e principalmente por Lorely, caso aquele terremoto viesse ocorrer e por último, temia enfrentar a maldição de sua família se ela fosse, de fato, verídica. 

Em uma bela manhã de inverno, semanas após esses acontecimentos, eu andava pelos arredores do castelo. Era um costume engraçado que eu tinha, pois sempre levantava mais cedo do que os outros habitantes do local.  

Quando o mundo começou a cair.  

O chão em que eu pisava estremeceu violentamente, fazendo-me perder o equilíbrio e cair. O tremor iniciou devagar aumentando a cada segundo que passava, transformando a paisagem num efeito dominó, pois lá de cima onde eu estava vi algumas casas ruírem, uma atrás das outras.  

Poeira se levantava cegando os meus olhos. Eu continuei caído porque eu não via nenhuma prudência em querer andar quando o chão estava completamente instável. Eu vi algumas janelas do castelo estremeceram violentamente e algumas até se quebrarem antes de perceber que um cavaleiro saía a galope. Franzi a testa e forcei a vista já que a poeira não estava colaborando e vi: o rei saía do castelo em alta velocidade em cima do cavalo, dirigindo-se para a estrada que dava nas florestas e diretamente no Vale das Montanhas. 

Eu me distraí com a cena e não percebi a onda gigante que se formava na praia, arrastando-se num presságio de morte para Donainville.  

Calculei que levaria alguns minutos até ela devastar todo o povoado que se situava na costa, chegando rapidamente para as outras regiões do reino.  

Sem saber exatamente o que estava fazendo, eu corri na direção onde o cavalo do rei havia passado, seguindo-o. 

Alguns minutos depois, o terremoto parou. Porém a devastação continuava, porque o oceano ainda estava em fúria com o impacto, soltando ondas e mais ondas de destruição. Eu corria pela estrada deserta entrando rapidamente na floresta, cheia de árvores caídas e algumas instáveis em seus troncos. As pegadas das ferraduras do cavalo seguiam sempre em frente, junto com mais uma pegada de pés pequenos. Franzi a sobrancelha.  

Continuei a correr, tropeçando aqui e ali e finalmente cheguei ao vale, onde as pegadas continuavam seguindo para a maior das montanhas. A floresta contornava aquela região que parecia quase um deserto, agora mais perigoso que nunca devido ao terremoto, fazendo com que muitas pedras gigantes despencassem montanha abaixo.  

Finalmente, as duas pegadas me levaram diretamente para a maior montanha da região e logo avistei o rei que segurava a espada e o escudo prontos para uso, junto com a armadura e o capacete. Ele fitava a entrada de uma caverna dentro da montanha, gritando palavras que da distância onde eu estava, era impossível ouvir. Aproximei-me cautelosamente ficando atrás de um seixo grande demais que escondia todo o meu corpo, ainda olhando a cena.  

Do meu novo campo de visão, eu percebi que na parte esquerda onde a floresta contorna a região, escondida entre as árvores, estava uma figura esbelta que logo reconheci sendo Lorely. O mistério da segunda pegada estava resolvido, porém aquilo não me deixava feliz. 

Eu consegui distinguir o que o rei Brayan estava gritando na entrada da caverna, mesmo que não fizesse nenhum sentido para mim naquele momento. 

— Apareça! Eu lhe imploro caro Élbio! Sempre justo em suas decisões e altamente paciente! Eu sei que agora tu não és o que aparentara ser, mas sei que estas aí! Eu realmente lamento, lamento muito que esse momento tenha chegado e que esse destino coube a mim! Não tenho culpa e nem tu tens! Eu imploro, pelo bem do povo de Donainville! 

Por um momento nada aconteceu, o que deu tempo o suficiente para a minha cabeça girar com aquele discurso. Meus pensamentos eram tão absurdos naquele instante que nem eu sei agora o que eu estava pensando.  

Em seguida, da entrada da caverna saiu um jato de fumaça, quente o suficiente para fazer suar. O rei se aproximou mais, porém não foi necessária tal atitude, porque o que tinha lá dentro se apresentou. 

Primeiro eu vi as patas enormes do animal cheio de garras, grandes o suficiente para estraçalhar um humano. Depois eu vi o longo tronco seguido da cabeça gigante com grandes olhos amarelos e uma bocarra que poderia engolir uma casa de um dos povoados do reino. A criatura possuía quatro chifres brancos separados na cabeça parecendo uma coroa. A pele era vermelha e cheia de escamas – provavelmente sendo couro. 

Finalmente ele saiu completamente da caverna e visualizei o corpo réptil com enormes asas e um rabo. 

Um dragão! Um dragão vivia nas Montanhas de Donainville! Ele era A Besta! 

Os arbustos onde Lorely estava escondida estremeceram e eu tolamente temi por sua vida. Enquanto isso, o rei encarava o dragão com uma expressão que me surpreendeu: não era ódio, mas sim piedade e um pouco de tristeza. Nada estava fazendo o menor sentido. 

Olhando para cima, diretamente nos olhos do dragão, o rei desferiu: 

— Tu sabes muito bem que eu nunca faria isso, caso não fosse uma situação de extrema emergência. Todavia nosso povo está em grave perigo e eu, como rei, preciso cumprir o meu dever e tu precisas cumprir o teu, por mais que isso cause dor a nós dois. 

Em seguida, tudo aconteceu tão rápido que somente agora, muito tempo depois que esses fatos ocorreram, é que eu pude digerir e compreender o suficiente para transcrevê-los aqui. 

A Besta rugiu para o céu num som de congelar os ossos de tão medonho, cuspindo fogo das narinas e da boca. O rei brandiu a espada e avançou para o animal – o que naquele momento eu considerei uma grande burrice. Por mais que o rei fosse um esgrimista excepcional, ele jamais teria chance de derrotar aquele dragão! Pela primeira vez em muito tempo, eu realmente temi pela vida dele, esquecendo-me completamente da raiva que eu sentia por ele ter escolhido justamente Lorely para desposar. 

O rei acertou com a espada diretamente em um dos olhos do animal, que rugiu de dor e raiva. Com a pata direita, ele bateu diretamente no escudo do rei que voou alguns metros antes de cair de costas.  

O monarca precisou se levantar às pressas já que a Besta avançava para cima dele, abrindo a enorme boca pronta para devorá-lo vivo. Em pé, empunhando a espada, ele girou-a ameaçadoramente para o dragão – no entanto eu sabia que aquilo era apenas uma forma de ganhar tempo e distrair o animal, pois logo o rei daria um passo em falso e aquela batalha terminaria. 

Subitamente, a Besta parou em surpresa por sentir uma pedra bater em um dos seus chifres. Logo atrás, Lorely gritava insultos para o animal que passado o espanto, passou a rugir para avançando para onde ela estava. 

Aproveitando o descuido do inimigo, o rei pegou novamente a espada e pulou nas costas do dragão, escalando-a diretamente para a cabeça. O animal estava a ponto de soltar uma labareda de fogo que acertaria o lugar onde Lorely se escondia, quando o rei em um grito, cravou a espada na cabeça do dragão que soltou um rugido de dor de estourar os tímpanos. 

A Besta cambaleou e se o rei Bryan não estivesse se segurando com a espada cravada, teria caído e sido esmagado pelo corpo do animal que despencou para o chão, estremecendo todo o Vale das Montanhas. 

Eu tremia da cabeça aos pés e estava a ponto de ir ao auxílio do rei junto com Lorely, que também correu para ajudar o noivo, quando ele gritou: 

— Afaste-se! Vá embora! Não fiques aqui! – Havia um desespero anormal no homem, que assustou a pobre moça.  

De súbito, eu percebi que uma áurea negra avançava para o rei, que continuava estirado perto do dragão morto. O corpo inteiro do monarca estremecia em convulsões. A boca ficou torta e o rosto suava. Um barulho sufocado saía da garganta.  

— Querido rei, o que tens? O que posso fazer para ajudá-lo?! 

— Vá embora! Vá embora! Eu a amo e por Deus vá embora! – o rei gritava desesperadamente. Loreley chorava copiosamente, vendo o seu amado rei sofrer e não poder fazer nada. 

Então, a coisa mais assustadora passou a acontecer: o corpo do rei passou a inchar como uma bolha crescente. A cabeça cresceu. Garras surgiram onde havia as mãos e os pés, escamas apareceram por todo o corpo do rei que em instantes - enquanto a áurea negra se dissipava - não havia mais o homem que conheci, mas sim um dragão igual ao que havia sido morto, com este desaparecendo. 

Perplexa, Lorely passou a gritar e chorar em desespero. Sem mais me aguentar ficar oculto, corri para auxiliá-la e tirá-la dali. 

Depois disso, eu não me lembro de muita coisa, porque está tudo ainda muito nublado na minha cabeça, mesmo depois de tanto tempo. A única coisa que me recordo é que o mar se acalmou e os tremores que haviam perdurado, pararam rapidamente.  

Agora mesmo eu vou tomar mais um pouco do conteúdo da garrafa, já que minhas mãos tremem tanto quanto aquele terremoto. 

***

Já faz quase um mês desde quando eu comecei a relatar esses fatos, sem conclusão. Sim, tudo precisa de um fim definitivo e durante esse tempo, eu fui até Donainville. Qual não foi a minha prazerosa surpresa em ver que o reino havia se recuperado quase totalmente da catástrofe. Perguntei a um comerciante quem era o atual rei e para meu espanto, ele respondeu: 

— Não temos um rei, meu cara senhor, mas sim a doce rainha Lorely! Que os céus a abençoe! 

Eu não sabia como reagir àquela notícia. Lorely, rainha de Donainville? Como, se ela nem ao menos chegou a se casar com o rei Brayan? 

Aproveitei para perguntar sobre o paradeiro do rei, já sabendo a resposta. 

— Ele desapareceu. Pobre homem – o comerciante suspirou – É uma pena que a tenha desaparecido tão jovem. Nunca mais o vimos e alguns meses depois do desastre, a noiva do rei foi proclamada rainha e tem governado desde então. Desejas levar essas maçãs?  

Sem saber o que estava fazendo, eu corri em direção ao castelo. Eu precisava ver Lorely uma última vez. 

Ela me recebeu cordialmente, quase irreconhecível em seus trajes reais que só realçavam mais a sua beleza. Porém, eu percebi uma tristeza profunda em seus olhos azuis e uma expressão de cansaço em seu rosto. 

— Faz muito tempo desde quando nos vimos pela última vez, senhor. Espero que estejas passando bem. 

— Estou sim, obrigado senhora.  

Um criado serviu o chá e o silêncio perdurou por longos minutos. Eu temia tocar no assunto que eu tanto queria conversar. 

— Sei por que tu estas aqui. - ela começou - Eu preciso que tu me prometas uma coisa.  

A rainha me encarou seriamente e eu me senti muito exposto. 

— Prometerei o que quiseres de mim, senhora. 

— Não contes nada a ninguém sobre o que vimos naquele fatídico dia. Ninguém deve saber o que realmente aconteceu com o meu querido rei e nem sobre o fardo da família real. Prometes? 

Por um momento eu hesitei, doendo de curiosidade para saber mais a respeito. Todavia, o olhar que a rainha Lorely me dirigia era ao mesmo tempo de uma ordem e súplica e eu não tive escolha. 

— Prometo que esse fato jamais será mencionado por mim. 

Depois disso, a visita se estendeu por assuntos referentes ao reino e tudo o que aconteceu enquanto estive fora. A rainha me levou para uma das sacadas do castelo que tinha uma bela vista, incluindo o Vale das Montanhas – agora quieto e solitário, aparentemente. 

— Nunca mais o vi – ela sussurrou com uma voz cortante – Ele deve ter se escondido dentro daquela caverna e não deve ser incomodado antes de chegar a hora e o momento certo. Quando chegar, um rei ou uma rainha deve matá-lo em sacrifício para salvar o povo de Donainville de alguma desgraça. Depois, tu sabes o que acontece. 

— O rei ou rainha que mata o dragão vira a Besta – completei, estremecendo. 

— Exatamente. Esse é o preço da prosperidade deixado pelo Rei Desertor, sendo ele o primeiro dragão. Aquele que o meu querido rei Bryan matou o era o seu bisavô, o rei Élbio que havia se sacrificado no primeiro terremoto que assolou Donainville.  

Ela parou, respirando fundo. Parecia que a rainha estava querendo falar aquilo há muito tempo, confessando-me: 

— A única coisa que eu não suportaria é em ser eu a matar o meu amado noivo. 

A voz da rainha sufocou em um soluço, enquanto algumas lágrimas desciam por seu lindo rosto. Abstive-me de mencionar que o rei Brayan já está morto há muito tempo. Palavras desnecessárias em momentos de dor não são bem vindas. Depois de alguns instantes, eu parti com provisões dadas por ela como forma de agradecer pela visita e o auxílio prestado. 

Horas depois, deixei Donainville para sempre. Eu não suportaria continuar vivendo por lá depois de tudo o que ocorreu e por ter a absoluta certeza que a rainha Lorely teria o seu coração para sempre entregue a uma besta que um dia foi seu noivo e rei. Sei que esse sentimento é egoísta, mas não posso evitar em senti-lo. 

O reinado de dragões em Donainville seria permanente. 

E aqui termina a minha narrativa que eu prometi nunca contá-la a alguém, a não ser a mim mesmo. 


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