Cabaret escrita por isaac


Capítulo 1
Foreigner




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Havia um estrangeiro no cabaré aquela noite.

Todos sabiam; assim que o homem entrara no estabelecimento, a notícia correra de funcionário a funcionário e de cliente a cliente. A fofoca no Altea’s era um problema que incomodava a maioria das pessoas novas ao lugar, e até alguns dos empregados e visitantes constantes.

Incomodava Keith, com certeza. Mas ele não ficou irritado daquela vez, já que alguém desconhecido significava alguém diferente para impressionar. Ficou satisfeito de ter preparado um show bom para aquela noite, que pronunciava todos os lados e variações de sua voz: suave, rouco, grave, potente, qualquer característica. Podia soar arrogante, mas ele era apenas confiante, e tentava demonstrar isso em cada parte de suas apresentações.

Lance entrou no camarim, e fez um caminho direto até seu canto da bancada do espelho, sem nem trocar olhares com Keith. Abriu uma gaveta, tirou uma pilha de palhetas e jogou-as em cima do estojo de maquiagem de Allura, que grunhiu incomodada.

— Será que você pode ser um pouco menos folgado, Lance? - ela pediu, pegando outra caixinha e passando outro tipo de pó no rosto de Keith.

— Sei que você me ama, Al - provocou, se olhando no espelho uma última vez e saindo.

— Honestamente - Allura revirou os olhos, e deixou o pó sobre a mesa. Analisou o rosto de Keith, erguendo seu queixo, e bateu as mãos como se dissesse “trabalho feito”. - Voilà.

Ele se virou para o espelho e sorriu. Já tinha recebido e visto o resultado dessa maquiagem várias vezes, mas mesmo assim, sorria toda vez que via seu reflexo. Não que fosse nada demais: as únicas mudanças visíveis eram as sobrancelhas mais bem-definidas e o delineado simples, rente aos cílios, que “realçava o formato de seus olhos”, aparentemente.

A porta do cômodo se abriu e Coran enfiou a cabeça no cômodo.

— Dez minutos, Keith - anunciou, e saiu tão rápido quanto entrou.

Keith assentiu para Allura e ela lhe deu um aperto reconfortante no ombro. Ele saiu da sala e começou a andar de um lado para o outro nos bastidores, enquanto aquecia e exercitava a voz. Lance passou por ele, apressado, e riu. Keith travou a mandíbula e revirou os olhos. O latino se afastou, murmurando algo sobre como “não precisava de aquecimento” para seu show acústico e como Keith estava “absolutamente ridículo” exercitando sua voz. Eram mentiras, mas todos já estavam acostumados a Lance se exibir, dizendo ser mais do que era.

Coran apareceu novamente, parecendo tão enérgico quando sempre. Espichava a ponta de seu grosso bigode ruivo ansiosamente, e usava um terno azul. O gerente do Altea’s era, de fato, uma figura cômica, mas muito querido por qualquer um que o conhecesse. Checou um pedaço de papel e fez que sim com a cabeça, para nada específico.

— Cinco minutos. Está pronto? - Keith assentiu, e Coran sorriu. - Bom, bom. Pidge vai mudar a música quando for sua deixa.

— Eu sei. Já fiz isso dezenas de vezes, lembra?

— Lógico. Eu só… Queria ter certeza que você não tinha esquecido.

— Sim. Obrigado, Coran.

O ruivo fez que sim mais algumas vezes e saiu pelo corredor. Keith riu consigo mesmo e se aproximou de um espelho oval, de cenário, que ficava largado perto das coxias. Conferiu sua aparência e sorriu. Nunca se vestia formalmente demais, e essa já se tornara uma característica sua. Usava uma camiseta cinza, calças pretas e botas de couro gastas. Não sabia com certeza se ficaria assim; uma camisa social vermelha estava pendurada em uma arara ali ao lado.

Ele respirou fundo e sorriu, passando uma mão pelo cabelo escuro e macio. Ouviu os passos de Coran ressoando no linóleo, e tirou a camisa do cabide, em um movimento ágil. O gerente apareceu atrás dele e bateu o sapato no piso algumas vezes, enquanto Keith começava a abotoar a camisa.

— Dois minutos. Esteja pronto, Kogane.

— Estou, chefe - Keith riu, fechando o penúltimo botão. O colarinho ficou aberto, mostrando suas clavículas e um pouco da camiseta. Pronto, perfeito. Alisou a parte mais comprida de seu cabelo e espiou a última coxia. Pidge estava terminando sua melodia de transição no piano, o palco estava escurecendo e o saxofone parecia ter sua própria dose de expectativa.

— Pode ir - sussurrou Coran. A plateia em si estava se silenciando, então qualquer barulho dos bastidores seria ouvido.

Keith caminhou lenta e confiantemente até o meio do palco, então segurando e apertando o microfone. O cabaré inteiro estava em um escuro e silêncio tão profundos que dava um calafrio em Keith, mesmo que já tivesse se acostumado àquilo. Ouviu Pidge se esgueirar até o sax atrás dele e começar a soprar, ao mesmo tempo que um grande holofote iluminou apenas o cantor.

You know you’ve got that thing

That makes the guys all swing

You know exactly what you do

Assim que viu o estrangeiro, Keith ficou muito satisfeito consigo mesmo e com a canção que tinha escolhido para dar início à sua apresentação: grave, potente, simples mas sexy.

Foi fácil perceber o forasteiro entre os outros clientes; estava no centro do mezanino, em pé, e era logo para ali que Keith costumava olhar enquanto cantava. Por isso, não teve opção a não ser olhar e analisar aquele homem desconhecido.

Tinha ombros largos e um torso definitivamente interessante. Usava uma camisa social branca com as mangas puxadas até os cotovelos e alguns botões abertos, mostrando um pequeno pedaço de seu peito. Seu pescoço forte levava até um maxilar tão forte quanto, atraente. Seu rosto era bonito, e Keith o reconheceu como oriental. Tinha uma cicatriz cortando o nariz perto dos olhos, e uma parte branca em seu cabelo. O resto do cabelo era moreno, curto no topo e raspado no resto. Esse era o máximo de detalhes que conseguia distinguir assim de longe, mas era o suficiente. Por enquanto.

You like the hit and run

You say it's all for fun

You think that I'm the one for you

A expressão no rosto do homem mudou, e pareceu mais interessado na performance de Keith. Estavam olhando diretamente um para o outro, e provavelmente o cabaré inteiro já tinha percebido isso. Estavam ligados, focados um no outro. O estrangeiro estava totalmente entretido pelo show, e o cantor deixava-se vibrar com o sax, transbordando na canção. A presença de palco e interpretação dele já tinham sido elogiadas em algumas críticas; todos que iam ao estabelecimento pela primeira vez, ou representando algum jornal, costumavam ir em um dia onde Keith se apresentava. Não que Lance fosse ruim, nem Pidge ao tocar sozinha, mas Keith com certeza fora o responsável por dar um nome ao lugar.

Ele balançou suavemente e trocou o peso de um pé para o outro, não nervoso ou apreensivo, e sim como se estivesse vadiando, preguiçoso mas sem perder o charme. Brincou com o suporte do microfone um pouco, agora dando mais atenção às outras pessoas. Começou o refrão com um sorriso no rosto.

Boy if you wanna go I would not mind

But I'm not the kind of drum you play one time

Boy if you wanna go I would not mind

But I'm not the kind of drum you play one time

Partes do público assoviaram e aplaudiram quando ele subiu uma oitava para a nova parte da música. Keith se sentiu tentado a olhar o que o desconhecido estava achando, mas não soube se deveria. Uma parte de si dizia que “ah, qual o problema? Você está tentando impressioná-lo. Faz parte ver como está reagindo,” e outra negava, dizendo “não! Você vai parecer jogado, desesperado. Como se só ele importasse. Isso não é uma apresentação privada, afinal”. A segunda opinião levava em conta a atração que Keith realmente estava sentindo, e ele precisava manter sua dignidade se quisesse mantê-la ali.

Decidindo que não importava, ele ergueu a cabeça, e um meio-sorriso tentou tomar seu rosto. O homem tinha se apoiado no parapeito do mezanino, inclinado para a frente, e observava Keith atentamente. Sorrindo enquanto cantava, ele fechou os olhos e deixou seus lábios praticamente se moverem contra o metal do microfone.

One time, one time, one time

Boy I'm not the kind of drum you play one time

One time, one time, one time

Boy I'm not the kind of drum you play one time

Keith estalava os dedos seguindo o ritmo, adicionando ao sax. Ele podia sentir dezenas de pares de olhos presos nele, mesmo que agora a iluminação estivesse mais distribuída. Amava a sensação; não era extrovertido nem barulhento como Lance, mas no palco, se transformava em outra pessoa. Tinha toda a confiança do mundo, aquela que costumava deixar para si mesmo. Tinha a coragem de fazer qualquer coisa debaixo dos holofotes, para dominar a atenção.

Tirou o microfone do suporte e enrolou o fio na outra mão; começou a ir de um lado do palco a outro, sorrindo e interagindo com as mesas mais próximas. Voltou à sua posição inicial a tempo da segunda estrofe: era sua hora de brilhar.

I know I've got that sway

That makes the boys all stay

I know the way that men can be

Keith repassou a checagem de som e a prática em sua cabeça: ficar no lugar e provocar quando o holofote estivesse focado nele, se aproximar da plateia quando a luz era geral. Agora era a hora de provocar, então se deixou o mais próximo do microfone possível, e olhou para cima o tempo todo. Para a pessoa que o assistia com o maior interesse. O estrangeiro parecia perdido na voz de Keith, centrado em seus movimentos. Por mais sutil que fosse, o cantor tentava instigá-lo, indo até o limite do que não seria vulgar. Mantendo sua dignidade em jogo, ele deixou sua boca tocar o metal frio para a melhor parte da música. Prendeu o olhar do homem no seu e cantou.

I like it smooth and slow

Give it some time to grow

That’s something you should know about me

Keith era bom, ele sabia disso. E ele fazia questão que todo mundo entre aquelas quatro paredes soubesse também. Ele tinha consciência de Allura, Lance e Coran assistindo dos bastidores. De Hunk e Shay assistindo do bar. E Pidge observando, para que seguissem o planejado, para não sair do tempo e para acompanhar o ritmo do vocalista.

O controle que Keith tinha sobre sua própria voz e sobre a audiência era loucura. Fazia sentido, no final, já que ele treinava muito, sempre. Estava sempre cantando, indo atrás de novas canções, novos desafios, novas oportunidades. Era regular e empregado apenas no Altea’s, mas às vezes fazia apresentações solo em outros lugares, já que viver de talento exigia esforço. Ele era uma celebridade na noite local, e outros pubs e cabarés disputavam para contratá-lo. Nunca deixava isso inflar seu ego, apenas continuava ensaiando para ir mais longe.

Boy if you wanna go I would not mind

But I'm not the kind of drum you play one time

Boy if you wanna go I would not mind

But I'm not the kind of drum you play one time

Ele pegou o fio do microfone com o indicador direito e aproximou a mão da coxa. Ao invés de estalar os dedos, bateu na perna quando as marcações se encaixavam na melodia. Era quase impossível de ouvir, mas todo o gesto era incrivelmente envolvente. Agora que a música iria se tornar uma repetição simples, precisava adicionar mais à performance. E já tinha brincado com o forasteiro o suficiente, agora precisava entreter a todos, fazê-los sentir como se cada um tivesse um significado diferente para Keith.

Tomou o microfone em suas mãos e foi até o fundo do palco, onde Pidge tocava o saxofone. Ela arqueou a sobrancelha para o cantor, tentando passar alguma mensagem. Ele sentia que, provavelmente tinha algo a ver com a conexão clara entre ele e o estranho, e não tinha uma resposta concreta. Piscou para ela e voltou para a frente.

One time, one time, one time

Boy I'm not the kind of drum you play one time

One time, one time, one time

Boy I'm not the kind of drum you play one time

Girava os quadris apenas um pouquinho quando dizia “one time”, fazendo um movimento maior com os ombros do que com o tronco em geral. Deixou suas mãos livres e puxou a gola da camisa, com uma atuação quase convencida. Ele não era qualquer coisa, ele não era ruim, ele não era convencional. Ele mais do que merecia aquele lugar, no centro da sala. Ele tinha trabalhado muito duro para consegui-lo, e precisava provar isso para cada uma das pessoas da plateia, mesmo que algumas já soubessem.

One more time

Play play the drum

One more time

Play play the drum

Agora era tudo sobre seu corpo. Sua voz, mesmo que ainda sendo importante, não passava mais mensagem nenhuma. Saiu do lugar novamente, foi para um extremo do palco, agachou e sorriu para a pessoa mais próxima, uma garota jovem, enquanto deixava a simples repetição deixar seus lábios.

One more time

Play play play the drum

One more time

Piscou para a menina e voltou a caminhar, seguindo o limite da plataforma. De lado, erguia o ombro virado para o público e esticava o pescoço, como se procurasse alguém que tinha se sentado no fundo do cabaré. Lógico que era apenas encenação: ele nunca procurava ninguém. Eu nunca vou atrás de ninguém, repetiu para si mesmo mentalmente, tentando ser apenas charme, alguém que vem atrás de mim.

Foi para o outro canto do palco, e se virou para a audiência, deixando seu corpo livre, e ele quase se sentia mole para tentar combinar suas ações à fluidez do som do sax.

Boy if you wanna go I would not mind

But I’m not the kind of drum you play one time

Boy if you wanna go I would not mind

But I’m not the kind of drum you play one time

Nem dava mais muita atenção à letra; ele não tinha pensado em como não perder a atenção enquanto a canção se tornava repetitiva e não havia mais o que esperar, qual expectativa a ter. Agora precisava improvisar.

Voltou para o meio do palco e jogou o queixo para cima, olhando mais uma vez para o estrangeiro. Ele estava quase desconfiado, uma sobrancelha arqueada, à respeito do que Keith estava para fazer. Mas o meio-sorriso em seus lábios garantiu para o cantor que, com apenas uma canção, já o tinha impressionado. Sua meta real tinha sido alcançada. Agora, no entanto, tinha um novo objetivo: conquistar o homem. Mais difícil, mas não necessariamente um desafio.

One time, one time, one time

Boy I’m not the kind of drum you play one time

One time, one time, one time

Boy I’m not the kind of drum you play one time

Ele ainda tinha seis músicas para conseguir fazê-lo. Apenas uma delas era tão boa para provocação quanto a primeira, mas ele teria oportunidades de interagir mais com o estranho à medida que o tempo fosse passando e a noite, evoluindo. Mesmo após a apresentação, por intermédio de Shay e talvez até com interação direta, ele podia continuar com a missão, no pouco tempo que teria. Talvez, se ela fosse concluída, podia ir para um novo caminho. Mais do que conquistar…

Pidge tocou a última nota da canção, e enquanto trocava de instrumento para o piano, a plateia aplaudiu Keith. O vocalista fez algumas pequenas reverências, sem se curvar completamente, mas o suficiente para demonstrar agradecimento para com o público. Os acordes da próxima música começaram a soar, e Keith se preparou para a próxima parte.

Começou girando seus ombros para trás, murmurando a letra, deixando sua voz adquirir uma rouquidão leve, sem machucar sua garganta. Mesmo com a iluminação espalhada, ficou quieto junto do suporte do microfone. Iria contra o caráter da canção ficar se movendo demais, se abrindo demais para o público. A melodia lenta e quase entorpecente contava a história de uma traição, sob o ponto de vista do traidor.

Depois de uma música como a anterior, era comum de Keith mudar o clima com algo mais pesado, mas sem nunca 100% divergir do tema da apresentação. Ele começava prendendo a atenção de todos, e assim que a tinha nas mãos, podia realmente fazer o que quisesse. Sabia que não conseguiriam tirar os olhos dele, já que não queriam perder nada, não podiam arriscar perder nada. Entreter a audiência era extremamente fácil para Keith, então nunca realmente se preocupava.

O tema principal daquela noite era atração, o que tinha encaixado perfeitamente com a presença do estrangeiro. A primeira canção tratava do primeiro interesse, forte, que prende mas não sufoca. Já a segunda abordava o renascimento do desejo, o descobrimento de que havia tal coisa no mundo depois do esquecimento dela.

Ao fim da música, Pidge começou a tocar um ritmo mais triste, mais arrastado, e Keith sabia exatamente o que fazer. De modo incomum, ele tirou o microfone do suporte mais uma vez e foi para a frente do palco. Abaixou-se, e sentou na beira da plataforma. Havia uma mesa logo na sua frente, então olhou diretamente para um menino jovem, talvez nem com idade para beber, e começou a cantar como se lhe contasse uma história.

Essa era uma das músicas mais melancólicas das sete selecionadas. Contava sobre a atração não-recíproca, uma admiração que só vai, não volta. Ia até a dor das esperanças destruídas, lágrimas derramadas por alguém que não queria saber, que não se importava. O tom era agudo, como se a perspectiva da obra fosse de uma garota perdida em amores por um rapaz que mal sabia de sua existência. O garoto interlocutor de Keith parecia quase tocado pela canção, como se soubesse exatamente o que o eu lírico estava sentindo. E conseguir dar essa sensação para o jovem provava que Keith estava fazendo seu trabalho bem feito. Só podia observar a reação do menino, infelizmente, por causa da posição que tinha escolhido para sua performance, mas sabia que todos podiam vê-lo, e que talvez - muito provavelmente - mais pessoas se identificavam com a letra.

O ritmo lentamente se transformou em algo mais rápido, mas ainda assim, com um tom insatisfeito. Não exatamente insatisfeito, mas chateado, ferido, furioso. O compositor queria passar indignação por meio da melodia, e os versos cumpriam a função de dar mais profundidade àquilo, praticamente explicando como tal composição encaixava no tema da noite.

Keith começou erguendo a cabeça, e cantou rapidamente, nervoso, como se as palavras o sufocassem, como se estivessem entaladas dentro de sua garganta e ele faria o que fosse para tirá-las dali. Ficou em pé e voltou para seu lugar normal no centro do palco, soltando frases como se machucasse deixá-las dentro de si. A letra contava sobre o amor proibido, e à distância, mas de uma maneira com menos liberdade e menos romance do que o clássico Romeu e Julieta. Nessa versão, não apenas uma inimizade entre famílias afastava os amantes, e não havia baile de máscaras permitindo seu encontro. Duas garotas, jovens e inocentes, se admiram e cultivam um sentimento mútuo à distância. Uma imigrante oriental forçada a trabalhar em fábricas e uma latina que tem emprego de garçonete. A devoção de uma à outra é gigante, considerando que a história diz que apenas cruzam seus caminhos ocasionalmente. O ritmo acelerado permitia que detalhes fossem acrescentados, então a plateia estava completamente presa em Keith.

Por sorte, o ambiente ali era livre de preconceitos. Era um dos poucos lugares que aceitavam qualquer tipo de pessoa na cidade inteira, por isso era um bocado underground. Nas críticas de Keith, por exemplo, aparecia apenas o nome do cantor, “Keith Kogane”, e não qualquer tipo de afiliação ao cabaré, como um hífen e “Altea’s” ou apenas o nome do lugar no título. Não aceitar discriminação tornava o estabelecimento menos famoso, ou menos público, mas alguns casos de pessoas repensando seus princípios já haviam ocorrido, e isso deixava Alfor - o dono da casa, pai de Allura - muito orgulhoso.

Quando chegou o refrão, a melodia suavizou-se e o vocalista finalmente pôde respirar e se acalmar, já que nesse ponto, a música se transformava totalmente, perdendo o desespero e aceitando que não havia possibilidade entre as duas. A atração entre elas permanecia ali, elas tentavam mantê-la viva, mas o cotidiano é o inimigo do amor.

As próximas estrofes contavam sobre suas vidas separadas, lembranças raras após o acolhimento da inviabilidade da relação entre as garotas. Como seguiram com a vida, como superaram a outra, ao mesmo tempo nunca esquecendo-a. Era doce, muito mais calmo do que o início da canção, e quase triste ao mesmo tempo. Nunca é bom, nunca é fácil superar alguém sem real motivo. O refrão se repetiu, e o ritmo mudou novamente, se tornando mais alegre, praticamente surpreso.

As garotas se encontram. Por algum motivo, a oriental visita a lanchonete da latina, por acidente. Isso acontece meses depois de decidirem desistir, e todos os sentimentos voltam à tona, e elas sorriem. Estão mais velhas, mais maduras, mas no fundo sabem que podem ser algo, ter algo. Iriam precisar sê-lo escondidas, mas não importa, porque precisam uma da outra. Sentem dentro de si que precisam, e que podem, querem, muito. Mas não é possível; o encontro é rápido, e não têm o tempo de trocar qualquer tipo de informação. A vida as afasta novamente, e dessa vez, é definitivo. A melodia triste se misturou com a indignada do começo, e o refrão foi cantado uma última vez, antes de Keith trocar de peça.

Pidge se levantou do piano e foi para o saxofone. O cantor sorriu para a plateia enquanto era aplaudido, e a musicista começou a tocar atrás dele, um som triste, que exigia talento e fôlego dela, e que surpreendeu o público inteiro, os silenciando, dando a deixa de Keith começar a cantar.

E ele contou mais uma história, dessa vez sobre como não há atração. Nada puxa as pessoas juntas, não como previamente algo puxava, simplesmente não existe nada ali, nenhuma ligação, não como previamente havia. Era um relacionamento morto, que logicamente levaria ao término, mas por algum motivo nenhum dos dois amantes desiste, eles se seguram à esperança de que isso é apenas uma fase, que vai melhorar, embora saibam que isso não é verdade. Sabem que não têm futuro.

A maneira com a qual Keith cantava encantava, e todos lhe davam ainda mais atenção; não que houvesse um sequer cliente ali que não estivesse preso nele. Alguns se inclinaram mais para a frente, quase como se o cantor tivesse uma força gravitacional, e atraísse olhares e corpos. Como se ele próprio fosse um exemplo corpóreo do tema da noite.

Só então, deixando a canção em segundo plano - sem parar de interpretá-la, mas não focando nisso - e pensando, percebeu que tinha passado duas músicas sem sequer lançar um olhar na direção do estrangeiro. Tinha esquecido dele, se distraído completamente. Não que isso fosse exatamente ruim, afinal, aquilo não era um show privado, mas ele não podia ser completamente desinteressado. Decidiu deixá-lo para depois novamente, para a próxima parte, já que agora tinha que ser profundo, quase fúnebre, e não um homem de 22 anos que queria muito sair dali acompanhado.

A obra do momento deixava Keith mostrar a força de sua voz, e a maleabilidade, já que conseguia sustentar um tom grave - mais grave que sua própria voz - e pular para um agudo como se não precisasse de esforço algum. Regulares do cabaré já o conheciam e estavam cientes de sua capacidade, mas ele fazia questão de realçar isso pelo menos uma vez por apresentação, já que sempre havia pessoas novas por ali.

Fechou os olhos e prolongou uma nota, concentrando-se novamente na interpretação e deixando que o sentimento mexesse com seus próprios, moldasse seu coração para poder passar emoções reais por meio da performance. Se dedicou mais, sabendo que ter pensado em outras coisas enquanto se apresentava tinha diminuído a qualidade do show, então ganhou de volta o bom desempenho e o momentum do espetáculo.

Aquela canção era bem irregular, não realmente tendo um refrão, ponte ou estrutura normal. Era quase um poema visual, bagunçado, mas que ao mesmo tempo fazia todo o sentido. Afinal, quando não há mais nada em que se sustentar, qual ordem tem um relacionamento? Aquela era uma composição excelente que acompanhava uma letra igualmente boa, ambas feitas por amigos de Keith, que se mostravam extremamente felizes em permitir que ele cantasse uma de suas músicas. Isso dava mais visibilidade a qualquer compositor, ter uma peça interpretada por ele; era comum ter que recusar - ora, seus shows não têm todo o tempo da noite - trabalhos que artistas enviavam e disponibilizavam para suas apresentações, e ninguém entendia como tudo isso não inflava o ego de Keith.

Ele terminou apenas murmurando contra o microfone, sem realmente pronunciar uma palavra direita, e Pidge tomou conta da transição para a próxima música. Hmm, agora era uma boa hora.

O cantor deixou seus murmúrios se transformarem em pequenos sons, gemidos quase, e deixou sua voz bem macia e suave para começar a cantar. Essa era sua grande chance; olhou para cima e sorriu de canto.

Ah, essa canção era a que demorara mais para ser escolhida. O tema, atração carnal, tesão; desejo puro e físico. Era bastante difícil encontrar uma boa peça para preencher aquela lacuna, ainda mais uma que não destruiria sua dignidade. Muita pesquisa e visitas à lojas de discos da cidade inteira foram necessárias, mas ele por fim conseguiu achar aquela obra. Era perfeita, dividida em duas partes: uma masculina, ou top no caso de uma relação não hétero, e uma feminina - não demais -, ou bottom. A segunda era mais divertida para Keith, com mais ruídos sexuais e mais provocação. Ele só realmente conseguia interpretar o início em alguns humores e dias separados, e em alguns ensaios, Allura tinha dito que ele estava completamente confortável na primeira metade. Geralmente, só conseguia passar sua mensagem com a outra, mas variava.

Naquela noite, ele estava motivado a fazer ambas partes valerem, e sem nem terminar a primeira estrofe, já podia perceber que o estrangeiro estava todo vermelho, e parecia esconder um sorriso por trás da mão. Por sorte Keith tinha visão boa, porque a luz da plateia era pouca, a iluminação toda focada nele. Mas conseguia se virar e perceber o homem, mesmo que não muito bem.

Tirou o microfone do suporte e foi mais para a ponta do palco, completamente imerso na letra e na melodia; conseguia sentir o instrumento vibrando na sola de seus pés. Fechou os olhos e pendurou o pescoço para trás, seu torso se curvando e indo para a frente. Precisou esticar o braço e aproximá-lo da boca para sua voz não deixar de ser amplificada, e aproveitou para gravar os pequenos barulhos que se alongar causava. Agilmente, voltou à sua posição normal, intencionalmente dando alguns passos em falso e girando os ombros e o quadril bem de leve. Uma de suas sobrancelhas estava arqueada, se modo desafiador, e ele conseguiu ouvir Allura arfar à sua esquerda; ele nunca se sentira tão forte, e nunca tinha conseguido ser tão bom apresentando a primeira parte da música. Deixou-se ficar um pouco egocêntrico, só no calor do momento, e continuou cantando.

Não desprendia os olhos do forasteiro, com vontade de capturar cada reação, cada segundo de resposta dele. Tinha perdido a leve vergonha, e agora parecia provocar Keith tanto quanto ele tentava o provocar. Um meio-sorriso nos lábios e o queixo erguido, em reconhecimento, quase como se o cantor fosse seu adversário, e precisasse provar que era melhor. Ele podia, mas Keith faria questão de se mostrar digno de competição.

Voltou o microfone para o suporte e focou menos em seduzir, não apenas o estrangeiro; projetava sensualidade na direção da audiência inteira. Sim, tinha um objetivo e uma pessoa em especial para quem dava atenção, mas o cabaré inteiro estava na palma de suas mãos. Começou a cantar o refrão, sem um papel definitivo, e sim simplesmente fluindo em desejo e naturalidade. A interpretação necessária para aquela performance vinha junto de seus instintos, já que atração carnal é um impulso primal do ser humano, a reprodução.

(Não que Keith fosse capaz de reproduzir com o homem, mas sexo.)

O refrão era quase divertido de cantar, por ser na segunda pessoa e tão sem… Vergonha. Sem nenhum limite, apenas flerte e linguagem sexual puros. Ele se sentia tão bem, assim desinibido, livre, apresentando para o público um estado corporal e mental que deveria ser particular, limitado à quatro paredes e a duas - ocasionalmente, mais - pessoas. Nunca imaginou que, ainda mais com o mundo lá fora tentando reprimi-lo e destruir pessoas como ele, a sensação de agir tão sexualmente seria tão incrível. Provavelmente, suas vontades para aquela noite o estavam influenciando, mas mesmo assim…

Aproveitando o curto instrumental que se passava entre o refrão e a segunda parte, Keith teve uma ideia que não tinha treinado, que podia dar errado e que podia destruir a dignidade que estava lutando para manter, mas depois de hesitar por um milissegundo, decidiu que não importava. Afinal, estava apenas interpretando um personagem, não? Ele nunca era 100% ele durante um show. Não tinha problema.

Pegou o microfone nas mãos novamente e levou o suporte para o canto do palco, perto das coxias, e voltou rapidamente para seu lugar, sob o holofote. Em seus últimos segundos sem dizer nada, caiu de joelhos e olhou para cima, determinado mas submisso.

Oooh. Keith sussurrou a letra, sua respiração entrecortada, e se interrompia no fim de estrofes, como se alguém estivesse dialogando com ele - mesmo que ninguém além dele soltasse um som, alguns pareciam até não respirar mais -, e ele estivesse seguindo ordens. Não obedecia de um jeito desesperado, assustado, e sim com uma admiração gigante, dando voluntariamente a importância para a outra pessoa. Nunca se rendendo, nem aceitando uma derrota, mas se colocando no mesmo nível que o outro, porém em outra posição, no sentido literal.

O estrangeiro também olhava para o cantor com admiração, atônito com o talento e performance dele. Seus olhos agora expressavam uma firmeza tão grande que apenas intensificou o desejo e a dedicação de Keith, que girou o pescoço e se levantou, cabeça um pouco abaixada mas olhar erguido. Mordeu o lábio inferior em um pequeno intervalo e continuou cantando, virando o rosto para longe da plateia, como se tentasse esconder algo - como se ainda houvesse o que esconder.

Passou tranquilamente por essa parte, sem hesitar, sem se segurar, sem precisar sair de si muito, mas convencendo e atraindo a audiência inteira. Os últimos versos eram mais leves, pós-sexo, e se fossem inexistentes, a próxima e última canção não faria sentido quando ligada à esta. Enquanto Pidge corria para o piano, Keith sorriu e agradeceu os aplausos, doce, mudando de caráter completamente.

Romance. Finalmente, o tipo mais comum, simples e fofo de atração. Poucos nunca quiseram um pouco de romance em suas vidas, poucos nunca sentiram sequer um calor no coração por alguém. Algo tão puro, e tão completo ao mesmo tempo. Tão feliz. É estar em um relacionamento, ligado a alguém, é não ter medo de estar sozinho, saber que não está. É não se cansar da pessoa, é querer ficar perto dela, é definir lar como não onde você está, mas com quem - a pessoa amada.

O ritmo era animado, leve, alegre. Keith quase rodopiava pelo palco, praticamente dançando, e se deixando ser alguém que descobria o primeiro amor. Sua voz ecoava pelo cabaré, todo iluminado, e era totalmente harmoniosa, preenchendo todo espaço livre no ambiente e dentro de quem o assistia. Parou no centro do palco, sorrindo como um bobo, e olhou para cima, meigo. A expressão do estrangeiro tinha mudado junto da música, e passado de algo tão sedutor para um sorriso terno, como se apenas depois da curta apresentação já se sentisse incumbido a Keith de alguma maneira.

E depois de alguns instantes, as luzes estavam se apagando, antes que o vocalista realmente percebesse. Aquela noite provavelmente estava sendo uma das mais divertidas de sua vida, e estava passando muito rápido. Seu tempo de show já tinha acabado, e aplausos enchiam o estabelecimento, ricocheteando nas paredes e entrando no corpo do músico, funcionando como o combustível para a máquina dentro dele. Com um sorriso radiante no rosto, gritou mais um obrigado e saiu para os bastidores, pulsando com energia e cansaço ao mesmo tempo.

Allura o estava esperando na coxia, com um copo de uísque e muito orgulho. Guiou-o de volta ao camarim e, assim que estavam ambos sentados e ele já tinha tomado um pouco da bebida, começou a ficar animada.

O que foi isso?! — perguntou, extremamente elétrica, um sorriso largo no rosto e os olhos arregalados.

— Como assim? - Keith estava perdido, meio tonto e tentando suprir sua falta de fôlego com álcool.

— Você estava fantástico, Keith! Você dominou a plateia, arrasou na sexta música, você estava… Meu Deus. Por que você não faz isso mais vezes?

Antes que ele pudesse formular qualquer tipo de resposta, Shay colocou sua cabeça para dentro do camarim, semelhante a Coran antes da apresentação.

— Shirogane gostaria de te parabenizar, Keith - ela disse, simples, a bandeja de garçonete debaixo do braço.

— Shirog- O estrangeiro? - ele arregalou os olhos, surpreso e feliz ao mesmo tempo.

— Exatamente - a garota assentiu, sorriu e saiu, apressada.

Shirogane. Finalmente, um nome se encaixava com a figura que assistia o show tão dedicadamente. Soava tão natural na cabeça de Keith, como se aquele nome lhe pertencesse, fosse a resposta para algum enigma dentro dele, uma palavra mágica em seus lábios… Não completa; um encantamento à metade. Precisava ir falar com ele rápido, já que precisava voltar para casa. Era quase meia-noite, e tinha aulas na faculdade de manhã. Iria conversar com Shirogane e ir embora, possivelmente acompanhado. Excelente.

Virou o resto do uísque e sorriu para Allura, que parecia surpresa e ainda mais orgulhosa.

— Vai atrás do seu homem, Kogane - ela riu, e o cantor corou, embaraçado. Ficou em pé, pegou sua ficha do vestíbulo no canto da bancada e saiu dali, com pressa e seu coração palpitando.

Deu a volta pelo meio das mesas, todos os clientes por quem passava parabenizando-o. Subiu as escadas para o mezanino e foi até a frente, cada um de seus movimentos observados pelo estrangeiro - Shirogane. Um sorriso repousava no rosto dele, e agora, Keith podia vê-lo com mais detalhes. Parou perto do parapeito e engoliu em seco, tentando empurrar a vergonha e o constrangimento para o fundo de sua garganta.

O homem tinha uma mecha inteira branca, e seu cabelo estava penteado para trás e preso por gel - bem diferente da bagunça que o corte de Keith formava ao redor de seu rosto. Era todo forte, com braços largos e um corpo extremamente bonito.

— Você é um cantor fantástico, Keith. Parabéns - ele disse, parecendo muito confiante, sem nem hesitar.

— Muito obrigado, Shiro--

— Por favor, me chame de Takashi - sorriu o estrangeiro, inclinando sua cabeça assim tão levemente e sorrindo mais ainda. Sua elegância era chocante, e deixou Keith perplexo.

— Ok... Takashi.

— Por que você não se senta?

— Eu adoraria, mas estou de saída… Tenho aulas amanhã cedo, vê, então preciso ir. Está tarde, e preciso andar de volta para meu apartamento. Não quero ir quando for muito de madrugada, já que vou sozinho--

— Bom, mas simplesmente não posso permitir isso, você não acha? - Takashi se levantou, pegando sua carteira do bolso de trás e tirando algumas notas para deixar sobre a mesa e pagar o que quer que tivesse consumido ao longo da noite.

Keith quase engasgou na sua própria saliva quando o homem ficou em pé ao seu lado e indicou as escadas com a cabeça, convidando-o a ir embora. Irem embora, juntos. Não era possível saber se aquilo levaria a qualquer coisa além de uma companhia no caminho de volta para casa, mas pelo menos era alguma coisa.

E Keith estava extremamente satisfeito com aquilo.

— Vamos? - Takashi chamou, oferecendo-lhe a mão.

— Vamos, sim - sorriu, e foi atrás do estrangeiro.


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