Keith foi chegar em casa tarde da noite. Seu medo era que Shiro houvesse ficado acordado além do horário esperando notícias suas – mas não era o que parecia ter acontecido quando foi checar sua caixa de mensagens.

Kogane não era um cara de muitos amigos. Tinha um número quase negativo deles, na verdade. Não fazia muito o tipo sociável, tampouco que fica passando mensagens o dia todo e as pessoas lutam por sua atenção. Estava bem longe dessa realidade.

Seu aplicativo de chat continha não muito mais do que três conversas – em que ele fora o último a visualizar – e o grupo dos moradores do condomínio.

É. Não muito sociável.

Pendurou a jaqueta nas costas de uma cadeira na entrada e estralou as costas enquanto avançava para dentro de seu canto. Seu apartamento era como um refúgio, algum lugar onde não se sentia mal em se isolar do mundo exterior, sozinho com seus pensamentos e sua própria música.

Ele tinha de admitir: embora solitário, aquele momento de retiro quase sempre lhe era revigorante.

Deixava o celular sobre a bancada de pedra assim que o sentiu vibrar. Estranhando uma mensagem àquele horário, inicialmente, logo sorriu ao ver o nome do remetente brilhar na tela.

Nerd Authority [2:56]: então

Nerd Authority [2:56]: a chegada do homem à lua

Nerd Authority [2:56]: forjado?

S4D_B0Y_2001 [2:57]: Com certeza.

Nerd Authority [2:57]: foi o que eu pensei

Nerd Authority [2:58]: eu disse isso pro matt e ele me mandou ir dormir

S4D_B0Y_2001 [2:59]: O Matt não sabe apreciar teorias da conspiração, já falamos sobre isso.

Nerd Authority [3:00]: evidentemente

Sorriu consigo mesmo.

Pidge era um de seus poucos amigos, e esse era a longa-distância. O conhecera em um fórum sobre teorias da conspiração fazia poucos meses, mas o laço entre eles já havia se tornado algo de amigos de infância. Era íntimo de Pidge, tão íntimo que era corriqueiro dos dois mandar mensagens às três da manhã de uma quinta-feira esperando resposta imediata.

Eram como corujas. Por conta de ansiedade, estresse, trabalhos de casa, café ou insônia, por vezes acabavam virando a noite ao mesmo tempo e a companhia um do outro tornava tudo menos excruciante. Pidge deixava sua vida mais fácil ao mesmo tempo que a complicava, Keith poderia dizer.

Nerd Authority [3:01]: de qualquer forma

Nerd Authority [3:01]: seria encantador discutir sobre como a nasa é um poço inerente de mentiras e não acredito que o matt está indo trabalhar lá dentro de duas semanas mas

Nerd Authority [3:02]: o que você faz acordado a essa hora?

S4D_B0Y_2001 [3:03]: Posso fazer a mesma pergunta?

Nerd Authority [3:03]: crise de ansiedade de novo. então?

S4D_B0Y_2001 [3:04]: Trabalho.

Nerd Authority [3:04]: jesus

Nerd Authority [3:04]: te prenderam na oficina até agora?

S4D_B0Y_2001 [3:05]: Não, não. Fui cuidar de uma encomenda.

Nerd Authority [3:05]: ??no méxico???

S4D_B0Y_2001 [3:06]: Na cidade vizinha. Mas aconteceram alguns (vários) imprevistos no caminho.

Repetiu toda a história que havia contado a Hunk mais cedo, embora em menos detalhes. Tentou manter a conversa fluindo ao mesmo tempo em que se trocava para dentro de uma calça de moletom e uma camisa sem mangas, bem mais confortável do que seus jeans imundos. Colocou toda a roupa suada da estrada no cesto para lavar e jogou-se no colchão sem suportes, ainda “teclando” com Pidge. Não se importou em acender nenhuma luz.

Nerd Authority [3:17]: então

Nerd Authority [3:17]: o universo hoje simplesmente pegou e falou ‘nada merece dar certo pra você’?

S4D_B0Y_2001 [3:18]: Aparentemente.

S4D_B0Y_2001 [3:18]: Agora eu estou morto.

Nerd Authority [3:18]: rip kife kogayne

S4D_B0Y_2001 [3:19]: Descanse em paz. )’:

Nerd Authority [3:19]: ele foi um bom homem, um bom amigo e um bom marido

Keith riu. Virou de lado na cama, chutando o lençol bagunçado de suas pernas para continuar conversando com Pidge por mais umas boas horas. Seu cansaço nunca o impedia de querer ajudar o mais novo por suas crises de ansiedade. Se o mínimo que poderia fazer era lhe oferecer companhia, então faria.

Começou a bocejar por volta das cinco. Avisou que não conseguia mais manter os olhos abertos. Relaxou assim que Pidge concordou com um emoji sonolento.

Adormeceu com o celular no colo.

X

O despertador tocou cravado às seis e meia da manhã. Keith calou-o com um soco e se sentou na cama, grunhindo. Nunca fora realmente uma pessoa que acordava cedo, mas sua agressividade poderia muito bem se dar ao fato de que havia ido dormir apenas com o almoço no estômago.

O mal humor aflorado pela fome, resgatou o travesseiro do chão e passou ambas as mãos pelo rosto, sentindo-o amassado pela noite de bruços sobre o lençol. O celular jazia jogado para um canto da cama, e ele se limitou a plugar o coitado em um carregador rapidamente antes de seguir para a cozinha.

A “cozinha” em si não passava de um balcão, geladeira e pia com alguns armários. Não era de cozinhar, então não tivera o trabalho de alugar um apartamento que possuísse um fogão – usava o micro-ondas para quase tudo.

Lembrou-se com algum humor do chilique de Hunk ao ficar sabendo de sua dieta. Lhe fez meio gazilhão de recomendações, e pelo tempo que Keith aceitou segui-las, viu a pele se livrar das espinhas, o cabelo se tornar mais macio, e até os pulmões ganharem mais força.

...Então deixou tudo aquilo de lado porque alimentação saudável não era para ele.

Imaginou que o colega de quarto de Hunk no ensino médio devia ter a pele mais brilhante da área dos três estados. A de Hunk mesmo só não era impecável porque graxa fazia mal aos poros.

Pescou nos armários uma tigela e uma caixa de cereal. Jogando-se sobre uma banqueta, Keith girou por alguns breves segundos antes de centralizar a bancada e servir seu saudavelíssimo café da manhã. Uma quantidade absurda de cereais com mel e um resto de leite da geladeira – não deixaria sua intolerância à lactose estragar a diversão.

Usou uma colher de sopa para levar a primeira colherada à boca. Pidge chamaria seus hábitos alimentares de cancerígenos. Keith rebateria argumentando que ele mesmo se alimentava exclusivamente de salgadinhos industrializados e chocolate.

Talvez devesse, mesmo, seguir os conselhos de Hunk.

Voltou ao quarto para se arrumar para um novo dia de trabalho na oficina, quando ouviu o celular gritar uma música da Era Emo de 2005,  que mantinha como seu toque. Quem ligaria àquela hora? Sabia exatamente quem, tinha apenas medo de estar certo.

Mas estava. E a criatura que acordara antes das oito da manhã para infernizar sua vida já havia tentado ligar mais de cinco vezes. Ele respirou fundo e atendeu.

—Sh-

—Keith? Alô? Meu Deus, Keith, onde você estava ontem à noite? Eu te mandei dezessete mensagens. Dezessete. Sua cabeça está no lugar?

Respirou controlado. Shiro preocupava-se mais do que deveria.

—Alô, eu estava cuidando de uma encomenda da oficina, sim, ela está, e você checou o sinal da internet antes de me mandar aquelas mensagens?

Silêncio do outro lado da linha. Keith apostou que Shiro esquecera-se de ativar a internet móvel do celular. Ou não sabia como fazer isso. De novo.

—...Enfim. Por que não me ligou quando chegou? Eu fiquei preocupado.

—Você está sempre preocupado, Shiro -andou pelo quarto, a mão na cintura. Parou diante de um pôster gasto de sua banda favorita na época da escola- Nada aconteceu demais, sério. Mas era muito tarde da noite quando eu cheguei em casa, então resolvi não te incomodar.

—Tarde o quanto?

—...

—O quanto?

—...Duas e meia da manhã?

Afastou o celular do ouvido para abafar o sermão. Virou os olhos para o céu como se pedisse o perdão divino – por quanto tempo mais Shirogane iria agir como se fosse seu responsável? Tudo bem, ele meio que era. Mas Keith já morava sozinho, pelo amor de Deus! Sabia se cuidar. Certo?

—Shiro. Shiro. Tudo bem. Escuta. Eu sei. Sim, mas—ah. Sim? É. Não, claro. Shiro. Deixa eu só—

Isso se estendeu por sólidos minutos. Por fim, Keith usou a desculpa de que iria se atrasar para o trabalho e despediu-se, mandando um desejo de boa sorte para receber os estagiários na próxima semana, e encerrou a chamada enquanto Shiro ainda tecia recomendações no final do discurso de como pegar estrada de madrugada era incrivelmente perigoso.

Keith revirou os olhos. Não que fosse admitir, pelo menos não a ele, mas amava seu quase-irmão mais velho. Com todos os exageros.

Jogou o celular na cama. Vestiu-se, as roupas velhas de sempre, coturnos e uma jaqueta. Puxou os cabelos para trás em um rabo-de-cavalo. Estava pronto para o dia.

Armou-se com suas chaves e capacete e foi buscar a moto na garagem do prédio, checando no espelho do elevador as bolsas escuras sob os olhos.

Seria um longo, longo dia.