Wanted escrita por Ioan K


Capítulo 3
Capítulo 3




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Gotham tinha quantidades iguais de regiões elegantes, por onde magnatas bem vestidos transitavam com prostitutas acompanhantes, e suburbanas, embora dessas fossem poucas as que eram tão charmosas quanto um bairro privativo. Arlequina tinha pouco interesse nesses, de qualquer forma, até mesmo porque a união dos seus moradores gerava esquemas supervigilantes que não ajudavam em nada na vida de alguém como ela. Quando sentiu fome naquela noite, portanto, Arlequina escolheu um bairro mais esquecido para sua exploração.

Algumas casas eram grudadas umas às outras em um padrão nova-iorquino e claustrofóbico que fazia com que Arlequina pensasse nas celas do Asilo de Arkham. O intuito daquela disposição não era muito diferente do das celas, era? No final, quando chegava a noite, alguém era jogado do outro lado de uma porta que era trancada e verificada para ter certeza de que estava bem fechada. Ela mesma passara boa parte do seu tempo como psiquiatra verificando o estado das fechaduras nos corredores de Arkham. Lembrar-se disso era até um pouco nostálgico.

Arlequina não utilizou de muitos critérios para escolher a casa que invadiria naquela noite. Parada em frente a uma construção velha e pichada várias e várias vezes até os textos perderem completamente o sentido, pensava em formas de passar para o lado de dentro da casa. Era natural que os moradores de um bairro tão perigoso se preocupassem em encher suas portas e janelas de trancas, e a casa escolhida tinha uma porção delas. Trancas, no entanto, eram barreiras intransponíveis apenas para aqueles sem força ou recurso suficientes para vencê-los.

Arlequina deu um passo para trás e mirou um chute certeiro na região das dobradiças da porta.

A porta cedeu e os parafusos que mantinham a sua dobradiça de baixo presa se soltaram e emitiram um barulhinho agudo do outro lado. Para acertar a dobradiça de cima, Arlequina precisou tomar distância e erguer mais a perna. A porta caiu de uma só vez, com um baque, quando seu pé retornou ao chão.

— Com licença! – disse para o interior escuro da casa. – Estou entrando!

Cruzou uma sala comum, que ainda tinha uma TV de tubo em frente a um único sofá velho, fedido e remendado uma porção de vezes. Uma janela aberta teria afastado aquele cheiro de mofo, mas, fosse quem fosse o dono da casa, ele não parecia se preocupar com isso. Foi durante esse pensamento que Arlequina considerou a hipótese de não ter ninguém em casa e que por isso a porta estava trancada. Se fosse o caso, não teria com o que se preocupar nos próximos instantes.

Adentrou a cozinha e procurou o interruptor na parede. Encontrou-o, mas nenhuma luz se acendeu quando ela o acionou. Afrouxou os ombros e soprou uma mexa de cabelo para cima. De todas as casas que tinha para invadir, tinha que escolher justamente a que não tinha luz elétrica?

— Fique parado! – ouviu alguém às suas costas dizer.

Arlequina girou a cabeça e procurou a fonte da voz por cima do ombro. Um senhor munido de um taco de baseball, segurado acima da cabeça por mãos trêmulas, com pouca firmeza, fitava-a com um olhar amedrontado. Se o que pretendia com aquela postura era ameaçá-la, estava fazendo tudo errado.

— F-Fique parada! – ele se corrigiu a tempo. Os dedos dançaram no punho do taco e, por um momento, Arlequina viu alívio no semblante do velho. Estaria ele contente por ter que lidar com uma mulher ao invés de um homem?

Arlequina girou nos calcanhares, ficando de frente para o dono da casa. Isso não o intimidou. Ao contrário, o senhor quase sorriu, como se animado com o que via. Estaria ele desejando o seu corpo ou apenas manifestando um pouco mais de alívio?

— Eu prometo que não conto nada à polícia se você sair dessa casa sem roubar nada – ele voltou a falar. – Pode até voltar para o seu ponto em segurança e voltar a foder com quantos homens você quiser!

— Acha que sou uma prostituta?

— Posso ver que é!

— Acho que preciso de um visual novo. Talvez uma saia um pouco mais long...

O senhor avançou em Arlequina e o taco de baseball cortou a escuridão em direção à sua cabeça. Um golpe como aquele poderia desacordar alguém, mesmo sendo desajeitado, e foi por saber disso que Arlequina reagiu: apanhou o golpe com as duas mãos e girou o taco no ar. Isso jogou o corpo do senhor no chão e fez o seu aperto afrouxar na arma. Com uma mão, Arlequina puxou o taco de baseball para si e o senhor o soltou de vez. Segurou-o com uma mão e desferiu um único golpe na cabeça do homem que a importunava.

— Nunca ataque uma mulher com fome! – disse para ninguém em especial. Sabia que o senhor não podia mais ouvi-la àquela altura. – Humpf!

Apoiou o taco nas costas e retomou o que tinha para fazer.

Abriu a geladeira do senhor. No escuro, conseguiu distinguir pouca coisa, mas certos formatos são inesquecíveis mesmo no escuro. Apanhou a caixa de leite e cheirou o seu conteúdo. Não estava fresco, mas pelo menos não estava estragado. Se tinha leite, o senhor provavelmente tinha caixas de cereal também e uma boa tigela. Encontrou ambos, apanhou uma colher em uma gaveta e se dirigiu à mesa. O dono da casa devia ser um homem bem solitário, pois não havia mais do que duas cadeiras ali, e Arlequina usou uma para se sentar e a outra para apoiar as pernas.

Largou o taco de baseball ao seu lado e começou as colheradas. Não fazia uma refeição decente há um bom tempo, o que já a fizera pensar em sugerir a Amanda Waller que suas condições de trabalho incluíssem algum tipo de benefício alimentício, como tickets para restaurantes. Sempre que a ideia lhe ocorria, contudo, o olhar ameaçador da chefona da Força Tarefa X a intimidava, e, em tempos como aqueles, a única outra pessoa, além do Pudinzinho, que lhe amedrontava era ela. Claro que a microbomba injetada em sua cabeça, procedimento que ocorrera sob sua ordem, tinha parte nisso, mas até a postura da mulher, tão cheia de seguranças e certezas, tinha uma aura intimidadora por si só. Era o tipo de mulher que, se não fosse sua comandante e não estivesse com a sua vida em suas mãos, Arlequina teria muito interesse em fazer sofrer com uma boa quantidade de violência. Mas, por enquanto, era só um exemplo a ser seguido – especialmente quando seus procedimentos maldosos eram analisados.

Arlequina afastou a tigela para o lado, apanhou o taco de baseball e se pôs de pé em movimentos rápidos. Ouviu o encosto da cadeira em que estivera sentada bater no chão e verificou o seu redor. Diferentemente do senhor, segurava o bastão de baseball na altura do tronco, como um rebatedor, pois um ataque a partir daquela posição seria muito mais rápido, forte e efetivo do que um golpe desferido por cima.

Ouvira alguém se aproximar, mas, mais do que isso, sentira a aproximação. Claro que, se a cozinha tinha duas cadeiras à mesa de jantar, ela devia ter imaginado que havia mais algum morador na casa. Além do mais, se o senhor e também a sua esposa foram acordados no instante em que ela arrombara a porta da frente, era natural que a esposa agora tivesse curiosidade em saber do paradeiro do marido, que não retornara tão cedo quanto ela esperava.

Com os olhos ainda pouco acostumados com a escuridão e os ouvidos apenas tendo o silêncio com o que se preocupar, foi o nariz de Arlequina quem fez o trabalho de percepção naquele momento. Começou sentindo um cheiro velho e amargo, que a fez pensar no chá horroroso que era servido no Asilo Arkham para os seus funcionários. Em pouco tempo, esse odor foi substituído por um aroma mais agradável e hipnotizante, como um perfume de rosas.

Arlequina já sabia quem era sua companhia no momento em que a escuridão começou a ser preenchida por uma aura rósea, que se arrastava pelo chão e ganhava a atmosfera, desenrolando-se como um tapete. Mesmo assim, aguardou que Hera Venenosa se pusesse dentro da cozinha antes de se manifestar.

— É isso o que eu chamo de entrada dramática! – disse Arlequina e largou o taco de baseball no chão.

Hera Venenosa nunca era vista de outra forma senão vestida em suas plantas, desde que fora contaminada pelo veneno que lhe concedera dons de controle sobre elas. Naquela noite, parecia vestida em um longo vestido verde feito do entrelaçamento de centenas de caules e suas respectivas folhas. Cobrira o corpo até a altura do busto, mas deixara um decote volumoso à vista, e também os seus braços. Mesmo na escuridão, seus cabelos, ruivos como o mais puro cobre, pareciam reluzir.

Destinou um olhar sério e provocante à Arlequina quando disse:

— Iria me acertar com um taco de baseball, Arlequina? É assim que recebe sua amiga de longa data?

Contaminada pelo calor que vinha da voz de Hera, Arlequina bateu os pés no chão, empolgada, e correu para abraçá-la.

— Há quanto tempo!

— Nos vimos pela última vez pouco antes de o Batman te jogar naquela pocilga. Você precisou de um favor – disse Hera e se livrou do abraço. Não era tão apegada a contatos físicos quanto Arlequina, pelo menos não quando eles eram como aquele.

— Acho que ainda posso me lembrar, mas faz tanto tempo...

— Para mim, foi muito mais do que você pode imaginar.

Arlequina contemplou Hera Venenosa e piscou algumas vezes, confusa. Gostava de jogos mentais – ou pelo menos aprendera a gostar deles, quando se apaixonara por Coringa à primeira vista –, mas não entendera de imediato o que Hera quisera dizer com aquele. Talvez estivesse cansada demais para pensar com razão.

— Sei pelo que você está passando, Arlequina – a mulher falou.

— Sabe?

Hera Venenosa assentiu com a cabeça, em silêncio.

— Imaginei que a minha barriga estivesse roncando alto demais, mesmo. Às vezes, até esqueço de que preciso comer...!

— Não é disso que estou falando – Hera interrompeu e voltou a se aproximar de Arlequina. Levou a mão à sua nuca e a tocou com o indicador e o dedo médio. – Estou falando disso aqui.

— D-Disso aqui...? – Arlequina questionou, encontrando os dedos de Hera com a própria mão. A mão da amiga estava fria. – Está falando da...?

— Eu sei por que você está fora da cadeia antes do previsto. Com a pena que tinha, você morreria na cadeia e seu corpo apodreceria dentro de uma cela antes que você pudesse ser retirada. Mas você está aqui fora, saqueando casas como fazia antes de o Batman te encontrar e antes de o Coring...

— Eu não posso falar sobre isso! – disse Arlequina e se afastou com cautela. – Ela disse que faria horrores se...

— Ela disse que explodiria a sua cabeça se você falasse algo.

— Eu não posso morrer! Não antes de...

— Mas se ela não souber, nada vai acontecer. – Arlequina a mirava com espanto, em silêncio, o que obrigou Hera a incitar: – Não é?

— Às vezes, parece que ela tem escutas em qualquer lugar.

— Não em um fim de mundo sujo e fedido como esse.

— Ela descobriria, e então eu não poderia...

A atmosfera ficou ainda mais rósea do que antes, tingindo todo o preto e branco de que era feita a escuridão da cozinha com aquele filtro de cor novo e amoroso. Fez com que Arlequina quisesse sorrir. O aroma que inundava suas narinas era doce como se ela sorvesse algodão doce com o nariz, e podia jurar que era também tão denso quanto um. Fez com que se sentisse positiva, como se nada no mundo pudesse dar errado, e não daria mesmo, não enquanto houvesse aquele aroma e Hera estivesse por ali.

— O que a Força Tarefa X anda tramando, Arlequina? – disse-lhe a voz da amiga.

— O Batman fez merda. Banhou a Escola Primária Hope’s Garden com sangue inocente e partiu sem prestar socorro. – Começou a gargalhar a essa altura da conversa: – O Batman, você acredita?! E agora Amanda Waller não tem mais em quem confiar.

— Ela confia em você e em seus amigos.

— Não, ela não confia, por isso temos microbombas na cabeça. – Voltou um olhar atordoado para Hera e foi acometida por uma sensação de desejo quase incontrolável quando encontrou seu olhar. Sua pele parecia ainda mais sedosa sob aquela atmosfera, e Arlequina queria poder tocá-la. – Eu poderia ficar aqui para sempre...

— Vocês estão indo atrás do Batman.

— É... – Arlequina confirmou. – Mas eu não faço ideia de onde ele está agora, e tudo o que eu queria era terminar aquela tigela de cereal e então ter você para m...

— Entendi.

Num súbito, a aura rósea se desfez e tudo voltou ao tom preto e branco de um filme antigo dentro da cozinha. Arlequina piscou algumas vezes e esfregou os olhos. Contemplou Hera como se fosse a primeira vez que a via.

— O que está fazendo aqui?

— Eu só queria ver como você estava. – E fez uma pausa demorada, que lhe permitiu checar Arlequina dos pés à cabeça, antes de dizer: – E fico feliz de ter conseguido.

— Ei, para onde você vai? – disse Arlequina quando Hera começou a fazer o caminho de volta, para fora da casa. – Faz tanto tempo que não te vejo! Por que não fica mais um pouco?

— Porque Amanda Waller e todo o seu batalhão de suicidas vão te encontrar a qualquer momento, como sempre fazem, e eu não quero estar por perto quando isso acontecer. Já tenho problemas demais sem ter uma microbomba enfiada no cérebro. Além do mais, algum tempo de cadeia não é do que preciso no momento. Tenho trabalhos importantes para concluir.

— Por que você se importa tanto em saber o que a Força Tarefa X está fazendo?

Hera hesitou.

— Curiosidade – mentiu.

E Arlequina acreditou.

— A gente vai voltar a se ver? – ela perguntou enquanto Hera fazia seu caminho para fora da casa.

— Mais vezes do que você pode imaginar, minha cara Arlequina.

Foi em uma nuvem de fumaça rosada que Hera sumiu diante do olhar admirado de Arlequina.

Agora sozinha, a criminosa voltou à cozinha e tomou o cuidado de evitar o corpo do senhor em seu trajeto, para não tropeçar. Retomou seu assento e jogou o taco de baseball sobre as pernas.

— Eu gostei de usar isso aqui! – disse para o morto, referindo-se tanto ao cereal quanto ao bastão.

E comeu em silêncio, com tranquilidade. Hera podia não saber tudo o que queria sobre a Força Tarefa X, mas sobre uma coisa ela estava certa: sua carona chegaria em breve, e ela queria estar pronta e satisfeita quando isso acontecesse.


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