As Brumas da Arte escrita por Felipe Martins


Capítulo 1
As masmorras (da libido?)


Notas iniciais do capítulo

A história transcorrerá antes de o Julián entrar no colégio Sán Gabriel e, bem... você verá no que isso influencia.

Boa leitura! ☺



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Nada ofusca melhor a sanidade de alguém do que uma pintura fascinante. Sob os raios desgovernados de um tímido sol poente, Fernando Ramos sentia um ressoar em cochichos, sussurros e risadas ao longe anunciando, no espaço que preenchia sua distância de Miquel Moliner com um vazio infinito, o final do período letivo daquele dia. San Gabriel era o exemplo perfeito de procedimentos milenares realizados à risca e com o mínimo de alterações, perpetuando inclusive aquele mesmo anúncio de sempre: nunca correr nos corredores, evitar tumultos na saída e não aguardar sozinho a chegada dos pais no hall de entrada, acessando-o apenas acompanhado de um dos senhores de batina. O pintor em pé à sua frente terminava de retocar aquela nova obra-prima que, num geral, não possuía nada de novo — todos os quadros tinham a mesma pessoa entre brumas —, mas que significava a invenção do século para Fernando: ao contrário de todos, ele sabia que a essência dos quadros daquele prodígio iam muito além de formas e retratos diferentes, portanto sabia não cobrar nada do processo criativo alheio, apreciando-o serenamente e de longe.

— O que você acha, Fernando?

Levantou-se lentamente da poltrona onde há horas esperava aquela frase. Com ela, sentia que uma concessão divina fora feita: era tempo de se aproximar do artista e criticar a obra. Analisou-a de ângulos diferentes; com os dedos, inventou novas projeções; por fim, abriu um sorriso singelo com a sensação de dever cumprido.

— Claro e transparente, Miquel. Muito bem — completou, fechando os olhos como de costume. Sentia sua expressão serena, revelando a paz de espírito pelo quadro (ou seria pelo ambiente?). Nas avenidas de lombadas expostas, as sinalizações seduziam e gracejavam alguns dos que as vissem para um mundo novo, repleto de textos, pinturas manuais e magia. Ministrada pela senhorita-cujo-nome-os-dois-nunca-se-lembravam-qual-era, o motivo de surgir o apelido “Senhorita”, todos os livros estavam milimetricamente organizados pelas letras iniciais do título, depois por autor, via edição e alguns inclusive pela demanda do próprio livro — o importante é que cada universo tinha seu lugar reservado e retirá-lo dali seria profanar o nome daquele santuário em forma de coleção restrita aos estudantes do colégio.

As costas dos dois eram iluminadas pela luz crepuscular que se infiltrava na penumbra da biblioteca. O cômodo, à primeira vista, parecia completamente abandonado. O único detalhe que desmentia essa hipótese era, com um pouco de atenção ou mero costume, observar em olhares ou tatos a brisa fresca vinda da porta que a Senhorita deixava entreaberta e cujo acesso foi feito especialmente para funcionários do colégio: um mistério para Moliner, mas o melhor local para os ramos sem fim de acesso às saídas do colégio. As mesas, perfeitamente lustradas em reflexos temporários dos leitores e estudiosos que as ocupavam, contavam histórias a fio nos arranhados, gravuras e confissões expostas a qualquer um e, ao mesmo tempo, àquela pessoa em especial. Círculos enegrecidos anunciavam as lágrimas agonizantes — no amor ou terror, o final é o mesmo.

A afeição de Miquel pelo quadro não passou despercebida por Ramos. Aquele era um dos poucos, senão o único, momentos em que o artista rebelava-se contra seu bom humor, carisma e até o espírito desafiador para devorar lentamente a verdade contida no sorriso enigmático, na silhueta impecável ou no espírito entre névoas que carregava consigo a epítome do sentido da vida: a mudança constante de absolutamente tudo. Assim como como fizera com todos os funcionários dali, Fernando definia o companheiro com a expressão “quem o viu, quem o vê” — a qual, para Ramos, ainda não definia toda a volatilidade daquele que era garoto nos documentos e homem feito nos pensamentos. Observava-o altivo, orgulhoso, apoiando-se em dedos, braços e lembranças que lhe repicavam a mente, mas não os sonhos, enquanto as badaladas da catedral socavam um minuto com as horas do dia.

— Miquel, acho que é hora de ir. As turmas extracurriculares já foram embora.

— Qual é o problema?

— Meu pai está me esperando na cozinha e, a essa hora, é provável que já esteja tudo limpo. Sem falar que você se lembra bem do que ocorreu da última vez que seu pai teve de esperá-lo por muito tempo lá fora, certo?

— Hm — retrucou com olhos revirados. A desvantagem em se ter um pai cujo acesso a armas era constante e ininterrupto era que, para qualquer acesso de raiva, ele achava um tiro bem dado no meio da testa o espaço necessário para um homem cumprir seu dever, o que por pouco não os expulsou daquela instituição. — Você precisa ficar menos tenso, Fernando. Meu pai é impulsivo, mas não é burro: depois daquele problema com o Reverendo Iago, ele anda bastante calmo e inclusive arrisca às vezes uma conversa qualquer sobre o novo rifle dele com o pai do Diego.

Ouvir aquele nome dava-lhe nojo, para dizer o mínimo. O artista viu a expressão atormentada do rapaz à sua frente, certificou-se de que a biblioteca estivesse cheia deles dois e se aproximou de uma vez, inclinando-se para o tira-fôlego habitual. Separaram-se sob a guarda rósea do crepúsculo e o inflamar de sentimentos virgens à flor da pele, incendiando desde seus lábios até o cinza-chumbo acima de si.

— Carpe diem. A gente se vê amanhã? — Miquel guardou-se em olhadelas rápidas àquele que o encarava de alma aberta e um tímido fôlego de vida. — Certo, vou considerar isso como um “sim”.





A luz na sua mão tamborilava a mesa de madeira num ritmo suave e macabro. Com o tempo, acostumou-se à sensação de ter seus pensamentos envernizados, eternizando-os em pontos, riscos e profundidades. Em linhas, traçava os rasos caminhos de sua relação com Miquel Moliner; com muitas delas, o movimento era perceptível: volúveis, aquilo que um dia não tinha forma ou ao menos cor, naquele momento, sincronizava-se docemente com a valsa flamejante que atiçava o local. Ramos havia aproveitado que seu pai estava ocupado em alguma reunião sobre reformular o cardápio do colégio para o novo mês (o que demoraria meia hora no máximo, não fosse as divergências entre glúten, calorias e o conjunto nutricional de cada prato sugerido) e escapara ao “Palácio da Senhorita”, procurando pelo seu mural de costume.

Entre as brumas de uma mente confusa, a luz artística é o fim do túnel. Sob suspiros apaixonados e tendo o Salvador Dalí em seus pensamentos, concentrou-se no pouco das lembranças que o arrebataram por todo o dia e deixou-se levar pelos desejos da alma. Sôfrego e libertador, o canivete valsou sobre o tom escurecido da madeira, o que rendeu à mesa arranhões, serragem e suspiros apaixonados, refletindo-lhe a honra de dever e missão cumpridos. Sorriu por pouco tempo, pois logo mais veio o incômodo, o fôlego entrecortado, a falta de bons modos do coração: “tudo o que é contraditório cria vida” era mais uma das eternas sensações que, daquela mesa, dali, sabia que estariam expostas a todo aquele que entendesse a linguagem que lhe ardia sem se ver.





A volta para casa foi mais comum do que Moliner esperava. As janelas do Mercedes que seu pai havia comprado há meses não escondiam o caos e a euforia do Primo de Rivera exaltando o aclamado “movimento de homens.” Naquele momento, a situação de Barcelona era um terror estampado em moral e bons costumes para os afetados diretamente pelas mudanças de governo, exaltando assassinos e punindo opositores. O céu cheirava a um ácido silêncio que anunciava a tranquilidade sem explicação. Não havia do que reclamar sem parecer inimigo do governo, o que, àquela altura, era a desculpa perfeita para dizimar a ousadia dos que compunham a oposição.

Chegando em casa, Miquel tentou se recolher para seu quarto, mas foi interrompido por seu pai, que o aguardava próximo ao batente da porta de entrada.

— Você. Aqui embaixo. Agora.

Não era a primeira vez que seu pai agia daquele jeito. Virou-se lentamente para encarar brevemente seu pai ou, por mais tempo, a reverência respeitosa que um dos empregados fazia ao passar por ele. Viu-o ordenar algo inaudível e encará-lo como vítima de suas presas.

— Quem é aquele seu amigo?

Miquel sorriu. A mesma conversa de sempre.

— Um amigo, apenas. Por quê?

— Você sabe bem o porquê disso.

Toda vez que seu pai se incomodava com algo, era comum que a desconfiança se anunciasse no cinismo amargo e sobrancelhas arqueadas. Como um homem de negócios, no entanto, disfarçava sua cólera em expressões amaciadas e dotes teatrais natos do século XX. A geração Moliner mais recente, no entanto, não se importava em parecer de vidro: aquele sorriso de vitória, estampado no seu rosto à Rivera, deixava claro suas intenções.

— Conversei com Diego hoje.

“Agora, além de vendedor, ainda virou fofoqueiro?”, o artista pensou consigo.

— E…

— Eles estão desconfiando, Miquel.

— De quê? Você está tenso, relaxe um pouco, meu pai.

Seu pai odiava o sarcasmo tóxico do filho.

— E onde você acha que isso vai te levar? Onde você se vê quando crescer?

— Eu não vou crescer.

Depois de um breve silêncio eterno, anunciou:

— A sua sorte é que você é meu filho, senão já teria pintado esse chão com as suas vísceras.

“Uma pena, mesmo.”





O santuário do casal sem dúvida era a seção de livros didáticos. Além dos dois, a única visita regular àquelas prateleiras era a Senhorita para, como sempre, manter o alinhamento e ordem dos volumes impecáveis, o que, pela falta de uso, ocupava-lhe no máximo vinte minutos. Aquele espaço, no colégio, fora apelidado como “as masmorras do proibido” e, via de regra, todos estavam eticamente proibidos de entrar ali — principalmente os alunos, até porque quem seria louco de ler sobre as influências do grego arcaico no espanhol moderno?

Apesar disso, Miquel e Fernando oficializaram-se naqueles metros quadrados e era para ali que recorriam toda vez que um pouco de calma e muita privacidade eram necessários. Entre a Guerra dos Trinta Anos e as Guerra da Sucessão Espanhola, tinham certeza de que a batalha que eles travavam contra a instituição eclesiástica significava, é claro, nada: com aquelas preocupações os rondando, como se alarmar com os sermões de Inferno dos professores — que, sutilmente, condenavam o casal ao fogo eterno e ardente?

Naquele chão, cobertos pela vergonha societária e sob a proteção divina da Senhorita, descobriam-se amantes eternos entre si: sob o jogo de luz dos paineis de vidro em frente a eles, devoravam as nuances um do outro, possuindo-se em pontos que desejavam ser infinitos e curvas que os levavam à loucura. Uniam-se em beijos, toques e contatos mais íntimos, gravando, sob as brumas da arte, aquele que (para sempre?) seria o nirvana do infinito, construído entre eles por aquilo que mais lhes importava: o casal.

Sabiam que, por certo, as facilidades da vida foram deixadas de lado a partir do “eu amo você”, mas os pesos das prioridades clareavam suas mentes: acima das obrigações de infância, a arte da vida estava a favor deles... e era isso que importava.


Fim


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Notas finais do capítulo

Primeiramente, leila, creio que lhe devo um pedido de desculpas. xD Sei que você estava interessada em uma história que estivesse focada no Cemitério dos Livros Esquecidos, BUT achei que seria mais interessante trabalhar um ponto que não fosse tanto o foco do Zafón e, assim, sair um pouco do óbvio. xD Espero que tenha gostado! *O*

Deixem seus comentários, leitores! Eu não mordo não, relaxem, HAHAHA XD