Onde as Crianças Não Crescem escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 1
Capítulo único




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A enfermeira esquecera de fechar a janela do quarto de hospital, e o vento frio noturno entrava, fazendo as cortinas tremularem. A lua cheia proporcionava uma iluminação suave. Wendy não conseguia dormir por causa dos equipamentos incômodos ligados a seu corpo, e ficava encarando o vazio, imaginando quando deixaria aquele lugar.

De repente, um movimento fez com que ela se encolhesse no leito. Parecia uma sombra humana, rastejando depressa pelo chão. Logo em seguida, uma figura pulou através da janela sem emitir qualquer som além do baque de seus pés tocando o assoalho, e passou a perseguir a sombra. Wendy abafou um grito. Devia estar sonhando. Ela olhou para seus irmãos, John e Michael, que continuavam dormindo profundamente ao seu lado.

O invasor notou sua presença e parou diante dela. Na meia-luz, a menina pôde ver seu largo sorriso, antes que ele baixasse o chapéu em uma reverência.

— Boa noite. Meu nome é Peter Pan, e o seu?

Era apenas um sonho. Que mal faria responder? Ultimamente, os sonhos estavam lhe parecendo melhores que a realidade; uma forma de escape.

— Wendy Darling.

— Muito prazer em conhecê-la, Wendy. Está vendo aquela sombra ali?

Ele apontou para a parede atrás dela, na qual sua sombra se movia, inquieta. Wendy assentiu.

— Ela cansou de ficar presa a mim e resolveu fugir. Consegue pegá-la?

Wendy tentou estender o braço para tocar a sombra, mas a agulha de soro em seu pulso impedia, então ela a arrancou. Finalmente, sua mão conseguiu alcançar a da sombra e fechar-se em torno dela. Como se fosse um tecido sólido, a silhueta foi puxada da parede e voltou, resignada, para seu dono, prendendo-se magicamente a seus pés. Os olhos de Wendy brilhavam, encantados.

— Obrigado! - O sorriso de Peter aumentou ainda mais. Ele olhou ao redor. - Este lugar é bem sem graça, não é?

— É um inferno. Eu só queria sair daqui.

— E o que te impede?

Ele não percebia? Wendy indicou melancolicamente a máquina que apitava no ritmo de seus batimentos cardíacos.

— Eu e meus irmãos estamos nos recuperando de um acidente de carro e só podemos ir embora quando recebermos alta.

Ele soltou uma risada alegre.

— Que besteira! Você parece ótima. Quer ir comigo para a Terra do Nunca?

Wendy franziu o cenho.

— Terra do quê?

— Do Nunca! Um lugar onde as crianças nunca crescem. Você vai adorar; tem sereias, piratas, faunos, centauros… Muita liberdade e diversão.

Wendy não costumava ter sonhos tão criativos assim, mas aquilo parecia maravilhoso. Teria boas lembranças quando acordasse no dia seguinte…

— E onde fica?

— É só voar pela segunda estrela à direita e então direto, até o amanhecer.

— Mas como eu poderia voar?

— Com a ajuda da Sininho e de seu pó mágico, é claro.

Assim que ele terminou a frase, uma explosão de faíscas douradas surgiu em meio ao breu. Wendy demorou um pouco para perceber que aquela era uma pequena criatura alada que parecia feita de luz, batendo suas asas rapidamente como um beija-flor, das quais gotejava um pó brilhante. Ela demonstrava pouca vontade em ajudar a menina, então Peter a agarrou e sacudiu, extraindo o pó e despejando sobre os cabelos de Wendy.

A sensação era esquisita. Um formigamento a dominou da cabeça aos pés e sua visão foi ofuscada pela luz. Em pouco segundos, tudo passou e Wendy sentiu que estava levitando até o teto. Ela ficou maravilhada por conseguir desafiar a gravidade, e não percebia que, na escuridão abaixo, seu corpo continuava deitado inerte. Peter também conseguia voar sem esforço e segurou sua mão, guiando-a rapidamente na direção da janela.

— Espere, está indo rápido demais! - gritou Wendy. - E meus irmãos?

Por um momento, o sorriso permanente de Peter murchou em uma expressão sombria.

— Eles não podem vir.

— Por que não?

Se Wendy soubesse que teria de ir sozinha, pensaria duas vezes. Mas agora era tarde.

— Porque… o pó é capaz de transportar apenas uma pessoa de cada vez. Voltarei mais tarde para buscá-los.

— Ah, então deixe eu me despedir… Tchau, John! Tchau, Michael! Amo vocês.

Eles nem se mexeram, embora ela tenha falado em alto e bom som. Talvez os medicamentos tivessem induzido um sono muito pesado.

Wendy não teve tempo de ficar triste, pois Peter puxou sua mão com força e logo eles estavam flutuando pelas ruas silenciosas de Londres, cada vez mais alto, até alcançarem as estrelas. A menina sentiu uma leve tontura ao olhar para baixo. Toda a paisagem estava se tornando um borrão. À medida que a velocidade aumentava, havia apenas um frenesi assustador de cores e uma cacofonia de vozes distorcidas e sons incompreensíveis. Aos poucos, foi diminuindo e Wendy voltou a ser capaz de distinguir as coisas ao seu redor. Estavam aterrissando em uma espécie de ilha suspensa entre as nuvens.

— Bem-vinda à Terra do Nunca! - exclamou Peter, finalmente soltando a mão dela.

Wendy deu voltas no céu, rindo. Sentia-se tão leve… porém, vazia, como se uma grande parte de si houvesse sido tomada para que ela pudesse flutuar.

Eles seguiram voando através de um mar de águas azul-escuras e serenas, no qual um único navio de aspecto ameaçador estava à deriva. A bandeira negra com uma caveira pintada balançava ao vento.

— Aquele é o navio do Capitão Gancho. Ele e seus marujos são os únicos adultos daqui. Mas não se preocupe, ele não consegue fazer nada de muito ruim; tem medo de mim e de crocodilos. No máximo atrapalha a nossa vida.

— A nossa vida?

— Ah, sim! Você acha que eu moro sozinho em uma ilha tão grande, só eu e minha sombra?

Wendy ainda não havia pensado no assunto. Isso queria dizer que outras crianças como ela eram levadas do mundo real para aquele lugar que parecia imaginário? E ficavam por lá? Será que não tinham família…?

— Vou te levar para conhecer meus companheiros, os Meninos Perdidos. – continuou ele, mais uma vez puxando-a pela mão até a costa.

Entraram por uma vasta floresta até chegarem em uma clareira onde havia sete árvores ocas e esburacadas, cujos troncos pareciam grandes o suficiente para pessoas caberem dentro. Peter enfiou dois dedos na boca e soltou um assobio estridente. Em resposta, um grupo de meninos pulou para fora das árvores e enfileiraram-se. Eram todos magricelas e pálidos, vestindo roupas remendadas e sujas, mas traziam sorrisos sinceros apesar dos olhos fundos.

— Aqui é onde moramos, a Árvore do Nunca, um refúgio protegido de todos os perigos da mata. - Ele estendeu o braço para Wendy, apresentando-a com entusiasmo. - Meninos, conheçam a primeira Menina Perdida!

Estou perdida?, pensou ela, mas sorriu educadamente para cada menino que caminhava em sua direção e fazia uma reverência, dizendo seu nome – nomes demais para que ela conseguisse decorar.

Então eles passaram o resto do dia brincando. Montaram nos mansos centauros e apostaram corridas que Wendy sempre vencia, ouviram a doce melodia das flautas dos faunos, e a menina pediu para nadar com as sereias, mas descobriu que aquilo seria perigoso – a beleza das mulheres-peixe era, na verdade, uma fachada atraente, e elas estavam dispostas a afogar qualquer tolo que se aproximasse demais de seu lago. Eram ainda mais mortíferas do que os piratas. Portanto, Wendy limitou-se a observá-las de uma distância segura enquanto cantarolavam e penteavam seus longos cabelos com pentes feitos de espinhas de peixe.

Aquela foi uma tarde estranhamente longa, até mesmo para o verão – o sol começou a se pôr somente quando as crianças estavam cansadas demais para continuar se divertindo, e seus estômagos roncavam pelo jantar. Tudo era mágico naquele lugar, então Wendy imaginava que a comida fosse aparecer sozinha, já servida e quente. Mas não – ela foi obrigada a cozinhar, porque nenhum dos meninos sabia preparar refeições direito. Antes, sobreviviam apenas de frutas, e era por isso que estavam tão desnutridos. Ela apiedou-se deles e realizou todas as tarefas que lhe pediam sem reclamar, até mesmo costurou o ursinho rasgado de um dos meninos mais novos. Ele tinha apenas seis anos e parecia um pouco com seu irmãozinho Michael. A lembrança lhe provocou um nó na garganta, levando toda a alegria que ela sentira antes.

Depois de todos terem ido dormir – ou era o que parecia – ela sentou-se perto da fogueira, observando o brilho suave dos vaga-lumes que circulavam por ali com os olhos embaçados pelas lágrimas. Peter surgiu da escuridão atrás dela, assustando-a, e sentou-se ao seu lado.

— Que cara é essa, Wendy? Está triste? - perguntou ele em um tom que até então ela nunca o ouvira usar, quase autoritário.

— Não… - murmurou ela, sentindo que esta era a melhor resposta a dar. - Só estou cansada, mas não consigo dormir. Fico pensando na minha família, nos meus irmãos. Como será que eles estão? Você não prometeu que iria buscá-los?

— Vou buscá-los sim, um dia. Mas não se preocupe. Eles podem fingir estar um pouco tristes, mas não sentirão sua falta. Não gostavam tanto de você. Eu só trago para cá as crianças que não eram felizes com suas antigas famílias. Que eram rejeitadas, mesmo não sabendo.

Diante daquilo, Wendy não conseguiu conter a irritação.

— Eu não era rejeitada! Minha família é muito unida e todos se amam! Nunca me senti sozinha, nunca fui obrigada a trabalhar…

As feições de Peter se contorceram de raiva e ele a empurrou, derrubando-a no chão de terra batida. Ela se ergueu com alguma dificuldade e limpou a sujeira dos olhos, mas não o encarou. Seus pais sempre lhe disseram para não confiar em desconhecidos que pareciam bondosos demais…

— Mentira! Isso não é nada além de uma ilusão que você criou! Seus pais te desprezavam desde o seu nascimento, preferiam seus irmãos a você. E você será feliz aqui assim que se acostumar. Agora vá dormir, Wendy, já passou da hora.

Ele segurou seu pulso – bruscamente, desta vez – e a arrastou até a Árvore do Nunca, enfiando-a dentro de um quarto pequeno e escuro. Wendy cambaleou até a cama de colchão feito de folhas secas, deitou em posição fetal e passou a soluçar alto, sem se importar com a possibilidade de Peter ouvir. Ela fechou os olhos com força, esperando adormecer e acordar de volta ao hospital.

Neste momento, a fada Sininho saiu de dentro de um pote no qual estava se escondendo e foi até Wendy, aproximando-se do ouvido dela para que ela pudesse ouvir sua voz, que, dando jus a seu nome, soava como um delicado tilintar.

Os meninos perdidos… Eles não estão perdidos, Wendy. Estão mortos.

Wendy virou a cabeça e viu o desespero nos minúsculos olhos de Sininho. Ela estava falando a verdade.

— Então… Eu estou morta também?

Não! Ainda não. Seu amor pela sua família e sua vontade de voltar para casa a mantêm viva. Mas, se você se permitir encantar pela magia da Terra do Nunca, jamais deixará este lugar.

Wendy reuniu suas forças e sentou na cama.

— Tem que haver uma maneira de ir embora.

Sininho rodopiou ao redor dela, espalhando seu pó brilhoso.

É simples: da mesma forma como você veio. Voando! Eu te ajudo.

— E por que eu iria confiar em você? - questionou a menina.

Porque eu também sou uma prisioneira. Peter me sequestrou do lar das fadas há muito tempo e vem me forçando a ajudá-lo a ceifar as almas das crianças. Eu não queria te levar, mas ele me obrigou. Agora é meu dever te libertar… não importa o que ele vá fazer comigo se descobrir.

Com isso, a fada se enfiou no meio dos volumosos cachos cor de mogno de Wendy, e elas saíram da Árvore sem emitir qualquer ruído, indo na direção da praia. Sininho cobriu a menina de pó e logo ela estava levitando novamente.

Quando Wendy já estava rumando na direção da segunda estrela à direita, ela olhou para baixo e viu alguém surgir das trevas, cerrando o punho ao redor de Sininho e atirando-a no chão. Era Peter Pan… Mas não aquele que ela conhecia. Seu rosto havia perdido toda a cor e seus olhos eram completamente negros, como se ele fosse feito de escuridão. Ele esmagou a fada com o pé, reduzindo-a a uma mancha dourada. Então, ele encarou Wendy e começou a flutuar na direção dela, gritando com uma voz aterrorizante:

— Ninguém nunca deixa a Terra do Nunca! Eu voltarei para buscá-la, Wendy. Eu juro!

Felizmente, ela já havia se afastado o suficiente para que ele não conseguisse alcançá-la. Logo ela estava de volta àquele turbilhão desnorteante de sons e cores que se misturavam até se fundir em branco… O branco do teto do quarto de hospital.

Wendy sentia uma pressão em sua cabeça e uma dor familiar pelo corpo inteiro. Um tubo estava preso em sua traqueia para ajudá-la a respirar, mas isso a deixou feliz pela primeira vez, porque significava que ela ainda estava respirando.

— Mamãe… Mamãe, a Wendy está acordando! - berrou, ao lado dela, a voz infantil de Michael. Ela se esforçou para olhar na direção dele. Ele tinha um hematoma arroxeado na região do olho e um gesso em seu braço, mas fora isso, parecia bem. John também estava ali, sorrindo emocionado, com um corte na bochecha e a perna engessada. Definitivamente, os ferimentos de Wendy haviam sido os mais graves.

Sua mãe segurou sua mão, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Foi um milagre. Um verdadeiro milagre. Querida, você teve uma hemorragia cerebral… Entrou em coma profundo e os médicos não achavam que fosse acordar. Mas do nada, você simplesmente se recuperou. Em breve voltaremos para casa, todos juntos.

Wendy sorriu por trás da máscara de oxigênio. Porém, algo fez com que ela olhasse direto na direção da janela. Estava fechada, como de costume, e as cortinas abertas revelavam uma manhã ensolarada. Mas havia uma única marca de mão no vidro… Parecia estar do outro lado, e era levemente brilhante.


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Notas finais do capítulo

Esta one-shot foi baseada em uma teoria sinistra que eu li na internet sobre como o Peter seria um espírito que guia as almas das crianças mortas até a Terra do Nunca, que seria uma espécie de Céu. Por isso que ninguém envelhece... Enfim, espero que tenha gostado. Um comentário me deixaria imensamente feliz.