Intolerantes escrita por Liz Setório


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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André, Bento, Emmanuel e Helena estavam reunidos no pátio do colégio conversando, eram colegas de classe há pouco tempo e não se conheciam muito. Eles falavam sobre várias coisas, chegaram a comentar até os nomes que gostariam de dar aos seus futuros filhos.

Com o assunto da vez sendo nome, surgiu a curiosidade de saber o porquê cada um tinha determinado nome. O primeiro a ser indagado foi Emmanuel.

— E por que te colocaram esse nome, Emmanuel? — questionou André.

— Sou de família espírita. Minha mãe escolheu esse nome, por causa do espírito Emmanuel, guia espiritual de Chico Xavier — explicou — E você? Por que se chama André? — questionou ao colega.

Lá vem esse maluco falar sobre o lunático do Chico Xavier, pensou André.

— André era um dos apóstolos de Jesus, por isso meus pais colocaram esse nome em mim. Lá em casa, nós somos evangélicos e seguimos os ensinamentos de Jesus à risca.

Bento havia achado interessante o fato dos amigos terem nomes baseados em suas religiões. Afinal, ele também havia sido batizado com um nome que simbolizava a sua crença e a de sua família.

— Nossa, as famílias de vocês são bem religiosas, viu?! — observou.

— E você por que se chama Bento? Tem a ver com religião também? É em homenagem àquele papa? — interrogou Emmanuel.

Emmanuel estava pensando no papa Bento XVI, que havia renunciado em 2013, mas isso não faria sentido. Bento tinha 17 anos, ou seja, havia nascido antes de Bento XVI ter se tornado papa.

— É em homenagem a um papa com esse nome, mas não o Bento XVI e sim ao Bento IV, meu pai disse que ele foi um dos melhores papas que a igreja católica teve... Acho que a única aqui que o nome não tem a ver com a religião é a Helena, a mãe dela deve ter tirado o nome dela de alguma novela — brincou.

Quem ouve o nome Helena, nem imagina que ele tem algum tipo de ligação com alguma religião, porém houve uma mãe de santo na Bahia, na cidade de Feira de Santana, muito importante que tinha esse nome e por isso a Helena, colega do Bento, do André e do Emmanuel tinha esse nome.

— Você que acha, meu amor. Meu nome é em homenagem à Helena do Bode, mãe de santo — declarou orgulhosa.

Helena tinha muito orgulho de ser seguidora do candomblé. Para ela, aquela era a melhor religião que alguém poderia ter.

— Helena do Bode? Nome Engraçado... — comentou Emmanuel

 — Chamavam ela de Helena do Bode, porque ela tinha a companhia constante de seu bode, Balu. Helena e Balu iam juntos para todos os lugares — A garota explicou.

— Só era o que faltava, temos uma macumbeira entre nós... — resmungou André.

A intolerância havia começado. Dali em diante, foram muitos os comentários que tinham como objetivo, a tentativa de denegrir a crença alheia.

— Repete se é homem — desafiou Helena.

A garota havia se irritado com o comentário do colega. Não gostava nem um pouco quando alguém falava mal ou fazia pouco da sua religião. Para Helena era inadmissível reduzir todo o candomblé na palavra macumba. A menina via essa palavra como algo pejorativo e ofensivo.

— Temos uma macumbeira entre nós — O garoto repetiu em alto e bom som.

André não teve medo de repetir. O menino, criado na igreja, havia aprendido desde cedo que candomblé, umbanda e qualquer outra religião africana, se resumiam a macumba e que macumba era coisa do diabo. Para André, até o espiritismo deveria ser enquadrado como macumba, pois não poderia ser, de forma alguma, coisa de Deus, as comunicações que os espíritas diziam fazer com os mortos.

— Pelo menos, não faço parte de igreja de pastor ladrão que ilude o povo, dizendo vender um pedacinho do céu — A menina rebateu.

Ela havia se lembrado dos casos de pastores que iludem seus fiéis, para assim, conseguir arrancar dinheiro deles.

— Calma, gente — pediu Bento.

— Lá vem o adorador de imagens e seguidor de estupradores de batina, querendo se meter.

André havia tocado num dos pontos de maior discussão entre católicos e evangélicos: A adoração de imagens. Além disso, ele também havia feito uma clara referência aos padres que estupraram crianças, coisa que a própria igreja católica mostrava sua abominação. Isso fez com que Bento se irritasse, mas ele acabou não respondendo nada. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Emmanuel resolveu pronunciar-se, ele pensou que poderia acalmar os ânimos dos colegas.

O espírita também tinha os seus preconceitos com aquelas religiões que estavam em pauta, mas estava se segurando para não pôr nenhum deles para fora. Emmanuel achava que candomblecistas eram torturadores de animais, católicos alienados que aceitavam dogmas absurdos e evangélicos pobres iludidos que pagavam fortunas como dízimo.

— Não precisa ofender a religião alheia, André.

— O que o outro macumbeiro adorador de satanás quer? — perguntou André.

— Macumbeiro? Amigo, eu sou espírita.

— Não duvido nada que vocês fiquem fazendo macumba em seus centros, por trás dessa pseudo-religião.

— Pseudo-religião? Não me faça rir, o espiritismo não é nem ao menos uma religião. Como pode ser falsa?

— Como assim não é religião? — questionou Helena em tom de curiosidade.

— O espiritismo é uma doutrina — explicou.

— E o que é uma doutrina?

— Helena, uma doutrina é um conjunto de princípios que se baseiam em comprovações tanto lógicas, filosóficas ou cientificas.

A conversa que parecia ter tomado um rumo mais civilizado, voltou à brutalidade e ignorância quando Bento resolveu fazer um novo ataque.

— Espiritismo não é nada mais, nada menos, que mais uma forma de manifestação do demônio. Espíritas são enviados de satanás para tentar desviar o homem de bem do bom caminho. Aposto que nos seus centros espíritas devem ocorrer reuniões com o próprio capeta.

Emmanuel nem se abalou com aquele comentário. Como espírita, não acreditava nem em anjos, nem em demônios. Para o espiritismo, os seres que são chamados de anjos, são apenas espíritos muito evoluídos. E os que recebem o nome de demônios, são os menos evoluídos e que gostam de perturbar a humanidade.

— Bento, meu amigo. Espíritas não acreditam em demônio. Então, como nós poderíamos nos reunir com quem nem acreditamos existir? Seus argumentos são tão rasos...

— Como não acreditam em demônio? Acreditam em Deus pelo menos? — interrogou Bento.

Bento julgou aquilo como uma total incoerência. Para ele, Deus representava o bem, e o diabo o mal. Se alguém não acreditava no mal, também não poderia acreditar no bem.

— Não acreditamos em demônio, pois se houvesse um, o próprio Deus haveria que ter criado e Deus nunca criaria um ser com o objetivo de destruir a paz de suas criaturas. Nós espíritas, acreditamos em Deus sim.

— Olha, eu sinceramente acho que essa coisa de espiritismo é tudo palhaçada. E aquele tal de Chico Xavier, era um grande enganador — Bento continuava a ofender o espiritismo.

Antes que Emmanuel pudesse se defender, Helena pronunciou-se:

— Olha, eu acho o espiritismo meio fantasioso, mas acho que você está pegando pesado com o Emmanuel.

— A macumbeira não sabe ficar de boca fechada? Com certeza não sabe, macumba é coisa de gente pobre e barraqueira mesmo.

— Bento, meu querido. Você é um ignorante mesmo. O candomblé tem praticantes de todas as classes sociais. Não é só os pobres, negros e favelados que seguem o candomblé não.

— Sei, mas eu quero saber mais sobre a crença do Emmanuel. Será que ele já viu algum espírito por aí? — perguntou Bento, em tom de deboche.

— Estou vendo agora. Para o espiritismo todos nós somos espíritos. Os que estão vivos, são espíritos encarnados, e os que partiram para o mundo espiritual são os desencarnados.

— E a amiga da macumba. Já fez pacto com os demônios que a sua religião cultua? — questionou André, com o mesmo tom de deboche de Bento.

— O candomblé não cultua demônios. Nós cultuamos os orixás, que são intermediários entre o Deus supremo, Olorum, e os seres humanos.

— E Exu é o que? Não é demônio não? — interrogou André.

— Claro que é — afirmou Bento.

— Não, Exu, não é um demônio. Ele é um orixá que tem a função diplomática entre os orixás e os seres humanos. É o mensageiro das divindades para fins úteis. Tem forte ligação com o fogo, simbolizando seu aspecto ativo, de crescimento.  É o mais humano dos deuses e não é dele a responsabilidade de decidir o que é certo ou errado, apenas realiza a tarefa para a qual foi invocado. Tem o mesmo papel do Deus Mercúrio, o mensageiro dos deuses do Olimpo.

— Heleninha, meu anjo. Não existe intermediário entre Deus e os homens — argumentou André.

— Agora, vamos falar sobre os sacrifícios animais da religião da nossa bruxinha — sugeriu Emmanuel.

— Vocês são muito teimosos. Não respeitam nem procuram entender a fé alheia, estou cansada disso. Estou cansada de tanto preconceito contra a minha religião, os candomblecistas são os que mais sofrem com essa praga chamada intolerância religiosa. As pessoas nos atingem com palavras, mas acham pouco e partem para as agressões físicas também. Pouco tempo atrás, eu vi mais uma notícia sobre um terreiro destruído por gente preconceituosa. E não esqueço a criança que levou uma pedrada por estar com um turbante, ou o rapaz que foi impedido de entrar na escola por estar com sua guia e o contra egun, ou todas as coisas que eu escuto todas as vezes que saio na rua de turbante... — declarou irritada

— Você não é muito diferente de quem você julga ser preconceituoso e intolerante, há poucos minutos, você disse que o espiritismo era meio fantasioso — expôs Emmanuel.

— Eu disse o que eu acho. Não tenho nada contra espíritas, mas acho que vocês viajam um pouco na maionese. Acreditar nessa coisa de reencarnação é meio nonsense, para mim só existe essa vida e ponto.

Alberto, professor de Geografia da escola, passava por ali e percebeu a conversa de seus alunos que pareciam estar completamente imersos em tal discussão. E tentou saber um pouco mais sobre o que eles conversavam.

— Sobre o que tanto falam, galera? — questionou Alberto.

— Estávamos tentando falar sobre religião, mas pelo visto esse assunto não deve ser discutido — respondeu Emmanuel.

— Como assim não deve ser discutido? Todo assunto deve ser discutido, porém com respeito — disse o professor enquanto se dirigia para a sala de aula.

De repente a sirene do colégio tocou. O intervalo havia terminado. Já era hora deles voltarem para a sala.


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Notas finais do capítulo

Espero que todos tenham gostado da história.

Críticas construtivas sempre serão bem vindas.

Muito obrigada por ler ♥