A Alabarda de Ouro escrita por Untitled blender


Capítulo 7
De como me desculpo com meus pais por sumir por três dias ( já pensando em quando iria sumir de novo)


Notas iniciais do capítulo

esse foi demorado pra caramba de escrever, mas ficou bom. desculpe ter ficado curto.



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No começo, até achei que toda essa loucura que eu acabara de passar fosse um sonho. Eu estava de pijama, molhado e caído na grama. Talvez... Sei lá, eu tivesse sofrido um ataque maluco de sonambulismo ou alucinação causada por refrigerante. Ainda era noite. Talvez fosse a mesma.

Pois é, a minha negação durou pouco.

— David! Ah meu Deus, é você! – Eu tive tempo apenas para levantar e olhar em volta surpreso, antes de ser compactado até o tamanho aproximado de uma lata de sardinha pela prensa de preocupação da minha mãe. Perdi quase todo o fôlego, mas, infelizmente, não desmaiei.

— Filho...Como...Três dias...Onde você estava...A polícia procurando...Apareceu no meio da noite...Três dias...Esse sangue...E...

Eu respirei fundo. Bem na hora em que um desmaio seria útil...

***

—aonde você esteve? – Ela perguntava, seu rosto a poucos centímetros do meu.

Silêncio.

— Isso é sério, David! Dois dias! Ligamos para todos os seus amigos... Achamos... Podia ser um sequestro... ONDE ESTEVE?

Silêncio ensurdecedor.

Afinal, o quê eu podia dizer? “Ah, estive viajando pelo mundo mágico dos sonhos, e por aí, tipo Egito, sabe. Destinos exóticos. Aproveitando as férias. Esqueci-me de deixar um recado, só isso”?

Meu pai olhou de esguelha para minha mãe. Uma discussão silenciosa começou. O olhar de meu pai dizia “Sara, não force a barra. Deixe-o descansar um pouco”.

O significado do olhar de minha mãe era claríssimo:

“Mas e se ele estiver com problemas?”

“Deixe-o descansar só um pouco. Tente não assustá-lo com essa sua técnica da GESTAPO*”- Ele tinha um talento incrível de transmitir textos inteiros com o olhar. E depois dizem que não se pode ler pensamentos.

“Mas... E se ele estiver com PROBLEMAS?”

Esse olhar, assim, todo arregalado, com essas letras maiúsculas estampadas no rosto tinha um significado evidente. Queria dizer, em linguagem de mãe, “namorada, malandragem ou drogas”. Não necessariamente nessa ordem.

Ela tem um ponto, pensei. Meu pai baixou os olhos um instante e vi a expressão triunfante no rosto de Sara Clarissa Slayer. Então seus olhos se cruzaram com os dele novamente. Os olhos verdes de Matias Slayer diziam ”espere um pouco. Ele vai falar quando se sentir seguro”.

Boa cartada, pai.

Vi minha mãe ceder diante dos meus olhos. “Você fala ou eu falo?”- Meu pai indagou com o olhar.

“Deixa comigo”- Minha mãe deu um pequeno olhar de esguelha para mim, e deve ter percebido que eu prestava atenção.

“pega leve”- Meu pai encerrou o diálogo silencioso.

— Filho.

Eu me endireitei na cadeira, apoiando meus antebraços na mesa. Estávamos os três sentados à mesa da cozinha, minha mãe à direita, meu pai à esquerda. O cheiro familiar da cozinha – Orégano, pimenta, cominho, canela e baunilha, um odor misto como um mercado de especiarias – me fez lembrar que não havia comido nada, desde o jantar, dia 26 de dezembro, três dias antes, naquela mesma cozinha. Um dia depois do Natal. Eu sequer tinha chegado à metade do terceiro livro dos cinco que ganhara dia 24.

Quer saber a coisa mais estranha? Eu nem estava com tanta fome assim.

—Filho, você deve estar cansado, e com fome. Coma alguma coisa ­– Mi madre olhou de esguelha para mi padre – vá dormir. Amanhã nós conversamos.

Ela virou-se para sair.

—Ah, e tome um bom banho. Você tem areia no cabelo.

Quando comecei a comer é que tive fome. Devorei uma pilha de sanduíches doces e salgados, e o que tinha sobrado do almoço daquele dia. É, eu sei, parece nojento. Mas eu estava com Fome. Experimente passar três dias sem comer, e correndo uma maratona no último. Se você não morrer, nem desidratar tanto que tenha que ser alimentado com soro, você provavelmente vai estar a par da minha fome naquele momento.

Depois de terminar o meu “lanche”, carreguei a pilha de pratos e panelas sujas três passos até a pia, e pensei em deixar ali mesmo. Depois me lembrei da expressão assassina da minha mãe me perguntando onde estive, e resolvi lavar a louça.

Tem coisas que todo o filho teme. Esse olhar é uma delas.

Lavei a louça, morrendo de sono –sem brincadeira, isso levou uns vinte anos- e subi para o meu quarto. Nem parei pra pensar enquanto subia a mesma escada que havia me jogado nesse mundo louco apenas três dias antes.

***

Tomei um merecido banho. Lavei o suor, o sangue seco e poeira que haviam se acumulado no meu corpo nesse absurdo espaço de tempo. Enquanto a água escorria pela minha cabeça, observei os pequenos agrupados de grãos de areia rodopiarem pelo piso do box para o ralo. Essa areia veio de uma pirâmide do Egito pro meu ralo. Uau.

Saí do banho me sentindo revigorado. O sono que sentira antes havia desaparecido completamente. É engraçado como um bom banho é capaz de fazer a gente se sentir descansado. Ainda passando a toalha no cabelo, entrei no quarto.

Uma voz levemente rouca e quebrada me assustou quando entrei no quarto.

— Cara, alguém já te disse que você demora mais do que uma noiva no banho?

Me virei.

Ali, sentado na minha cama, como um bizzarro efeito especial de chroma key*2, estava eu mesmo.

*1 Polícia secreta do Partido Nazista durante a segunda guerra mundial.

*2 Chroma key: técnica de filmagem em frente a uma tela de cor única –geralmente verde ou azul- utilizada para montagens complicadas em filmes


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