Registro Panorâmico escrita por Titi


Capítulo 15
Carisma


Notas iniciais do capítulo

Bom dia, pessoas! Estou esperando o táxi e resolvi postar o capítulo logo agora.



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A gente chegou em casa e o Edgar foi subindo as escadas, me largando sozinha com aquele moleque.

Bas gente... Bor que bocê bai subir? –mau pressentimento.

—Tem alguma coisa errada, Qué? –Salamander se intrometeu.

—Ué, eu vou atrapalhar o estudo de vocês. Eu vou pedir pizza, caso vocês fiquem com fome. O dinheiro tá aí na mesa. Se precisarem, estou lá em cima resolvendo uns problemas no computador.

—Não bai trabalhar?

—Quer tanto se livrar de mim? O meu chefe ligou dizendo que posso ficar o resto do dia em casa. –ele terminou de subir os últimos degraus.

Fiquei olhando pro Hebrom e tentei começar uma conversa:

—Então...

—Então o que?

Bega os libros.

—Ah! Tá! Desculpe. –riu um pouco constrangido e botou o material escolar na mesa.

—O que bocê não sabe?

—Não sei.

—Como não sabe o que não sabe?

—Hã...?

Esbera. Bamos bor bartes. –eu simplesmente não sirvo pra ensinar.

—Certo...

—Sabe belo benos conjugar berbos, né?

—Berbos?... Ah, verbos? Sim, eh. Isso eu sei. –sorriu. eHe

—Então tá... A brofessora não bassou nada ainda, bas deve ter algo que já ensinaram aqui... –comecei a folhear o livro de Português. –É bem simbles. Tem algubas coisas barecidas com o... Que íngua bocê fala besmo?

—Inglês e francês.

—Sem querer desbiar buito do assunto, bas bor que bocê beio bra cá? Tipo... Aqui não é tão legal, se é que dá bra be entender.

—Meu pai arrumou uma proposta melhor de emprego.  Muito melhor mesmo, tipo o triplo do salário, eh. Minha mãe é canadense, ele é brasileiro e a conheceu lá no Canadá. Agora voltaram pro Brasil. Entendeu?

—Uhum... Até estranho ele receber algo belhor no Brasil... Enfim... Agora sobre Bortuguês.

—Desculpe.

—Sem broblema. Eu que berguntei. Então... Morfologia bocê sabe?

—Hm... Eh. Não tenho muitos problemas com isso.

Procurei mais um pouco no livro e achei um capítulo que falava sobre Sintaxe. Depois de o Hebrom dizer que não conhecia, eu comecei a ler em voz alta. O moleque ficou com cara de avoado me fitando. Aí, além da voz esdrúxula, eu fiquei gaguejando... Que lindo.

 –Você tem uma corda? –Salamander perguntou, parecia (pois é, eu prefiro acreditar que só parecia) que ele não estava prestando atenção em nada do que eu havia lido.

Bra que bocê quer uma corda?

—Tem ou não?

Esbera, eu bou begar. –eu me agrado muito de estar perto desse garoto. Se não fosse por isso, eu teria pegado a corda só pra enforcá-lo... Ser interrompida não é nem um pouco divertido, ainda mais nas minhas condições.

—Sabe fazer nós? –perguntou quando entreguei a corda na sua mão.

Não sei nem amarrar o cadarço.

—Não buitos...

—Quer aprender?

Era pra eu estar te ensinando alguma coisa. Me sinto inútil.

—Claro!

Aí, tá, né. Passamos um bom tempo com ele fazendo uns nós esquisitos lá que ele teve tempo de gravar, mas não teve tempo de estudar Português... Mas tudo bem, eu não estou irritada. É clichê, mas eu não consigo ficar brava com ele (por enquanto). O único em que eu prestei atenção foi no “Nó de cirurgião”. Logo depois ele disse um outro que me interessou.

—Esse se chama Algema. Que nem aquela que os policias usam. Só que isso é uma corda... –é mesmo é? Não tinha percebido. Só não tiro uma com tua cara agora porque ia estragar as minhas chances quase inexistentes de um dia ter filhos com você.

Cobo funciona?

—Ah, é só você botar as duas mãos da pessoa que quer prender bem aqui nesses espaços e puxar...

Bosso tentar?

—Claro, Qué. O que quiser.

Bem cá. –o levei pra perto da escada, amarrei uma ponta da corda no corrimão e fiz o nó na outra. Prendi os pulsos do Salamander como ele havia explicado.

—Fez direitinho. –cada vez que ele sorri daquele jeito, eu penso que vou ter uma parada cardíaca. E deu pra perceber que... Isso é meio que... O tempo todo.

Ouvi alguém buzinar lá fora.

—É bro Edgar?

—Sei lá. Acho que é a pizza que ele pediu. –encarei o Hebrom por um segundo, peguei o dinheiro na mesa e depois saí correndo. Paguei o cara e tudo mais e voltei com a pizza e o refrigerante. Sentei numa das almofadas que ficam no chão, envolta da mesa, e comecei a comer. Nada demais.

—Hey... –o garoto me chamou.

—Que foi? –abri um sachê de ketchup.

—Olha pra mim, pelo menos!

—O que bocê quer? –quando eu virei o rosto ele começou a sacudir as mãos mostrando a corda. –Ah, tá debois eu te tiro daí.

—Puxa... A pizza é realmente mais importante que eu?

—O que bocê acha?

—Eu acho que você gosta de mim e não vai me largar aqui...

Bamos ber.

—Eu estou com fome... –os olhos dele começaram a tremer. Aí eu tive que parar de fitá-lo. Que filho da mãe. Chantagem emocional pra pegar minha comida... Acabou o amor.

—Que pena! –depois de eu ter dito isso, deu pra ouvir o estômago dele roncar. –Ah... –suspirei e me levantei pra soltar ele dali. –Hebrom, bocê be enjoa.

—Não tenho culpa.

—Quando é bra falar “desculbebesbo, bocê faz o contrário. –ele ia dizer após ouvir a reclamação, mas preferiu sentar e calar a boca.

Voltei pro meu lugar. Salamander não moveu um músculo.

Bai cober esse troço ou não bai?

—Você não quer que eu coma nada.

—Ah, não! Nem bem. Eu não te soltei à toa. Bode engolindo essa borcaria de bizza.

—Você é tão amável, Quésia... –lá vem o outro querer bancar o irônico também. Dois ninguém aguenta. Botei a minha almofada mais próxima da dele e entreguei um pedaço. Eu já estava parecendo um tomate de tão vermelha. –Sentando perto de mim? Achei que eu te enjoasse. –ele fez uma cara de surpresa.

—Então bou bra longe de nobo.

—NÃO, NÃO, EU TO SÓ BRINCANDO! Fica aqui! Eu não ligo se você está doente. Somos amiguinhos agora, eh. Vamos lá, vamos treinar o contato físico. –ele lentamente tocou na minha bochecha com o indicador.

—Nossa, bocê é ridículo! –não deu pra segurar o riso.

—La pure vérité!

—Cara... Quantas línguas bocê fala?

—Hã? Ah! Além das que eu já disse, eu tentei aprender a língua brasileira de sinais... Libras. Não deu muito certo. Ainda tenho que saber de espanhol por causa da escola, mas o português vai bem, eu acho.

...Só?

Bra ser sincera eu achaba que bocê era só bais outro... –eu iria acabar insultando ele, mas quando fitei aqueles olhos brilhando, engoli minhas palavras.

—Mais outro...?

Retardado com um rostinho bonito.

—O que eu quero dizer, é que você é bais... Buito bais inteligente do que barece.

—Sério? Obrigado! –parecia entusiasmado.

—Tá, tá... Agora come essa bendita bizza antes que esbrie.

—Bem... Eu não como queijo.

—Ah, tá de brincadeira, né? Engole logo isso.

—Eu estou falando sério.

Bocê não cobe nada, garoto?

—Eu sou vegano. –eu fiquei encarando-o, como se ele sequer tivesse respondido. –Sabe o que é um vegano, certo? –sacudi a cabeça em negação. –É... É alguém que não come carne e nem nada de origem animal.

Baneiro... –dei um sorriso de canto. –Bas bra que isso?

—Saúde, respeito...

Buito resbeitoso da sua barte.

—Obrigado de novo. –Hebrom ficou meio constrangido. –E você? Come carne?

—Eu não! Credo...

—Por quê?

Frescura mesmo.

—Eu acho repugnante... Sei lá. Desnecessário.

—Sabia que só por isso seu risco de ficar com algumas doenças diminui? –ele sorriu de um modo tão meigo que foi até nauseante.

Comecei a pensar que ele ia dar uma palestra sobre saúde e eu acabaria dormindo, mas aquilo foi a única coisa que ele disse... Como se fosse a única coisa importante no momento.

Bas então... Significa que eu vou boder cober a bizza sozinha?

—Parece que sim.

Sem palavras pra definir minha felicidade interna.  Eu comi três fatias seguidas e o Hebrom só ficou me olhando, à espera. Me senti uma gorda naquela situação, só que não significa que eu parei de comer.

Bamos boltar ao estudo? –perguntei pegando o último pedaço.

—Ver você comer está bem mais interessante. –suspirou.

—Então quer dizer que bocê estaba besbo enrolando bra não estudar? –ele apenas olhava para o chão.

Logo depois riu:

—Desculpe.

—Certo, certo, eu te entendo... Sobre Sintaxe... Pelo benos brestou atenção no que eu li?

—Sim, eu já conheço, é do oitavo ano isso aí.

—Não que eu esteja dubidando de bocê... Bas... Bamos fazer uma rebisão, bode ser? Quero que bocê classifique cada combonente da frase que eu escreber.

—Hm... Sem problema, eh...

—Não se breocuba, bou escolher fáceis. –peguei uma folha do caderno e escrevi “Eu gosto de música”... Olha só a minha piedade... –Bamos bor barte, ainda... Acha o sujeito.

—Você gosta de música? Eu também, eu sei... –o interrompi apesar de queres saber o fim da frase.

—Quanto bais bocê enrolar, benos vai abrender.

—Me desculpe... Foi a última vez...

—Ah... Sem broblemas, sem broblemas.

—O sujeito está aqui. –ele apontou pra palavra “Eu”.

—Isso, agora barca ele. –ficou cinco segundos encarando o papel e fez uma setinha.

Escrebe qual tibo de sujeito é. –o garoto cumpriu a ordem e do nada começou a tremer.

—Salamander... Tá tudo...? –ele estava chorando, as lágrimas corriam rapidamente pelo seu rosto. –Hebrom! O que hoube, criatura?!

—Eu sou estúpido! –eu não estava entendendo bulhufas, até pegar a folha... “Sugeito cimples”... Pelo menos ele sabia que estava errado. –Me desculpe, desculpe, desculpe...! –soluçava.

A minha pessoa não sabia o que fazer. Esse menino chora por tudo! Eu to desorientada, a Judi nunca chorou na minha frente. Se bem que eu duvido que o Hebrom escreva tão mal assim, acho que ele não reage bem sob pressão.

—Ei... Fica... Fica calbo. Eu quem be ofereci bra te ajudar, não deberia e nem bou ficar braba contigo. E... Eu... Eu estou te acusando de alguba coisa? –levante o queixo dele com a minha mão, receosamente.

—Q-Que eu saiba, não...

—Então se distrai... Esbera aqui. –ele parou com o murmurinho, mas as lágrimas ainda caíam.

Fui correndo ao meu quarto e peguei um dicionário. Voltei o mais rápido que pude, Salamander havia parado com os prantos.

—Tenho uba coisa pra bocê.

—O que? –me mirou com os olhos arregalados e brilhando, ainda alagados. Pus o livro na sua mão. –Muito obrigado! Mas... O que é isso?

—Um dicionário.

—Incrível!

—Eu passaba bastante tembo lendo bra abrender balavras nobas, bas no fim das contas esquecia todas.

Continuamos em silêncio por um tempo e ele folheando o livro, até eu ficar cansada e querer coadjuvar:

Bocê não disse que tinha um barente brasileiro?

—Eh. Meu pai. Automaticamente eu acabo tendo outros.

—Ele bassa muito tembo contigo?

—Pode se dizer que sim... Por quê?

—Eu te aconselharia a bedir bra ele te ensinar a bronúncia de algubas balabras.

—Ah! Boa ideia! Isso foi... –folheou o dicionário outra vez. –Primoroso!

Só me falta agora esse garoto vir falar palavras que eu não conheço o significado e ainda falhar na dicção... Ao menos eu não era nenhuma grande ignorante da vida. Resolvi dar uma zoada:

—Hebrom, diz debois de bim: “otorrinolaringologista”.

—Óto... Otoli... O... Pode repetir? É otorin...

Foi maldade, sim, me prenda, mas vou continuar achando graça. O sotaque dele é estranho com a mesma intensidade de que ele me parece uma gracinha de pessoa. Não dá pra não se compadecer de alguém assim.

—Ei, já bode barar, é só uma brincadeira. –ele riu, mas tava evidente que dessa vez era só pra socializar.

Eu e o meu humor de quinta categoria... Ele não precisava rir, eu riria por nós dois.

—Quésinha...

—Que?

—Você acha que eu sei falar português?

—Sim, bocê entende direito, fala de um jeito que não é imbossível de entender... E a matéria barece saber, apesar de ficar embrobando.

—Então quer dizer que eu não preciso mais estudar?

Bocê que sabe.

—Mas eu posso... Continuar vindo na sua casa?

Bra que, garoto?

—Não sei... Eu poderia escrever uma redação e você corrigir.

Bra fazer uma coisa barecida, bocê não brecisa bir até aqui. –CALA A BOCA, MARITACA REPULSIVA! SABE QUANDO UM GAROTO VAI PEDIR PRA VIR À SUA CASA DE NOVO?!

—Não? Então como?

—Sei lá... Por cartas, bensagem ou... Tem rede social? –perguntei “por acaso”.

—Sim! Me dá teu e-mail? Eu te procuro em todas as redes que eu tiver quando chegar em casa.

—Tá certo. –escrevi na folha e ele a pôs no bolso, ainda fazendo aquelas expressões faciais que inspiram simpatia... O humor dele é bem extremista.

Depois de mais tempo na ausência de som, tirando os automóveis correndo na rua, Salamander me perguntou que horas eram.

—Quatro.

—Já?! Que tarde... Eu tenho que ir agora... –foi até a porta e me encarou.

—Esqueceu alguba coisa?

—Não vai vir nem se despedir? Vem cá, “abiguinha”.

Bocê que saiu andando, agora quer be fazer lebantar bra te dar um bísero “tchau”? Bocê sendo beu abigo, os inibigos berdem a função.

—Que fofa... Agora gasta o que comeu de pizza, vindo até aqui, por favor.

—A cada binuto bocê consegue ficar bais chato. –levantei.

—Desculpe. –disse entre risos.

Já eu, não estava vendo graça nenhuma. Foi a mesma sensação de deitar e notar que controle da TV está longe quando você alcança uma posição confortável muito rara no sofá.

—Já bode ir embora. –eu resmunguei e, no mesmo instante ele passou as mãos nos meus ombros e me abraçou tão inesperadamente que eu congelei.

Passaram sete segundos (sim, eu contei, me processe), até eu conseguir retribuir. Foi então que ele abraçou mais forte. Três segundos mais tarde, ele soltou e se manifestou:

—Eu sei que eu não te conheço muito bem, mas... Eu gosto de você, quero muito continuar sendo seu amigo, de verdade. Você é diferente das pessoas que eu conheci. Quando alguém te criticar, não escute. Você vale mais do que pensa... Muito mais mesmo!

Cada palavra que saiu da boca dele no instante, foi mais surpreendente do que a ação anterior. Eu me senti um livro aberto, de novo... Isso não é bom, nada bom.  Eu fui tão vulnerável... Um gringo que não me conhece há nem uma semana fez uma análise psicológica minha e acertou. Eu realmente vi boas intenções naquilo, mas me fez parar pra pensar que se é tão fácil perceber o que eu faço questão de esconder, apenas convivendo comigo por alguns dias, é porque eu não aprendi nada com as coisas ruins que vieram. Eu continuo infantil. Ignorar tudo o que acontece não é ser forte. Tudo o que eu poderia conquistar, eu lancei por terra. Não é por nada que me desprezam.

Pensar em tudo isso foi tão esquisito... Eu não respondi nada ao Hebrom. Então ele fez:

—Quer vir à igreja comigo?

—Hã? Igreja?

—Sim, no Sábado. Você... quer?

—Ah! Não bejo borquê não.

—Ótimo! Eu te mando uma mensagem com o endereço. Vamos se você melhorar desse resfriado.

—Eu bou belhorar!

Ele olhou de um jeito tão singelo pra mim, virando a cabeça um pouco para a direita e soltou um “Creio que sim” acompanhado de um sorriso calmo.

—Te vejo amanhã, Qué. –foi andando de costas até bater com elas na porta. –Ops... –riu, meio corado e saiu.


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Notas finais do capítulo

Depois que eu voltar da igreja, posto outro!



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