"Acho melhor eu lavar minha boca com sabão"

O silêncio era sua única companhia naquele momento, ajudando-a a se lembrar de coisas que deveria esquecer. Coisas que não deveriam ter acontecido, coisas que só estavam em sua memória por que ela havia sido tola e ingênua.

"Acho que acabei de me lembrar de algo
Eu acho que deixei a torneira escorrendo"

Uma lágrima solitária escorreu pelo seu rosto e pingou na banheira, juntando-se à água e à espuma que logo cobririam sua tristeza e a livrariam daquela dor.

"Agora minhas palavras estão enchendo até topo
Querido, você está apenas se encharcando nelas"

Afinal, aquela água era sua melhor amiga, não era? Eram uma só, gêmeas siamesas.

"Mas eu sei que você vai sair em um minuto
Você percebe todos os seus dedos enrugando"

Nunca deveria ter duvidado disso. Nunca deveria ter tentado se tornar uma com o gelo.

"Estou cansada de ser cuidadosa na ponta dos pés
Tentando manter a água quente
Me deixe sob sua pele"

O Gelo era duro e dependendo da situação poderia até queimar e cortar. Como havia feito com ela.
Tudo porque ela havia tentado esquentá-lo. Tudo porque havia tentado amá-lo.

"Oh oh, lá vai
Eu falei demais que transbordou
Por que eu sempre derramo?"

Todos falavam que não era culpa dela, que o Gelo era frio por natureza. Mas no fundo ela sabia que sempre afastaria todos com seus sentimentos exagerados, sentimentos que ela deveria manter guardados para si mesma.
Mas não era isso o que água fazia, não é? Ela transbordava mesmo que sem querer e, como consequência, molhava todos ao seu redor.

"Eu sinto isso saindo da minha garganta
Acho melhor eu lavar minha boca com sabão"

Era incontrolável. Ela sempre falava o que não devia.
Depois, o arrependimento por deixado aquelas palavras escaparem ficaria preso em sua garganta, machucando-a toda vez que abrisse a boca para se desculpar. Como uma grande pedra de gelo.

"Deus, eu gostaria de nunca ter dito
Agora eu tenho que lavar minha boca com sabão"

Mais uma lágrima.

"Eu sinto isso saindo da minha garganta
Acho melhor eu lavar minha boca com sabão"

A água agora estava em seu pescoço, consumindo seu corpo e preenchendo seus pulmões.
Pelo menos, afogando a si mesma com água e sabão, ela não afogaria mais as outras pessoas com palavras e sentimentos.

"Deus, eu gostaria de nunca ter dito
Agora eu tenho que lavar minha boca com sabão"

Principalmente o Gelo.
Era principalmente ele que a fazia se arrepender de ter dito tudo aquilo.
Agora ela mesma se sentia congelada.

"Acho que eu me meti em encrenca
Então eu encho a banheira com bolhas
Depois eu vou colocar todas as toalhas longe"

"Não quer conversar?" A Estrela havia perguntado. Ela era bela, dourada, brilhante, e não inquieta e contagiante como a água.
A Água respondera que não, que a única coisa que poderia ajudá-la naquele momento era se juntar com sua outra Eu, da qual nunca deveria ter se separado.
A qual nunca deveria ter deixado para amar o Gelo.

"Deveria nunca ter dito a palavra 'amor'
Joguei uma torradeira na banheira
Estou cansada de todos os jogos que eu tenho de jogar"

Estava cansada de tentar se juntar com coisas que a machucavam, sempre tentando ser uma boa amiga. O Fogo a faria evaporar, a Estrela também. O Ar a secaria.
E o Gelo a congelaria, como havia feito tantas vezes, esfriando-a aos poucos.

"Estou cansada de ser cuidadosa na ponta dos pés
Tentando manter a água quente
Me deixe sob sua pele"

Mas isso não aconteceria mais.
Não, estava cansada de tentar aquecê-lo e receber de volta apenas frio e dor.
Pois era só isso o que o Gelo poderia lhe dar.

"Oh oh, lá vai
Eu falei demais que transbordou
Por que eu sempre derramo?"

Ela sorriu e deixou a água lhe cobrir por completo.
Pelo menos, se seus sentimentos transbordassem novamente, molhariam apenas ela mesma.

"Eu sinto isso saindo da minha garganta
Acho melhor eu lavar minha boca com sabão"

Suas mãos estavam ficando ficando frias e dormentes, rígidas.
Será que no fim ela havia conseguido o que tanto queria?
Será que no fim ela finalmente havia se tornado parte do gelo?

"Deus, eu gostaria de nunca ter dito
Agora eu tenho que lavar minha boca com sabão"

Mas estava tão cansada, tão arrependida.
Então apenas abraçou o frio do seu corpo e deixou que o calor da sua outra Eu a abraçasse também.

"Eu sinto isso saindo da minha garganta
Acho melhor eu lavar minha boca com sabão"

Se não tivesse feito isso ficaria tão feliz, quem sabe até se sentisse quente novamente.

"Deus, eu gostaria de nunca ter dito
Agora eu tenho que lavar minha boca com sabão"

Pois se não tivesse feito isso, se não tivesse fechado os olhos e abraçado o frio, teria tido a oportunidade de ver que não estava sozinha, que o Gelo também se arrependera de ter dito o que não devia.

"Eu sinto isso saindo da minha garganta
Acho melhor eu lavar minha boca com sabão"

Que ele se arrependera de não ter deixado a Água se tornar uma com ele, que ele se arrependera de tê-la esfriado.
Ela costumava ser tão quente...

"Deus, eu gostaria de nunca ter dito
Agora eu tenho que lavar minha boca com sabão"

Agora estava fria como ele.
Mas, as lágrimas que ele derramou ao vê-la daquele jeito, gelada e com os lábios azuis como seus cabelos, eram quentes como ela já havia sido um dia.