Divided escrita por Pat Black


Capítulo 3
Carefully


Notas iniciais do capítulo

Agradecimentos a Maritafan e Vivi Costa pelo comentário. Beijão em vocês.
Música: Black - Kari Kimmel



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Linn gostava dele.

Sam teve certeza disso quando a aiga demorara a erguer o arpão na noite anterior, naquele porão empoeirado, depois do maldito as ter levado a uma situação perigosa com os errantes vagando pela casa.

Podia ser que, no começo, quando o encontraram e ele sumira logo após, a amiga apenas quisesse manter sua humanidade ajudando alguém que precisava. Mas agora, um dia depois, após conhecê-lo um pouco, ouvir sua voz e notar sua força, mesmo e apesar de sua aparência ainda frágil, com ele bem o suficiente para irem procurar armas na delegacia, Sam pode notar o brilho nos olhos da amiga e perceber que algo estava nascendo no coração de Linn, uma coisa sadia de certa forma e muito desinteressada diante do impossível.

Sentada, meio deitada, no banco de trás, para manter a perna esticada, olhava para o perfil do xerife e podia entender a fascinação da amiga, ainda que não a compartilhasse. 

Sam abanou a cabeça e tentou ser objetiva.

Ele era bonito.

Claro que de um jeito acabado nesse instante, mas fatalmente atraente, com um queixo forte e olhos azuis de tirar o fôlego. Aqueles olhos, Sam percebia, poderiam ser a perdição de uma mulher. Porque, quando ele te encarava, parecia querer ler e devastar sua alma, descobrir seus segredos, entender tudo o que te ia à mente e no mais profundo de seu coração. E, além disso, a sua natureza calada dizia muito sobre o quanto astuto e inteligente ele parecia ser.

Infelizmente, para Linn, ele era um marido e pai que não mediria esforços para encontrar sua família. Sam pode ler isso em sua expressão, quando ele encontrara uma das poucas fotos de sua mulher e filho que restaram na casa, e Linn não seria tão obtusa de não ver o mesmo.

Naquele instante, com a foto nas mãos, seus olhos brilharam. Ali Sam pode ler o amor que Rick sentia pela sua esposa e filho, bem como a determinação em encontrá-los, mesmo que ela achasse que eles podiam estar mortos há muito.

Desviou o olhar para Linn e percebeu o modo disfarçado como ela encarava Rick, no tom ruborizado de suas bochechas e ao longo do pescoço.

Engraçado era que vê-los lado a lado dava-lhe um aperto no estômago, pois sabia que eles poderiam dar certo. Porque Linn também era linda de todas as maneiras que alguém poderia ser e, Sam desconfiava, Rick também  achava isso.

Ele apreciara Linn de imediato quando o mesmo não ocorrera com ela; o que era mútuo. Ele sempre se dirigia primeiro a Linn, desde que o encontraram, e sua voz parecia mais suave ao falar com ela, enquanto soava ríspida e autoritária quando precisava se dirigir a mais jovem. Não que Sam pudesse notar qualquer tipo de flerte entre eles. Um dia era muito pouco tempo para isso, pelo menos no caso presente. Não, Rick não demonstrava qualquer tipo de interesse na amiga. Mas ele sabia. Rick seguia sendo muito observador para não ter notado o deslumbramento no olhar da amiga, seu sorriso fácil quando conversavam, ou a pureza que Linn parecia emanar em sua fascinação por ele.

Ele não a encorajava, isso pesava a favor dele, mas também não fazia nada para desestimulá-la. Não porque desejasse a atenção de uma mulher, qualquer mulher, ou de Linn em especial, mas sim porque necessitava de uma aliada, por enquanto, naquela dupla, e esta não seria Sam.

Logo estavam na delegacia, avançando por seus corredores, sem problemas, sem errantes ou qualquer pessoa. Dirigindo-se primeiro para a sala de armas.

Sam sorriu consigo mesma ao pensar naquilo, no quanto Cynthiana podia estar vazia, deserta, sem nenhum errante à vista para, no instante seguinte, eles aparecerem de lugar algum como um enxame de abelhas, cercá-los e vencer.

A sala de armas, é claro, estava saqueada, mas muita coisa ainda havia ficado para trás. Obviamente que Rick ficou com a maior parte delas e da munição também, parecendo não temer nenhum tipo de embuste da parte delas para deixá-lo ali, ou matá-lo, e ficar com tudo quando lhes ofereceu uma porcentagem menor destas.

Linn e Sam não eram selvagens. Não tomavam o que pertencia a outros. Por isso receberam as armas com um agradecimento, já que era mais do que conseguiriam em muito tempo.

Linn fez uma careta quando segurou o rifle e o pendurou no ombro. Ela não gostava muito de armas de fogo, algo relativo ao tempo em que era uma soldado.

Como o pai de Sam fora xerife e ela vivera rodeada de armas a vida toda, sabia manuseá-las e apreciava o peso delas em sua cartucheira na coxa e nas mãos quando atirava nos errantes. Por isso, Sam não se fez de rogada e aceitou o que ele gentilmente ofereceu com uma alegria que deixou sua face bonita e excitada, de maneira que Rick se sentiu incomodado. 

Depois de repartirem as armas ele seguiu mais para dentro da delegacia e as garotas o acompanharam até que se encontraram no vestiário.

“Ainda tem água corrente”, ele falou após verificar um chuveiro. “Vocês tomam agora e eu uso depois.”

“Não tem um vestiário feminino?”, Sam perguntou não gostando muito da situação.

Ele sacudiu a cabeça em negativa e sorriu no que pareceu a Sam um pouco envergonhado.

“Tudo bem”, Linn falou e esperou que ele saísse para tirar a roupa e tomar um longo banho, enquanto Sam bancava a vigia, observando a porta, sentada em um dos bancos, a beretta nas mãos nervosas.

“Ele não vai entrar aqui”, Linn disse com confiança. “Ele não é esse tipo de homem.”

Sam sabia, compreendeu isso do pouco dele que vira até aquele momento, mesmo assim sua natureza por demais cautelosa e calejada a impossibilitava confiar, ainda quando tudo gritava para que o fizesse.

Quando Linn terminou, Sam tomou seu banho sem aproveitar a água quente ou o jato forte desta batendo em suas costas, refrescando-a e levando embora a sujeira de dias. Queria apenas estar limpa o mais rápido possível, porque estar nua, com um homem do outro lado da porta, dava-lhe uma sensação horrível de fragilidade, um sentimento que nunca mais queria sentir.

Pegando roupas limpas, vestiu-as após colocar um novo curativo na perna, notando que o corte deixaria uma cicatriz, mas estava livre de infecção e, era quase certo, não a faria mancar para sempre.

Rick entrou logo depois e levou um bom tempo em seu banho.

“Será que ele precisa de ajuda?”, Linn perguntou ao perceber que ele demorava demais. Sam ergueu uma sobrancelha de forma irônica, e aquilo fez Linn sorrir. “Até ontem o cara estava em coma”, pontuou.

“Linn?”, Sam chamou e se aproximou. “Ele é casado”, sussurrou o óbvio.

“Eu sei.” A ruiva parecia ofendida.

“Então...”, a morena aconselhou, "fique aqui."

Linn fez menção de lhe dizer algo, mas alguma coisa na face de Sam, um aviso e muito de compreensão, fez com que permanecesse no lugar.

“O que faremos agora?”, perguntou após um silêncio constrangedor.

“Quer ir a Atlanta?”, Sam questionou sem tirar às vistas da arma que começara a limpar, apenas para passar o tempo.

“O que teríamos a perder?” Linn deu de ombros. “Tinha família lá, você sabe.”

A família adotiva? Sim, Sam sabia, ela lhe contara tudo.

Ainda lembrava-se de Linn quase partindo do acampamento uma semana após se conhecerem em Savannah. Mas ela acabara ficando para trás porque percebeu ser mais necessária ali, ao lado de civis que nada sabiam sobre luta e batalhas, muito menos em como usar uma arma ou sobreviver com tão poucos mantimentos.

“Ir com ele?”, Sam perguntou com uma nota de ironia.

“Por que não?”

“Porque há problemas que podemos evitar”, Sam falou montando a beretta novamente, exímia no complicado ajuste de todas as partes.

“Não há problema algum, Sam”, Linn falou tentando conter um sorriso.

“Ok.”  A jovem encaixou o carregador, depois engatilhou para colocar uma bala na agulha. “Mas não acho que deveríamos acompanhá-lo.”

Não queria julgar Linn, mas seria melhor que deixassem Rick partir sozinho e seguir seu maldito caminho em busca da família.

“Não está cansada de estar sozinha?”, Linn perguntou sentando em uma das cadeiras e olhando para a fotografia sobre a mesa. Algo de um dos antigos subdelegados. Na foto, uma mulher sorrindo abraçava um collie.

“Não estou sozinha”, Sam falou dando-lhe um olhar eloquente.

“Sabe o que quero dizer.” Linn balançou a cabeça e olhou para a porta do vestiário.

Sam lembrou da noite anterior, do escuro de um quarto, um errante sendo abatido por Linn, enquanto sentia uma pele sedosa, quente, sob a sua palma e olhos devastadores encarando-a com assombro e um pedido sincero de desculpas.

Sim, sabia o que Linn quisera dizer, mas não era tola o bastante para fantasiar; nunca gostara de sonhos pueris e não seria agora, no fim do mundo, que iria se deixar levar por eles.

Sam olhou para a porta do vestiário também e esta se abriu.

“Vamos?”, Rick chamou passando por elas, seguindo para fora, vestido com seu uniforme de xerife, bolsa de armas às costas e um chapéu na mão.

Linn percebeu que a farda estava folgada, o que dava a ele, mesmo apesar de limpo e barbeado, uma aparência um pouco mais abatida que antes.

Sam a encarou quando o seguiu, e Linn pôde notar o olhar de desgosto que ela dava ao xerife.

Sam não gosta dele.

Linn percebeu isso desde o momento em que o encontraram no hospital, apesar de Sam tê-la ajudado a encontrá-lo, carregá-lo e a cuidar de seu ferimento enquanto ele estava desacordado. Mas Sam não gostava de desconhecidos há algum tempo e talvez por isso Linn não tenha percebido que a aversão ao xerife fosse algo mais cru e direcionado, específico a este como indivíduo, e não porque fazia parte da raça humana.

Sorriu levemente. Se Linn estava sentindo uma queda pelo homem, Sam podia ser descrita como seu extremo oposto.

Do lado de fora Rick parou ao lado da viatura e encarou as duas, aguardando.

Viu que Sam olhou para Linn e esperou.

Estranhou.

Pelo pouco que pudera notar das duas, mesmo que Linn fosse alguém de iniciativa, preparada, Sam parecia ser a pessoa a tomar a maior parte das decisões naquela dupla. O que Rick achara curioso, já que ela devia ser uns oito anos mais jovem que a ruiva.

Linn encarou a amiga por alguns instantes, depois se voltou para ele, e Rick estremeceu diante do olhar que ela lhe deu. Seus olhos verdes, límpidos, encararam-no cheios de promessas, ainda que ela não estivesse ciente disso.

Teve vontade, bem naquele momento, de recusar a carona que oferecera, pois percebeu que aquela parceria não poderia resultar em nada de bom para Linn, para ele mesmo ou para Sam.

Estreitando os olhos, deu uma longa olhada na mais jovem e se sentiu incomodado por ela, pela força que possuía, pela fragilidade que emanava, até mesmo pela forma como ela se mantinha em pé, a face crispada pelo esforço, mas sem demonstrar mais do que isso da sua dor.

Notou com mais cuidado as marcas e hematomas aqui e ali, perto do olho, na bochecha, queixo, como alguém que levara alguns socos e estes já estivessem cicatrizando. Só se dando conta então de que algo de ruim acontecera com Sam, algo tão grave que ela evitava se aproximar dele mais que alguns passos, agarrada sempre a uma arma ou sua faca, sempre alerta, ou confiante de que Linn estivesse por ela.

Ela não tinha medo dele. Isso não. Contundo, Sam era precavida demais, alerta em demasia, para que Rick não compreendesse a extensão de suas feridas e a profundidade de suas cicatrizes.

E a dor dela também o machucou.

Voltou a encarar Linn e ela parecia considerar, cuidadosamente.

Estavam parados há... o quê? Vinte segundos? Ainda assim, para ele, pareceu uma eternidade, mesmo que Rick sentisse, ainda que não admitisse para si mesmo, que valia à pena esperar por qualquer uma das duas.

“Acho que é aqui que nossos caminhos se separam”, Linn murmurou.

Rick sentiu um sobressalto ao notar que aquelas palavras foram incompreensivelmente dolorosas.

Olhou uma última vez para Linn, apreciando seu cabelo vermelho, cortado baixo — o que dava a ela uma aparência ainda mais feminina — pensando que sentiria falta de sua figura naquele macacão cinza e feio de piloto.

Quis olhar para Sam, mas não pôde, apenas acenou para ela sem encará-la, não querendo ser esmagado pela lembrança daqueles olhos castanhos cheios de animosidade para com ele.

Havia mais duas viaturas abastecidas que elas poderiam usar, as chaves estavam na delegacia e elas sabiam onde. As duas possuíam armas e munição, mantimentos, tinham se mantido vivas até ali, certamente conseguiriam sobreviver por muito mais tempo.

Dirigindo, afastou-se delas, vendo-as por um momento pelo retrovisor.

Linn estava parada olhando em sua direção, Sam logo ficou fora de seu ângulo de visão.

Lentamente pegou a foto em um compartimento acima de sua cabeça, olhou para Carl e Lori por alguns segundos, tentando esquecer a mulher que deixava para trás.


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Notas finais do capítulo

Carefully - Cuidadosamente