Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 12
Capítulo 11




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CASTELO AFASTOU-SE DO CARRINHO de bebê aos tropeços, com o seu rosto mostrando claramente que ainda estava confuso com o que via. Lorenzo até que o compreendia. O anjo virou o carrinho achando que encontraria uma criança e o que encontrou foi um boneco envolto em uma das mantas de Gabriel, com um gravador digital reproduzindo o som característico de bebês colado na testa de plástico e um rádio comunicador que captou toda a conversa deles. E agora havia uma flecha que explodiu aos seus pés e quase o jogou no chão, se não fossem as enormes asas que ele bateu para manter o equilíbrio.

Outra flecha cortou o ar e desta vez acertou o anjo que esganava Lorenzo, atravessando o braço deste. O anjo ganiu de agonia e largou o caçador de pronto, que não perdeu muito tempo para ver se o outro anjo viria para cima dele, ou para recuperar o fôlego, simplesmente correu em disparada na direção do corredor de colunas à direita da entrada da praça e, do pé da terceira coluna, uma que ficava a um ângulo de duas horas da posição do obelisco, ele abriu uma parede em falso que existia em sua base e recolheu de dentro do buraco revelado uma espingarda, a qual usou para atirar no anjo que voou em sua direção.

Perto do obelisco da Praça de São Pedro, Castelo soltou um grito que Lorenzo não considerou boa coisa e por um momento insano torceu para que fosse um grito de frustração diante derrota iminente, ainda mais que caçadores pareciam estar sendo cuspidos pelas sombras, diretamente na praça, pois surgiram dos cantos mais inusitados e começaram a cercar o grupo. Porém as forças superiores nunca foram assim tão misericordiosas com Lorenzo, provavelmente porque ele parou de ter muita fé nelas há bastante tempo e ferrar com a vida dele era a forma delas se vingarem, pois grito de Castelo foi de raiva mesmo ao vê-los.

Marcelo vinha à frente de um grupo que saiu de um dos corredores de acesso ao interior do Vaticano, que ficava do lado da basílica, e era ele quem carregava o arco que usou para atirar em Castelo e salvar a pele de Lorenzo. Entretanto, assim que o grito agudo e de quebrar janelas parou, um silêncio sepulcral caiu sobre a praça por uns três segundos e então o som de dezenas de asas batendo ecoou por todo o local.

Lorenzo recuou, com a espingarda erguida e ainda apreensivo, e andou a passos lentos e com ouvidos e olhos atentos, até que chegou onde o grupo de Marcelo estava. Do outro lado da praça, ele viu que o grupo liderado por Giovane olhava para o céu negro da noite a procura de onde viria o primeiro ataque, mas o tempo nublado, as luzes queimadas da praça e a ausência de raios de luar dificultavam a visão. O som do bater de asas ficou ainda mais alto e alguém do grupo de caçadores, que estava no topo das escadarias da basílica, soltou um grito surpreso ao ser erguido de súbito do chão pelo colarinho de seu colete a prova de balas, e então o tiroteio começou.

Anjos surgiram no céu como aparições, usando o tempo nublado e as lâmpadas queimadas da praça como a camuflagem perfeita e só sendo percebidos ao pousarem com um estrondo em frente aos caçadores, afundando o chão com o impacto, os atacando, ou então quando davam rasantes de causar poderosos deslocamentos de ar e erguiam caçadores do chão, por onde conseguiam agarrá-los, e os arremessavam como bonecos de panos contra colunas e construções. 

— Mais algum de seus planos brilhantes em mente? — Marcelo perguntou quando Lorenzo se aproximou, disparando uma flecha bem na testa de um anjo que veio na direção deles. A criatura caiu em pleno voo, como um pássaro abatido.

— Não? — Lorenzo respondeu incerto, virou o cano da sua espingarda e atirou no anjo que vinha à esquerda deles. O problema foi que o filho da mãe conseguiu desviar a tempo da bala e esta acertou uma das colunas do corredor da Praça de São Pedro — Ops — murmurou quando o tiro arrancou uma lasca da coluna. Algo lhe dizia que o Papa não ficaria muito feliz com o estrago que eles estavam fazendo a um patrimônio histórico.

Guinchos de estourar cristais ribombavam pela praça e quase os ensurdeceu. Todos os caçadores encolherem os ombros até a altura das orelhas, como se isto fosse fazer alguma diferença, fosse deixá-los menos tontos e com os ouvidos zumbindo menos. Quando os anjos não estavam tentando queimar os seus adversários vivos, estavam os ensurdecendo ao estourar-lhe os tímpanos. 

— Err… Lorenzo? — Marcelo murmurou, após recuperar-se do súbito ataque às suas vias sonoras, levou a mão a aljava às suas costas e voltou com os dedos vazios. As flechas haviam acabado. Quando isto tinha acontecido, que Lorenzo não havia percebido? Mas Marcelo não perdeu tempo diante desta descoberta, apenas prendeu o arco no suporte que havia na aljava e recebeu de um caçador ao seu lado uma espingarda e meneou com a cabeça na direção da praça. 

Lorenzo desviou o olhar do irmão e mirou a razão dele ter dito o seu nome naquele tom hesitante e feito aquele gesto com a cabeça. Castelo estava a poucos metros de distância e olhava Lorenzo com o ódio característico daqueles que estavam prestes a estripar alguém a obter extremo prazer no ato. O curioso era que Lorenzo queria fazer exatamente a mesma coisa com o anjo.

— Eu cuido dele — Lorenzo disse assim que recarregou a espingarda e antes de dar um passo na direção de Castelo, Marcelo o segurou pelo braço.

— Isto daqui não é um filme Lorenzo, não vá fazer nada de estúpido — Lorenzo sorriu matreiro para o irmão.

— Quem? Eu? — e atirou em Castelo.

Obviamente que o anjo não ficou parado como um bom alvo, esperando ser atingido. Por que ele ficaria? O maldito existia somente para testar a paciência inexistente de Lorenzo. No momento em que o caçador apertou o gatilho, o filho da mãe bateu as suas gigantescas asas e o corredor de ar criado pelo gesto espalhou poeira e pedra para todos os lados e desviou a bala de seu percurso. A poeira erguida obrigou Lorenzo a desviar o rosto da direção de Castelo, para evitar corpos estranhos dentro de seus olhos, o que não foi uma ideia inteligente. Um segundo de distração foi o suficiente para baixar a sua guarda, pois assim que voltou a atenção para o primeiro-ministro, este estava na sua frente e em um gesto absurdamente rápido, o segurou pela lapela de sua jaqueta e o arremessou sobre o obelisco.

O impacto tirou o ar dos pulmões de Lorenzo, por um momento ele quase perdeu a sua arma diante do choque que tremeu o seu corpo. Ele  ouviu alguém gritar o seu nome, provavelmente Marcelo, mas estava ocupado demais em bloquear com o cano de sua espingarda as bizarras garras que surgiram na mão direita de Castelo. Elas não eram ao estilo do Wolverine, não surgiram de entre os nós dos dedos do anjo. Na verdade, escondida sob o punho da camisa de Castelo, havia uma braçadeira de couro que era presa a palma da mão do anjo com um pequeno cinto, e que suportava as garras que foram liberadas da braçadeira por algum gesto específico de Castelo que ativou o mecanismo que controlava o movimento das garras, e essas estavam causando um grande estrago na espingarda. 

Estrago do tipo: cortando o cano da espingarda como se este fosse feito de manteiga.

Do que eram feitas aquelas porcarias? Porque somente de aço inoxidável é que não era.

E sim, ele sabia que eram de aço porque estava claro que aquelas foram as garras que mataram Acqua. E se conseguiram cortar carne, músculos e ossos, o cano da espingarda de Lorenzo não suportaria por muito tempo a pressão que o anjo estava fazendo sobre este. E antes que a arma se partisse por completo e Lorenzo tivesse o mesmo destino de Acqua, ele deu um chute na barriga de Castelo. O golpe, se tivesse vindo de um humano qualquer, não teria surtido muito efeito no anjo, mas Lorenzo foi treinado para saber todos os pontos fracos e fortes do corpo de uma criatura sobrenatural, para assim acertar exatamente onde doía mais.

Castelo recuou com um grunhido e as pupilas dilatadas de puro ódio, e com uma promessa de morte refletidas nelas. Lorenzo sabiamente ignorou a ameaça silenciosa e levantou em um pulo, recuando a tempo de evitar que as garras o acertassem no rosto. As lâminas que erraram Lorenzo por milímetros, atingiram o obelisco antes as suas costas, causando outro estrago no patrimônio do Vaticano.

Lorenzo aproveitou a pequena brecha no combate, respirou fundo e olhou rapidamente ao seu redor para avaliar a quantas andava a situação deles.

A Praça de São Pedro era uma verdadeira zona de guerra. Bolas de fogo eram usadas contra balas e flechas, e um dos anjos criou um pequeno tornado que arremessou caçadores para todos os lados. Que maravilha, outro psicótico que manipulava o ar. Alguns dos caçadores levantaram segundos após o arremesso, mas outros permaneceram caídos, desacordados ou, Lorenzo sentiu um aperto no peito só de pensar, mortos.

Corpos já cobriam o chão, muitos desfigurados pelas horrendas queimaduras, algo que fez as entranhas de Lorenzo revirarem e ele segurar o vômito, sangue manchava o piso acinzentado da praça, junto com penas multicores, o que criava um contraste bizarro e estranhamente belo. Humanos e anjos misturados de uma maneira macabra, com mais anjos aparecendo no horizonte enegrecido e o número de humanos diminuindo drasticamente a cada minuto.

Putz, quantos seguidores fanáticos Castelo tinha? Porque Lorenzo duvidava que todo aquele povo estivesse ali acreditando que as ordens haviam vindo da Soberana Estrela. Anjos tinham a fama de arrogantes, não de idiotas.

Ou talvez eles acreditassem. Talvez eles realmente acreditassem que tudo isto era por uma boa causa, que era a vontade da soberana deles. Castelo era o rei dos mentirosos e se ele conseguiu passar a perna em Estrela, não deve ter sido assim tão difícil tornar verossímil as suas histórias para conseguir tamanho destacamento angelical para lutar por ele. E outra coisa importante precisava ser salientada: estava claro que, em vinte minutos de batalha, a situação não estava nada boa para o lado dos caçadores. Havia mais homens e mulheres caídos do que anjos, e o próprio Lorenzo já estava a um passo de se entregar. Castelo atacava o com uma ferocidade animalesca, sibilando e guinchando ofensas que Lorenzo podia não compreender, mas que eram refletidas no rosto torcido de fúria do primeiro-ministro, o que tornava claro o significado de cada guincho. Aquela maldita garra quase dera fim a Lorenzo por várias vezes, e uma vez chegou bem perto, mas a única coisa que conseguiu foi rasgar a jaqueta dele e causar-lhe um ferimento que sangrava e ardia em seu quadril.

— Isto não é bom — Marcelo disse ao se juntar a Lorenzo atrás de uma das colunas, na entrada da basílica, assim que o caçador conseguiu finalmente outra brecha nos ataques enfurecidos de Castelo e então correu para buscar refúgio em um dos corredores da praça. 

— Estamos perdendo homens e não estamos conseguindo nem ao menos causar um estrago que seja no número de combatentes do lado adversário — Giovane completou ao aparecer do outro lado de Lorenzo. O irmão ofegava, estava sujo de fuligem, o braço da jaqueta camuflada dele estava queimado e ele contava na palma da uma mão o quanto de munição ainda lhe restava. A resposta que obteve não era promissora. 

Carmem estava mandando reforços, mas que estavam sendo rapidamente abatidos assim que chegavam na praça. Caçadores não eram exatamente o Exército, eles poderiam trabalhar em grupo, ter treinamento militar, mas a função deles era manter e equilíbrio, não lutar em uma guerra. E eles sempre souberam que batalhar contra vários anjos ou demônios ao mesmo tempo seria sempre uma desvantagem. Eles eram criaturas absurdamente poderosas quando em bando e o poder de fogo dos caçadores era limitado. Eles não tinham exatamente bazucas e tanques para investirem em um ataque de larga escala. E a primeira coisa que um Caçador aprendia nesta vida era a de nunca tentar lutar contra um bando de demônios ou anjos. Essa seria sempre uma batalha perdida, não importa quantas pessoas estejam lutando ao seu lado.

Infelizmente, neste caso, este ensinamento teve que ser ignorado, pois não se adequava aos planos de Lorenzo. Carmem chiou como um anjo enfurecido, mas não pôde contestar muito diante da lógica do neto e, mesmo com desagradado estampado em seu rosto, ela convocou todo o clã e anunciou em alto e bom som para eles se preparem, porque iriam para a guerra. Agora Lorenzo se arrependia de sua tão maravilhosa eloquência, que convenceu a sua avó a arriscar a vida da família por causa de um plano estúpido e que, obviamente, não estava dando certo.

Talvez Peter estivesse certo, quando protestou após Lorenzo ter explicado a sua ideia. Talvez Lorenzo estivesse fazendo toda aquela loucura não para restabelecer o equilíbrio, mas sim por vingança. Vingança pela morte de Lorena mas, principalmente, pela morte de Hunter. Castelo matou alguém que era extremamente importante para Lorenzo e ele tinha que pagar por isto. 

— Você está ferido — Giovane falou ao ver Lorenzo pressionar com a palma o corte em seu quadril, mas ele ignorou o irmão. Tinham problemas maiores do que um mero ferimento em sua perna. 

— Eu admito, a minha ideia não foi tão brilhante assim — Lorenzo murmurou, sem fôlego, e gemeu quando uma explosão sacudiu a basílica por completo. Ele não sabia o que mais lhe doía: o ferimento ou o fato de que a praça estava praticamente virando ruínas. Ou que mais corpos de companheiros caíam, manchando o chão do Vaticano com o seu sangue, simplesmente porque ele era uma criatura estúpida que estava desonrando o Código por causa de uma paixonite do passado.

— Bater em retirada é uma opção — Giovane sugeriu enquanto mais caçadores corriam para trás das colunas da basílica, em busca de proteção. Sinceramente, Lorenzo não sabia que diferença isto faria, pois uma bola de fogo bem empregada podia explodir não apenas a coluna, mas os caçadores atrás dela, e anjos tinham uma visão noturna muito melhor do que a de humanos. A quase escuridão da área não estava sendo nenhuma vantagem para eles agora.

— Não, não é uma opção — Marcelo falou ofegante e foi aí que Lorenzo percebeu que os irmãos estavam tão ruins quanto ele. Giovane tinha um ralado que lhe cobria a bochecha esquerda por completo e o ombro direito estava claramente deslocado, pelo modo como pendia ao lado do corpo dele, fora do ângulo do outro ombro. Marcelo tinha um corte no lábio inferior que estava inchado, e um outro corte na testa, junto à raiz do cabelo, e que não parava de sangrar, e quando ele correu para trás da coluna, ele favoreceu mais a perna esquerda do que a direita.

— Lorenzo! — o chamado de Castelo fez um arrepio de pavor descer pela espinha de Lorenzo. — Você está perdendo este embate, mas eu tenho uma proposta a fazer: você me diz onde está a pequena aberração e eu não mato mais nenhum amigo seu — um ‘crack’ seguido de um grito de pura agonia, um grito humano, completou a declaração de Castelo e Lorenzo queria muito usar aquelas garras de aço inox e cravá-las na jugular do anjo.

Lorenzo, Marcelo e Giovane entreolharam-se após ouvirem a proposta absurda. Óbvio que jamais entregariam um bebê inocente nas mãos de um anjo psicótico e mesmo que os escrúpulos deles tivessem fugido por causa do desespero, Lorenzo ao menos esperava que há esta hora, com Carmem ciente de que os seus homens estavam perdendo, tivesse mandado Peter e Gabriel para bem longe, com novas identidades fornecidas por Alessandro e de preferência com a intenção não apenas de deixar o país, mas o continente por completo, o que lhe tiraria qualquer tentação de fazer uma besteira.

— Quem acha que vamos morrer levanta a mão — Giovane falou e o seu tom poderia ser de piada, mas a expressão dele era mortalmente séria.

Lorenzo quis rir. Da última vez em que ele esteve em uma situação onde a sua vida estava em risco, encurralado por um wendigo que queria, literalmente, comer o seu fígado, Hunter havia aparecido e salvado o dia. Mas Hunter não apareceu ali naquele momento, Hunter nunca mais apareceria porque a janela de vinte e quatro horas já havia passado e ele não deu sinal de vida, o que significava que ele estava morto. Morto por causa de Castelo.

O sangue de Lorenzo correu com tanta força em suas veias ao lembrar-se disto que ele ouviu o latejar do próprio coração ecoando em suas orelhas.

— Lorenzo? Eu não estou gostando dessa cara. É a cara que diz que você está prestes a fazer uma enorme merda — Giovane comentou e Lorenzo lançou um olhar atravessado para o irmão, para depois voltar-se para Marcelo, que tocou o seu braço, chamando a sua atenção.

— Não temos mais como lutar, Lorenzo. A nossa munição está acabando e os nossos homens também. Eu mandei uma mensagem para Carmem, avisando para não mandar mais ninguém. A nossa prioridade agora é recolher os feridos e sairmos daqui o mais rápido possível.

Os feridos em si eram os caçadores que se amontoavam atrás das colunas, e era um número considerável. Agora, se houvesse também gente machucada entre os caídos ao longo da praça, infelizmente esses teriam que aguentar mais pouco antes de serem resgatados, porque não havia como eles passarem pelos anjos naquele momento, para salvá-los. E os anjos fechando a entrada da praça dava a eles apenas uma única rota de fuga:

Por dentro do Vaticano.

— Lorenzo! — A voz do primeiro-ministro ecoou por toda a praça — Apenas não ataquei por caridade, mas a minha paciência está se esgotando — Lorenzo realmente queria dar um tiro nas fuças de Castelo, porque a voz dele estava começando a irritá-lo. O anjo por inteiro estava dando nos nervos do caçador.

— Bombas de fumaça? — Lorenzo perguntou aos irmãos. Bombas de fumaça não teriam um efeito prolongado nos anjos, pois eles tinham asas para dispersar a fumaça e Castelo era um elemental do ar, mas ao menos lhes daria tempo para bater em retirada. Ao menos Lorenzo esperava que isto acontecesse — Vocês ajudam os outros, eu mantenho os anjos distraídos quando a fumaça dispersar.

— Epa, epa! — Giovane protestou — Não vamos deixar você para trás como boi de piranha — Lorenzo olhou para Marcelo, para ver se ele concordava com o protesto de Giovane. Marcelo herdaria a liderança do clã quando Carmem assim ditasse, ou morresse, e em uma caçada, quando ele estava presente, a palavra dele era a final. Se Marcelo discordasse da ideia de Lorenzo, não haveria nada que Lorenzo pudesse fazer a não ser correr o mais rápido que pudesse, para poder escapar dos anjos.

Mas tudo o que Marcelo fez foi gesticular com os dedos e as mãos para o grupo na pilastra ao lado. Libras sempre foi uma linguagem obrigatória no treinamento dos caçadores e ajudava muito quando eles não podiam vocalizar o que queriam, para não deixar a caça ciente de seus planos.

Michelangelo, o caçador à frente do outro grupo, apenas arqueou uma sobrancelha para Marcelo e deslizou uma espingarda pelo espaço entre eles. A espingarda parou de escorregar na coxa de Marcelo, que a pegou e a entregou para Lorenzo.

— Você não pode estar falando sério — Giovane sibilou para o irmão e era por isso que ele nunca liderava uma equipe, ele tinha problemas de desapego. Não que Marcelo estivesse feliz em deixar um irmão para trás, os caçadores também adotaram o lema das forças armadas de ‘nunca deixar um companheiro para trás’, porém, infelizmente, havia casos em que o companheiro precisava ser deixado para trás e esperar pelo resgate mais tarde. Caçadores também eram treinados para sobreviverem o tempo necessário para o socorro chegar, mas Giovane simplesmente não podia admitir isto, concordar com aquela loucura, porque o companheiro prestes a ser abandonado seria um dos irmãos.

E foi por isso que quando os Torres pediram há três anos auxílio dos Cipriani em uma caçada, Marcelo despachou Giovane para a Espanha. A superproteção do homem estava começando a afetar o trabalho em grupo do clã, porque ele sempre era o primeiro a questionar quando Lorenzo ou Marcelo precisavam ir sozinhos em uma caçada.

Todos os irmãos Cipriani eram altamente competentes para fazerem o trabalho aos quais foram designados e não precisavam de babá. Especialmente uma babá na forma do intempestivo Giovane Cipriani. 

— Pronto? — Marcelo perguntou para Lorenzo enquanto tirava duas granadas de fumaça de dentro de um dos vários bolsos da sua calça. Na outra pilastra, Michelangelo e mais dois outros caçadores fizeram o mesmo.

— Pronto — Lorenzo engatilhou a espingarda e Marcelo acenou com a cabeça para Michelangelo. Em um movimento sincronizado, eles tiraram os pinos das granadas e as arremessaram na direção dos anjos. Lorenzo levantou ao mesmo tempo em que Giovane ajudou Marcelo a levantar, o apoiando sobre o ombro bom, e o arrastou na direção do outro grupo que já corria para dentro do Museu do Vaticano.

Os anjos guincharam quando a fumaça branca se espalhou pela praça após a explosão das granadas e as asas começaram a ser batidas. Lorenzo contou até dez de trás para frente e quando o último caçador sumiu museu adentro, ele saiu de trás da pilastra, já atirando. Um tiro acertou uma asa de tons azulados, emitindo um som satisfatório de bala cravando-se em carne e osso. A fumaça ao seu redor começava a girar e ele sabia que isto era obra de Castelo. Mais um tiro acertou uma asa arroxeada a sua esquerda e então um sopro de vento poderoso quase o derrubou. No segundo seguinte, a fumaça foi varrida da praça, desobstruindo a visão de todos. 

Dois anjos socorriam um anjo de asa azul e com tons arroxeados no topo, o que significava que Lorenzo acertou o mesmo anjo duas vezes. Bom. O tiro que pegou no corpo de alguém foi em um anjo de asas marrom e que tinha a mão na barriga e estava manchada  de sangue. Castelo estava à frente do grupo e a fumaça terminava de desaparecer aos seus pés, como poeira varrida para o ar por uma vassoura, e ele não estava muito feliz, se a careta que ele fazia fosse alguma indicação.

— Ousado, mas estúpido — Castelo sorriu maldoso diante do próprio comentário. E, sinceramente? Lorenzo não precisava das palavras dele atestando o óbvio. O coração que ele sentia estar na boca e o suor descendo pela sua espinha era indicação o suficiente para o fato de que ele sabia que estava ferrado. E sabia que iria morrer. Lorenzo estava sozinho e havia, além de Castelo, pelo menos uns dez anjos ainda com todo o gás para mais um novo round.

Castelo deu um passo à frente e Lorenzo reprimiu o instinto de recuar. Não demonstraria medo para aquele idiota e se fosse para morrer, morreria com a honra digna de um Cipriani. Por isso, ao invés de se abalar com a postura ameaçadora do anjo, tudo o que Lorenzo fez foi erguer mais a sua arma, na altura dos olhos, afastar as pernas para obter um maior centro de equilíbrio, e então atirar.

Surpreendentemente, Castelo não desviou-se do tiro, ao invés disso permitiu que a bala enterrasse em seu ombro como se ele quisesse provar alguma coisa. E talvez tenha conseguido quando o ferimento fechou segundos depois. O coração de Lorenzo deu mais um pulo no peito, na última meia hora ele batia de forma tão descompassada que ou ele teria uma parada cardíaca, ou o órgão realmente sair pela sua boca e fugir quicando pelo chão da praça. Os anjos tinham um rápido poder de cura, mas aquilo dali era surreal demais até mesmo para eles.

— Surpreso? Quando um anjo mata outro anjo, podemos absorver as suas virtudes. Poder de cura mais acelerado, maior velocidade. E, é claro, o seu elemento — uma bola de fogo surgiu na palma da mão de Castelo e Lorenzo arregalou os olhos. Estava completamente ferrado, ainda mais quando a bola de fogo foi crescendo, crescendo e crescendo a ponto de ficar do tamanho de uma bola de praia.

Lorenzo suspirou e abaixou a sua espingarda, o que fez Castelo sorrir de maneira macabra.

— Pensei que Cipriani fossem guerreiros — o anjo disse com deboche e Lorenzo somente sorriu de canto de boca para ele.

— E somos. Mas também sabemos admitir a derrota. Coisa que, sinceramente, você não sabe — Lorenzo falou com deboche e o primeiro-ministro franziu os lábios, exibindo caninos salientes, sibilou e ergueu a mão com a enorme bola de fogo, preparando-se para arremessá-la. Lorenzo não se mexeu, não piscou, nada fez, apenas esperou.

E então, quando Castelo moveu o braço para lançar a bola, ele parou no meio do movimento. Tal hesitação poderia ser porque Castelo ficou com medo diante da impassividade de Lorenzo, poderia ser porque ele mudou de ideia, mas Lorenzo tinha a certeza que foi mais por causa da ponta de lança que havia surgido bem no meio do peito dele.

 

oOo

 

A BOLA DE FOGO SUMIU da mão de Castelo como se ele tivesse mergulhado o braço em um barril de água. O anjo tropeçou para frente, com a lança ainda em seu peito e cambaleante, deu as costas para Lorenzo, para mirar o seu atacante.

A Soberana Estrela pairava alguns metros acima deles, e em toda a sua glória, vestida de preto dos pés a cabeça com um peitoral, ombreiras e braçadeiras de prata tão polidas que essas emitiam uma luz própria, era a própria imagem do anjo vingador. Estrela lembrava Lorenzo de Angelina. Uma mulher de meia idade, mas em plena forma, com o olhar de uma pessoa que viu muitas coisas neste mundo, boas e ruins. O seu cabelo loiro estava preso em um intricado de tranças que desciam por sobre o seu ombro direito, e os olhos dela eram negros, absurdamente negros, e os seus lábios vermelhos estavam comprimidos em uma fina linha.

Atrás dela havia ao menos umas duas dúzias de anjos que Castelo nem ao menos percebeu a aproximação, porque estava ocupado demais em se gabar. O destacamento que acompanhava Estrela rendeu sob a ponta de suas lanças, espadas e flechas os seguidores do primeiro-ministro, que demonstraram a sua rendição ao encolherem as suas asas às costas, ajoelharam-se no chão e abaixaram as cabeças em um gesto de subserviência a sua soberana.

— Minha senhora — Castelo disse em um tom verdadeiramente chocado. Era como se ele não conseguisse acreditar que a sua soberana pudesse tê-lo atacado daquela maneira.

— Segurem ele — Estrela ordenou em um tom gélido e para ninguém em particular, mas dois anjos se destacaram do grupo que cercava os anjos ajoelhados e foram um para cada lado do primeiro-ministro, o segurando pelos braços e ombros. Estrela deu um passo à frente, depois outro, e mais outro, até chegar perto o suficiente de Castelo para espalmar uma mão no peito dele e com a outra mão puxar a lança até essa deixar o corpo do anjo.

Castelo berrou de dor e debateu-se contra os outros anjos, mas não foi solto. Estrela largou a lança ensanguentada no chão e se afastou. O ferimento no peito de Castelo não fechou-se de pronto, como aconteceu com o tiro que Lorenzo lhe deu, e talvez isto não aconteceu porque a lança que Estrela tinha cravado nele era de puro cobre.

— Eu recebi a sua mensagem Caçador Cipriani. Ambas — e nisto Estrela tirou do bolso da calça o celular, o qual ela manuseou por pouco tempo antes de virá-lo na direção de Castelo, e a voz do anjo ecoou como um berro pela praça.

O áudio era uma confissão clara, captada pelo falso bebê Gabriel, de Castelo sobre a morte de Acqua. Sobre como ele esteve por detrás do assassinato quando descobriu sobre a gravidez dela.

Porque este foi o plano o tempo todo.

Alessandro, em toda a sua genialidade, conseguiu uma ligação direta com o celular de Estrela e transmitiu para ela toda a conversa entre Castelo e Lorenzo. Certo que, por algum tempo, Lorenzo achou que tudo tinha ido por água abaixo, que a conexão não havia sido feita mas, pelo comunicador que permaneceu o tempo todo escondido na orelha de Lorenzo, Alessandro lhe garantiu que o plano estava correndo conforme o cronograma.

O pontapé inicial havia sido a foto de Gabriel que Lorenzo mandou, o que chamou a atenção de Estrela e a fez concordar com o encontro. A confissão gravada era apenas para fortalecer os argumentos dos Cipriani contra Castelo, caso este conseguisse, de alguma maneira, convencer Estrela do contrário e voltá-la contra eles. O momento em que Lorenzo percebeu que eles estavam ferrados foi quando o tempo foi passando e Estrela não apareceu conforme o esperado, e então Marcelo teve que dar a ordem de retirada porque eles estavam perdendo feio aquela briga. 

— Eu sabia que havia algo de errado. O modo como Acqua agiu na sua presença nos últimos meses. Ela sempre te respeitou, você era família para ela e então, quando estavam juntos, eu via apenas medo. Achei que era apreensão porque ela estava chegando na idade de escolher um interligado, mas não sabia que era porque você a ameaçou de morte.

— Senhora, tente entender. Essa criança é uma aberração…

— A profecia foi clara! — Estrela interrompeu os lamúrios de Castelo com ferocidade. O rosnar dela causou tremores ao longo da praça, o que mostrou que a soberana era na verdade uma elemental da terra. Provavelmente a elemental da terra que abriu caminho para as tropas angelicais invadirem o subterrâneo.  

— A profecia foi feita por um humano! — Castelo disse com puro nojo e, sinceramente, Lorenzo não achava que ele estivesse em posição de criticar humanos depois de todas as cagadas que fez.

— Nostradamus foi um médium respeitado e nenhuma de suas profecias foi mentirosa — Nostradamus? E Lorenzo achando que nada mais poderia surpreendê-lo — E você matou a minha filha por simples desprezo?

— Demônios são monstros, bestas selvagens, não merecem a nossa compaixão ou nossa aliança! — Estrela aproximou-se de Castelo mais uma vez e segurou no queixo dele, o apertando com tanta força que com certeza  deixaria marcas.

— Depois de tudo o que você fez, Castelo, talvez devesse se perguntar quem é o verdadeiro monstro aqui — aquilo foi um tapa na cara e um soco na boca do estômago. E, observando a interação de ambos, foi que Lorenzo finalmente compreendeu as ações de Castelo. Compreendia, sim, mas não as aceitava.

Castelo não era um fanático preconceituoso. Ele era um fanático preconceituoso e absurdamente leal a Estrela e ao seu povo, e fez o que fez achando que seria o melhor para os anjos, para Estrela. Ele achou que depois que o mal estivesse expurgado, a traidora morta e o bebê eliminado, ele conseguiria convencer Estrela de suas razões a ponto dela aprovar a sua atitude e parabenizá-lo por isto. O medo dele, na verdade, era que se Estrela seguisse com a profecia, ela estaria colocando-se em uma posição de risco desnecessária. Castelo era um anjo tolo, fiel, apaixonado e completamente desregulado das ideias, e Estrela não parecia o tipo de anjo que precisava de alguém para proteger a sua frágil delicadeza feminina.

A soberana cravou uma lança no peito de seu primeiro-ministro sem nenhum remorso, então Lorenzo tinha a certeza de que ela conseguiria lidar muito bem com alguns demônios.

Estrela se afastou e deu um suspiro cansado.

— Levem-no — e com a ordem de sua soberana, os anjos que seguravam Castelo bateram as asas e desapareceram com o primeiro-ministro entre as nuvens.

— O que a senhora vai fazer com ele? — Lorenzo perguntou.

— Castelo será punido conforme dita as nossas leis — Estrela esclareceu, porém Lorenzo não estava muito satisfeito com essa ideia.

— Ele matou companheiros meus, pelo Código eu tenho direito de… — Estrela sorriu de maneira carinhosa para Lorenzo, um sorriso que o surpreendeu tanto que ele se calou.

— Eu sei, mas o meu direito de vingança prevalece sobre o seu, pois ele matou a minha Acqua primeiro — bem, Lorenzo não tinha como contra argumentar. Estrela tinha razão — Não se preocupe, os crimes dele contra os seus amigos serão julgados também. Agora eu preciso ir. Tenho acordos para selar e tenho a certeza de que o regente Elias não estará de muito bom humor para ouvi-los.

— Bem senhora, se um bando de anjos invadissem a minha casa e declarassem guerra sem nem ao menos me dizer o motivo, e depois mudassem de ideia e começassem a pedir acordos de paz e aliança, eu também não estaria muito a fim de ouvir qualquer proposta que fosse — Estrela riu e Lorenzo mais uma vez ficou surpreso. Ele nem sabia que anjos conheciam o conceito de risadas, ou compreendiam sarcasmo.

— Você é realmente uma graça — ela deu tapinhas afetuosos na bochecha esquerda de Lorenzo — E Peter prometeu me ajudar — Estrela deu uma piscadela para Lorenzo, que grunhiu. Peter deveria estar longe há esta hora, não confabulando com Estrela sobre futuras negociações. Então foi por isso que ela demorou tanto para aparecer? Estava ocupada demais conhecendo o genro demônio que nem sabia que tinha?

O som de motores e a luz de faróis fez Lorenzo desviar os olhos do rosto de Estrela, para ver por sobre o ombro dela as picapes e vans carregadas de caçadores chegarem nos limites da Praça de São Pedro.

— Lorenzo! — Carmem desceu da picape mais próxima e aproximou-se com a postura de alguém que ou estava prestes a dar um soco em Lorenzo, ou abraçá-lo. Mas no máximo o que ela fez foi dar um suspiro exasperado e um tapa na nuca dele — Não temos plantação de dinheiro, garoto! — Lorenzo fez uma careta dolorida diante da agressão e do sermão. Entendia do que a avó falava. Eles praticamente devastaram a praça e os Cipriani simplesmente não iriam fugir da responsabilidade de ajudar na restauração desta, fosse com dinheiro, ou com homens.

— Acho que eu posso ceder alguns elementais da terra para ajudar — Estrela falou após dar uma olhada ao seu redor. Elementais da terra conseguiam não apenas abrir buracos no chão, mas manipular e criar tudo aquilo que fosse a base de terra, e isto incluía blocos de pedra, mármore, cimento, e o que mais fosse necessário para ajudar na reconstrução da Praça de São Pedro.

— Soberana Estrela — Carmem fez uma pequena reverência na direção da soberana, o que era um marco na história porque Carmem Cipriani não se curvava a ninguém e soberana Estrela deveria saber disto, porque ela também fez uma reverência para a caçadora como resposta.

— Eu estou em débito com os Cipriani, portanto, o que precisarem, basta me informar — e com isto ela se virou e foi na direção dos anjos que sobraram na praça, pois os outros já tinham carregado os prisioneiros para longe, sem nem ao menos Lorenzo perceber.

Com um último aceno de despedida, Estrela partiu com um bater de suas enormes asas em tom de dourado e mel, desaparecendo segundos depois no horizonte, junto com os outros anjos.

— LORENZO! — o grito de Giovane foi o único aviso que teve e como Lorenzo estava cansado demais para desviar do ataque, o soco o acertou diretamente no queixo e ele caiu de bunda no chão. Giovane, de pé na frente de Lorenzo e com o punho ainda erguido, piscou repetidamente, genuinamente surpreso por ter conseguido bater no irmão.

Lorenzo olhou de Giovane, com uma expressão abobalhada, para Carmem, que rolava os olhos diante das atitudes infantis dos netos, e gargalhou antes de dizer:

— Eu também te amo, seu idiota.


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