Behind the Story escrita por MrsViola


Capítulo 3
Capítulo III – Lumus


Notas iniciais do capítulo

No gif do capítulo: Helga Hufflepuff.



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“They all need something to hold on

They all mean well

Pay your respects to society giving me hell

You could never feel my story

It’s all you know”

Scotland, The Lumineers 

[Região do atual Condado de Norfolk, Inglaterra, 995 D.C.]

 

Naquela época, eu não era ninguém.

A constatação desse simples fato fez com que eu despertasse. Ajeitei meu corpo magro sob o pesado manto de lã de uma forma que conseguisse cobrir a maior área possível. Com o sono em dia, a sede saciada e a barriga cheia, era bem mais fácil refletir sobre o que eu estava fazendo, o que tornava muito mais difícil fazê-lo. Encarei a morena de meia idade bem-vestida ao meu lado na confortável carruagem, a mesma que, há poucas horas, havia me oferecido uma casa e mais conforto do que já imaginara ter na vida. O que era muito bom, em minha opinião.

Bom demais para ser verdade.

Desde pequena, sempre acreditei que as pessoas eram naturalmente boas e que a corrupção do espírito era uma escolha própria, mas depois do assassinato repentino de meus pais, o mundo havia perdido sua bondade espontânea. Por isso, não fazia sentido que aquela bela e rica senhora estivesse prestes a abrigar em seu próprio lar ninguém mais ninguém menos do que eu. Uma ninguém.

— Já faz algum tempo que não olha nada além de mim, querida. — comentou a mulher, surpreendendo-me. — Em que está pensando?

— Por que a senhora está fazendo isso? — perguntei, desviando o olhar da mulher para meu próprio colo.

— Porque você é uma menina especial. — disse a mulher, abrindo um sorriso sincero e fazendo com que eu me lembrasse de minha mãe. — Tão especial quanto minha família e eu somos.

— O que a senhora quer dizer com isso? — perguntei cautelosamente.

— Quero dizer que estava praticamente desacordada naquele rio. Se não fosse uma menina especial, já teria morrido afogada há muito tempo. — comentou a senhora, inclinando-se para perto de meu rosto e, em um sussurro, acrescentou: — Você é uma bruxa, querida.

— Como a senhora... — Ia perguntar como ela sabia, mas lembrei do último conselho de minha mãe. Naqueles tempos de perseguição, fazer esse tipo de pergunta era como pedir para ser jogada na fogueira, então, juntando todas as minhas escassas habilidades teatrais, completei: — ... Ousa me acusar dessa forma?

— Não estou acusando, estou apenas comentando. — disse a senhora. — Pode confiar em mim, lhe dou minha palavra.

— Por que eu deveria confiar na senhora? — perguntei, cruzando os braços de forma defensiva.

— Porque eu sou sua melhor opção. — disse, simplesmente. — Eu posso ajudá-la. Posso ensinar a controlar seus poderes, apresentar outras pessoas como nós e, até mesmo, te arranjar uma varinha. Mas caso não esteja interessada em confiar em mim, não é obrigada a vir comigo, neste exato momento estamos passando em frente à Igreja de Norfolk, caso prefira assim, tem liberdade para sair da carruagem.

Prendi um suspiro assustado diante da ameaça implícita na segunda opção.

— Meu nome é Helga Hufflepuff.

— Ah, eu imaginava que sim, querida. — Cewyn abriu um sorriso afável. — É tão parecida com sua mãe.

Permaneci em silêncio pelo resto do caminho até o imenso castelo de pedra escura dos Slytherin. Até mesmo enquanto ela me guiou pelos corredores até o meu mais novo quarto, eu continuei calada. Quando ela perguntou o que eu achava de um banho, eu apenas confirmei com a cabeça, ainda sem emitir nenhum som. Apenas quando já estava imersa na água quente, tendo as costas esfregadas por Cewyn com uma esponja áspera, ousei falar algo:

— A senhora conhecia minha mãe?

— Lorelay e eu crescemos juntas, mas não é prudente que bruxos permaneçam próximos por muito tempo. Isso, eventualmente, culmina em tragédias — disse Cewyn calmamente — Quando nos casamos, vim para cá e ela se mudou para as planícies.

— Ah... — De repente, senti-me boba ao pensar que não havia possibilidade de minha mãe pertencer à outro lugar, senão às planícies. Depois de mais algum tempo em silêncio, prossegui: — Quando a senhora disse que poderia me ensinar mais sobre ser assim...?

— Eu estava falando sério. — ela disse, deixando a esponja de lado e passando a esfregar meus cabelos cautelosamente. — Sua mãe era como uma irmã para mim, Helga. Separar-me dela foi... Doloroso. No fim das contas, todos nos tornamos fugitivos. Ninguém deveria ser obrigado a viver distante de um amigo por medo de morrer.

— Mas não há outra forma de viver. — murmurei, recordando-me da violência com a qual minha mãe havia sido levada amarrada de nossa casa e de como meu pai havia sido friamente executado após me esconder e tentar defendê-la. “Amante das bruxas” foi como o chamaram.

— No fundo do meu coração, desejo que haja — disse Cewyn. — A magia é linda e espero que, um dia, possa ser praticada e estudada da forma correta: livremente.

Mais uma vez, eu tinha pesadelos.

Era sempre o mesmo momento violento e doloroso que se repetia várias e várias vezes em minha mente. Lá estava eu, sendo arrastada para um lugar escondido de nossa casa enquanto os guardas tentavam arrombar a entrada de nossa casa. Quis gritar com meu pai para soltar o meu pulso, quis gritar com meu pai para me deixar ajudar, mas era como se eu estivesse muda. Ele estava prestes a bater a porta do pequeno esconderijo improvisado quando hesitou por um segundo, abrindo a boca para falar algo.

Eu sabia o que era. Pela quantidade de vezes em que ele disse aquelas mesmas palavras em meus sonhos, era quase impossível de esquecer. “Não importa o que acontecer, permaneça aqui. Permaneça quieta”.

Quis interrompê-lo, quis desobedecê-lo. Mas mais uma vez, as palavras ficaram presas na garganta, então fui obrigada a esperar que ele encerrasse mais uma vez o que se tornaria, em poucos momentos, nossa última conversa.

Mas, para minha surpresa, o que saiu foi algo completamente diferente:

— Lumus.

O sentimento de confusão ameaçou tomar conta de mim, mas antes que isso fosse possível uma claridade repentina fez com que eu despertasse de meu sonho assustada. No início, só consegui enxergar um clarão prateado, mas aos poucos minha visão se acostumou com a situação e distingui duas pessoas. Dois rapazes, sendo mais específica.

Tinham quase a mesma altura e pareciam ser pouco mais velhos do que eu, mas a semelhança parava por aí. O da esquerda era tão parecido com Cewyn que presumi que fosse seu filho: tinha a mesma postura elegante, a mesma pele pálida, o mesmo cabelo castanho escorrido e o mesmo semblante persuasivo. Já o da direita, tinha cabelos cor de fogo e uma aparência forte e intimidadora, apesar dos gentis olhos claros.

— Deve ser a Helga, certo? — perguntou o moreno. — Não se preocupe, sou Salazar, filho de Cewyn, aquele é Sir Godric.

— Parece jovem demais para ser cavaleiro. — constatei, cruzando meus braços.

— E sou — disse Godric abrindo um sorriso confiante. — Mas também sou o melhor guerreiro da Inglaterra.

— Percebe-se que também é o dono do coração mais humilde. — Ironizei, arrancando uma gargalhada inesperada de Salazar.

— As gêmeas irão amá-la. — comentou Salazar e Godric confirmou com um aceno de cabeça.

— O que estão fazendo aqui? — perguntei de uma vez por todas.

— Nós viemos te buscar, oras. — respondeu Godric.

— Buscar para que?!

— Para sua festa de boas vindas.

Nunca havia tido uma festa de boas vindas, mas duvidava seriamente que houvesse alguma forma de superar aquilo. Basicamente, o objetivo da festa era me introduzir a minha nova vida daquele dia em diante e eu estava amando cada segundo daquilo.

— Expelliarmus! — gritou Jocelyn, fazendo com que a varinha de Cassandra, sua irmã (que, apesar de gêmea, não era idêntica), voasse para longe de sua mão e findando o duelo, finalmente.

— Acho que está melhorando nisso, Jo — riu Cassandra, tirando a franja escura de cima dos olhos com um sopro.

— Também acho. Revanche, Cassie? — perguntou Jocelyn. Percebi que, apesar do tom brincalhão, seus olhos azuis tinham um brilho orgulhoso. Assim que Cassandra negou, ela se dirigiu ao resto de nós: — Quem vai ser o próximo corajoso a tentar a sorte?

— Eu vou! — exclamou Godric, sacando a varinha de seu bolso e tomando o lugar de Cassandra, frente a frente com Jocelyn. — Já pode começar a se preparar para a derrota.

— Veremos!

Eles fizeram a contagem que sempre era feita antes de um duelo e começaram. Com a visão periférica, vi que Cassandra havia pegado uma garrafa de bebida para si e tomado o lugar de Godric, se jogando na grande poltrona vermelha junto com Salazar e Benjamin, um menino franzino de cabelo curto e escuro que estava grudado em Salazar desde que este pusera o pé na sala.

Eles riam e conversavam sobre algo do qual eu não entendia e, no momento, nem me importava muito. Estava hipnotizada pela dança de cores provocada pelos feitiços que Godric e Jocelyn lançavam um contra o outro.

— Vejo que está gostando. — ouvi alguém dizer.

Ao olhar, percebi que estivera tão ocupada observando que mal notara a aproximação repentina. Aquela mulher, provavelmente, havia acabado de chegar, uma vez que não reparara nela até o momento e ela não fazia o tipo que passava despercebida. Ela tinha grandes olhos azul-escuros, um longo cabelo preto como o carvão e era tão intimidadoramente bonita que senti vontade de arrumar meus cabelos ou colocar um vestido mais elegante.

— Com toda a certeza — respondi com entusiasmo. — É tão inacreditável, nunca se sabe quem vai ganhar.

— Sempre dá para ter um palpite. Em quem apostaria? — perguntou, passando a observar o duelo.

— Jocelyn ganhou de todos até agora, ela é muito boa — disse, observando-a bloquear um feitiço em sua direção por pouco. — Em quem você apostaria?

— Jo é ótima e com certeza vai ser uma boa adversária, mas ninguém duela melhor que Godric. Ele tem um dom. — afirmou e parecia tão certa daquela resposta que nem ousei questionar.

Dito e feito. Poucos segundos depois, Godric aproveitara-se de uma brecha e finalizara a luta, arremessando Jocelyn para o outro lado da sala. Talvez por orgulho ferido, negou a ajuda oferecida e levantou-se sozinha do chão. Godric pareceu achar aquilo engraçado e seguiu-a com o olhar enquanto esta caminhava até onde a irmã estava. No meio do caminho, os olhos de Godric fixaram-se em minha direção. Ou, como pude perceber logo em seguida, quase na minha direção.

— Rowena, bom vê-la por aqui. — disse, aproximando-se rapidamente. — Pensamos que não viria.

 Salazar, que outrora estivera completamente entretido com Cassandra, endireitou-se ao ouvir o nome.

— Eu não viria, culpe minha curiosidade pela minha presença — respondeu, abrindo um sorriso educado.

Godric abriu a boca para dar uma resposta, mas foi a voz de Salazar que escutei:

— Estamos felizes por ter mudado de ideia.

Muito tempo depois, ao olhar de volta para esse momento através da penseira, percebi que era ali que eu deveria ter interferido. Deveria ter pulado entre eles e os impedido de trocar aqueles olhares hostis, deveria ter lhes lembrado de que eram melhores amigos, de que tamanha rivalidade não valeria a pena. Mas eu não tinha como saber dessas coisas naquela época, apenas esperei que Godric se distanciasse e eu novamente pudesse ter atenção de Rowena.

— Por que você fala estranho?

Para minha surpresa, ela riu.

— Falo estranho, porque não nasci nessas terras. Sou saxã. — respondeu.

— E por que está tão longe de casa?

— Pelo mesmo motivo que todos os outros aqui. — disse — Bom, talvez mais como você. As gêmeas e Ben cresceram nessas terras e Godric ainda era um bebê quando Cewyn o trouxe. Ainda assim, devo minha vida a ela.

— Todos devemos — replicou Cassandra, deixando sua garrafa de lado e vindo até onde eu estava. — Seu cabelo é tão bonito. Deve ficar maravilhoso em uma trança. O que acha, Helga?

— Não sei como se faz trança.

— Isso não é problema, nós te ensinamos. — Cassie piscou para mim — Jo, venha cá. Meninos, será que poderiam ser um amor e nos arranjar flores?

— Que tipo de flor? — perguntou Benjamin, como se já estivesse acostumado àquele tipo de pedido.

— Tulipas, orquídeas, margaridas... O que tiver de bonito. Andem logo!

Enquanto (para minha surpresa) os meninos saiam do cômodo em busca de flores, Cassandra correu os dedos de forma experiente pelo meu cabelo, desfazendo os nós que haviam se formado. Jocelyn, que havia sentado junto aos meus pés, estendeu-me uma das garrafas que eles haviam bebido a noite toda. Pensei em dizer-lhe que minha mãe me proibia de beber, alegando que eu era muito jovem, mas ela não me deu chances.

— Prometo que isso não vai te deixar bêbada, só alegre. Chamamos de cerveja amanteigada, mas não tem álcool nenhum. É maravilhoso. Eu sei, fui eu que fiz. — disse Jocelyn, incentivando-me a pegar a garrafa mais uma vez.

Rendi-me e tomei um gole. O sabor explodiu dentro de minha boca em pequenas bolhinhas. Ela estava certa, era maravilhoso. Doce, sem ser enjoativo. Senti que poderia tomar aquilo durante um dia inteiro sem me cansar.

— É a melhor coisa que já experimentei na vida! — exclamei e ela abriu-me um sorriso agradecido. — Como conseguiu criar isso?

— Trabalhamos no castelo para despistar os trouxas, que é como chamamos o pessoal não-bruxo. A caladona ali, — ela apontou para Rowena, que fez uma careta. — Trabalha na biblioteca do castelo organizando, fazendo inventário, esse tipo de coisa chata que só ela gosta de fazer. Godric, como já deve saber, está no exército; quando Ben tiver idade, deve ir pra lá também. Se quer minha opinião, vai acabar se tornando escudeiro de Salazar. Cassie é a dama de companhia de Cewyn, costura seus vestidos, faz seus penteados. Como o trabalho mais legal sempre fica com a pessoa mais legal, eu cozinho e crio as melhores receitas de todos os tempos. Suco de abóbora, whisky de fogo, empadão de fígado...

— É muita coisa, eu não conseguiria lembrar de tudo

— Ah, querida, eu não me lembro de tudo; eu anoto em um livrinho e o escondo, assim só eu tenho acesso. — Jocelyn disse.

— Tudo bem, Jo, chega de monólogo por hoje. Agora, Helga, pode, por favor, parar de balançar sua cabeça? — reclamou Cassie.

— Por Merlin, o céu está quase clareando, precisamos ir! Temos que ajudar Cewyn logo pela manhã. — exclamou Cassandra, puxando sua irmã pela mão porta a fora, após uma rápida despedida.

Não notei que a hora havia passado tão rápido. Após meus cabelos estarem presos em uma longa trança e repletos de pequenas flores azuis espalhadas, havíamos permanecido acordadas por muito tempo. Sentia-me mais viva do que jamais estive e isso tinha pouco a ver com as quatro garrafas de cerveja amanteigadas. Elas eram sensacionais. Jocelyn e sua excentricidade, Cassandra e sua doçura, Rowena e sua acidez. Eram as irmãs mais velhas que eu sempre quis.

Após a partida das gêmeas, decidimos que não estávamos com vontade de voltar para os quartos e permanecemos ali. Em um gesto de cavalheirismo, os meninos permitiram que Rowena e eu dividíssemos a poltrona larga e vermelha, enquanto eles ocupavam as menores. Aconcheguei-me contra Rowena, da mesma forma que fazia quando era mais nova com minha mãe e me senti feliz por ter uma parte daquilo de volta, pelo menos por uma noite.

— Quando chegou aqui, também tinha pesadelos? — perguntei hesitante.

— Sonha com a morte dos seus pais? — ela questionou, apenas confirmei com a cabeça. — A parte mais fascinante do ser humano é sua capacidade de regeneração. Nós nos reconstruímos, Helga, mesmo que aos pouquinhos. Isso é o que nos torna quem somos. Nunca vai parar de doer completamente, mas vai passar. Sempre passa.

Após isso, não sei ao certo o que aconteceu. Só sei que, em algum momento, adormeci e que, naquele dia, não tive pesadelos. Foi um sono limpo e renovador. Naquela noite de felicidade e recomeços, ninguém poderia imaginar que a tese de Rowena logo seria posta à prova.

 

 


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Notas finais do capítulo

Para os que chegaram até aqui: olá, você! Tudo bem?
Esse é o último capítulo da parte introdutória da história, agora o desenvolvimento realmente começa (tanto da Nova Geração, quanto dos fundadores). Deixem um review contando o que acharam!
Beijinhos, até o próximo capítulo :*