Humbug escrita por Suco de Fruta


Capítulo 2
Incidente




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Eu só queria não ser aquela romântica inconvertível que eu era. Pedir desculpas com uma música? No que eu estava pensando? Eu deveria simplesmente ter enviado uma mensagem. Não, nem isso. Por que eu estava pedindo desculpas? Eu não tinha culpa de nada. Eu deveria era esquecer esse garoto.

— Na verdade, eu... - tentei prosseguir; minha voz falhava. Lágrimas pediam para transbordar dos meus olhos, mas eu não podia permitir. Sentia-me como se houvesse algo preso em minha garganta. Encarei uma última vez a figura ao lado de Andrew, uma menina que aparentava ter, como eu, uns 18 anos. Seu cabelo cor de cereja pendia até a cintura, em grandes ondas que emolduravam seu rosto claro. Seus olhos castanhos estavam fixos em mim; eles pareciam rir por dentro enquanto aguardavam curiosa e ansiosamente minha resposta. - Deixa pra lá - foi tudo que consegui dizer antes de me retirar com pressa em busca de minha bicicleta.

Assim que dei as costas para eles, senti minha visão se embaçar; meus olhos eram lagos. Percebi que começara a chover; gotas grandes despencavam com peso das cinzentas e angustiadas nuvens. Olhar para o céu era como olhar para dentro. Em menos de dois segundos as lágrimas já desciam pelo meu rosto quente.

Acomodei o violão e pus-me a pedalar, tentando enxugar o rosto e os olhos para poder enxergar. A chuva aumentava rapidamente e eu tentava apressar meus movimentos na mesma frequência. Queria chegar em casa logo e me jogar em minha cama. Eu não tinha outro plano; apenas queria ficar deitada em meu quarto encarando aquele lustre velho no teto. E enquanto pensava nisso, fui ganhando velocidade.

As lágrimas continuavam a inundar meus olhos e eu piscava tentando melhorar minha visão. Enxurradas começavam a se formar e eu comecei a sentir um pouco de dificuldade para dirigir meu pequeno veículo. De repente, me dou conta de que meus devaneios haviam me distraído do caminho e eu quase passara direto pela rua pela qual deveria seguir. Com o susto e a velocidade em que estava, virei bruscamente para contornar a esquina, sem ter tempo de notar que alguém atravessava a passagem, quase deserta.

Foi tudo muito rápido. Tentei desviar, sem sucesso. Não estava enxergando direito e o solo molhado não colaborava também. Porém, consegui me movimentar o suficiente para que não o atingisse diretamente, amenizando o choque. Em poucos instantes, eu estava no chão, junto a um garoto de cabelo grande, minha bicicleta, dois instrumentos e alguns outros pequenos objetos.

Estávamos próximos a calçada e, apesar da ardência - principalmente nas mãos, joelhos e cotovelos -, eu apenas pensava em me levantar depressa, verificar se aquela pobre vítima do meu desastre pessoal estava bem e sair logo da rua, deixando-a também livre para seguir seu caminho caso fosse capaz - o que eu realmente esperava que fosse.

— Me desculpa! Minha nossa, o que foi que eu fiz? - as palavras saíam sem que eu pensasse direito enquanto eu tentava me colocar de pé, posicionar a bicicleta e ajudar o garoto ao mesmo tempo. Olhei finalmente para o pedestre que eu acabara de atropelar que também se levantava. Notei, com alívio, que apesar da face um pouco pálida - provavelmente em parte devido a pele naturalmente clara -, ele não parecia ter sofrido muito mais que alguns arranhões.

— Tudo bem - ele resmungou em um tom que não consegui decodificar.

Colocamo-nos a pegar as coisas no chão - ele com alguma dificuldade, já que a franja comprida de seu cabelo castanho escuro sempre caía-lhe aos olhos; o meu estava preso em um rabo de cavalo. Moedas haviam caído do bolso do meu short; meu celular; o violão e também - me pareceu - uma guitarra que ele carregava. Ambos verificamos nossos instrumentos. O meu não parecia ter sofrido nenhum dano grave, mas tive medo de perguntar sobre o dele, apesar de sentir que era o certo a se fazer; ele não parecia estar muito afim de falar.

Quando, enfim, nos encontramos de pé um a frente do outro, lembrei-me que meu rosto provavelmente denunciava meu choro recente, interrompido momentaneamente pelo episódio. Senti-me um pouco sem graça, o que automaticamente levou minha mão ao cabelo, gesto que se pode sempre notar quando estou constrangida.

— Você está mesmo bem? Machucou? - perguntei em voz baixa, hesitante. 

— Não, está tudo bem. Você... - ele sussurrou e, antes que pudesse concluir, balancei minha cabeça confirmando que estava bem.

A situação deixava ambos um pouco acanhados, sem saber o que fazer ou falar. Decidi não prolongar mais aquilo e montei na bicicleta em silêncio, para seguir para casa.

Não olhei para trás e suspirei aliviada quando senti que já me encontrava sozinha de novo. Com o susto, eu não estava mais chorando. Contudo, logo comecei a sentir com mais intensidade os arranhões e uma dor que surgira na perna direita. Não parecia nada grave ou muito doloroso. Era completamente suportável. Mas parecia deixar as coisas piores, como se contribuísse para o retorno da raiva, da tristeza, da frustração e da chuva, que parecia - provavelmente impressão minha - ter reduzido por um momento.

Em poucos minutos eu estava em casa, encharcada pela chuva. As lágrimas não haviam retornado. Entrei e Claire - minha irmã, três anos mais velha - esperava sentada no sofá. Ela estava curvada, os cotovelos sobre os joelhos, as mão sustentando a cabeça. Quando notou minha presença, pelo barulho da porta, olhou para mim. Eu não era a única que havia chorado.

— Margot... - disse ela com a voz triste, mas com um tom de certa conformação. - Tivemos que sacrificar o Harrison.

Apesar de Claire sempre ter dito, desde quando o batizamos cinco anos antes, que Harrison não era nome para cachorro, foi assim que denominamos nosso pequeno Spitz alemão que andara doente nos últimos meses, inspirando-nos em George Harrison - de quem éramos fãs.

Quando voltei da faculdade - Universidade de Sheffield, cidade onde sempre morei -, não havia ninguém em casa. Minha mãe estava trabalhando, era formada em publicidade; e meu pai... Bom, ele estava preso havia alguns dias; mas isso é uma outra história. Claire provavelmente havia levado Harrison ao veterinário. Achei que pudesse ter saído para passear com ele ou algo assim, quando notei a ausência de ambos. O pequenino tinha melhorado um pouco seu estado recentemente, sendo que aquela notícia não era esperada naquele momento.

Ao cair a ficha do que acabara de ouvir, quis falar muitas coisas. Entretanto, eu sabia que, se abrisse a boca, de lá sairia muito mais do que eu realmente queria e podia deixar escapar.  Então apenas depositei meu violão em um canto e fui abraçar minha irmã. Deixei que as lágrimas escorressem novamente. Eu estava à vontade para isso agora, não precisava disfarçar. Apesar de estarem guardadas desde o episódio anterior, na casa do Andrew, elas carregavam consigo a dor da recente notícia também. 

Depois disso, peguei o instrumento novamente e fui para o quarto. Lá, apenas fiz o que viera visualizando desde o momento em que a garota ruiva aparecera na janela: me joguei na cama e fiquei a olhar para o teto. Reparei novamente nos arranhões que havia esquecido, mas não tive ânimo nem para ir lavá-los. As últimas lágrimas desceram em minutos, até se esgotar o choro e eu pegar no sono.

 

Acordei com algo vibrando em meu bolso. Parecia ter dormido por pouco mais de meia hora. Sem tempo para pensar, coloquei a mão no bolso alcançando um celular e percebendo, ao atender à ligação desconhecida, que aquele aparelho não era meu.

— Oi? - atendi hesitante.

— Ei, eu... Meu nome é Alexander, e bem... Você é a garota que me... Atropelou mais cedo, certo? - alguém me respondeu timidamente do outro lado da linha, com uma pequena risada no final.

— Ahh - ri também. - Sim, sou eu... Margot. Me desculpa de novo e desculpa também pelo celular. Eu não tinha percebido, eu...

— Sim, acho que você acabou pegando ele por engano na confusão.

— Sim, sim... Como faço para te devolver?

— Eu estou indo com um amigo resolver umas coisas de um show no The Grapes...

— Ah sim! Eu moro bem próximo a ele, na Bailey Lane - falei, sem pensar muito sobre o que estava fazendo. Ainda estava um pouco sonolenta.

— Íamos passar por aí mesmo. Às sete e meia de hoje. Pode nos encontrar? - nesse ponto ele já não parecia tão sério e calado quanto na rua. Mas ainda não era do tipo extrovertido simpático.

— Sim, claro - olhei o relógio antes de responder. Combinamos um ponto mais específico da Bailey Lane para nos encontrarmos. Como passariam por lá de qualquer forma, esse ponto seria em frente à minha casa, apesar de eu não ter mencionado isso.

— Tudo bem, então até lá. E obrigado - o fato de ter agradecido me deixou um pouco confusa para responder. Eu só havia lhe trazido problemas; quis pedir desculpas de novo, mas percebendo meu silêncio, desligou.

Já não estava tão mal pelos acontecimentos do dia. Evitava pensar sobre tudo, pelo menos por enquanto. Minha barriga já fazia barulhos estranhos e percebi que estava faminta.

Desci para a cozinha onde encontrei Claire e minha mãe, que não tinha ouvido chegar. 

— Claire já te contou, Margot? - perguntou ela me abraçando.

— Contei quando ela chegou, mãe - Claire respondeu por mim.

— Chegou de onde?

— Eu estava - tentei pensar rápido - na casa da Maia, mãe. Ela tava me ajudando com umas coisas do violão, você sabe...

Maia entendia muito de música, então foi uma boa explicação. Desde muito pequena ela cantava e tocava vários instrumentos, principalmente piano; fazia várias apresentações. Recentemente ela tinha ingressado no curso de Música e Filosofia, também na Universidade de Sheffield. Minha mãe não prosseguiu no assunto; começou a falar da situação do meu pai e eu preferi pegar um pedaço do bolo que Claire tinha feito e comê-lo em outro lugar. Já bastava de assuntos ruins por aquele dia.

 

Depois de tomar um banho, fui para frente de casa esperar Alexander e o amigo aparecerem. Quando questionada, havia contado a verdade sobre o celular. Expliquei à minha mãe e à Claire sobre o incidente da bicicleta, mas, no caso, eu estava voltando da casa da Maia, que felizmente também não era tão longe. Elas riram de mim e também me alertaram sobre cuidado com o trânsito e várias outras coisas nas quais, por mais que eu tentasse, não conseguia prestar atenção.

Já estava escuro. Fazia um pouco de frio e a rua ainda estava molhada da chuva que cessara recentemente. O aroma das plantas depois de receberem tanta água era agradável. Eu observava as folhas, ainda com algumas gotículas. Olhei para o céu, no qual se via apenas algumas estrelas, mas ainda me parecia bonito. Quando baixei os olhos novamente, avistei Alexander caminhando ao lado de outro rapaz, de estatura não muito diferente e também com o cabelo por cortar, mas não como o do que eu havia atingido com a bicicleta, que era mais liso e pendia até o pescoço.

— Olá - cumprimentaram ao me alcançar.

— Oi. Aqui está seu celular. Sinto muito por tudo isso. - falei, entregando o aparelho.

— Obrigado. E não se preocupa com isso, está tudo bem - respondeu Alexander. Eu continuava não decifrando muito bem sua expressão. - Então, nós já vamos, temos que organizar as coisas...

— Vamos nos apresentar no The Grapes sexta-feira. O Alex te falou? - o amigo, ainda sem nome para mim, interrompeu Alex.

— Apresentar? - indaguei.

— Sim. Eu, Matt - finalmente apresentou o colega, indicando ele com o polegar direito ao falar -, Nick e Jamie temos uma banda. Se chama Arctic Monkeys.

Notei que Matt procurava algo em seus bolsos. Retirou seu celular e ao tentar utilizá-lo pareceu decepcionado.

— Droga, a bateria acabou. Eu ia te mandar a imagem de divulgação do The Grapes... Talvez mostrar algumas músicas nossas... Se quiser ouvir, claro.

— Eu quero sim - murmurei tentando ser educada, apesar de não estar entendendo muito do que se tratava.

— Tudo bem, eu te envio -  disse Alexander passando de novo o celular para minhas mãos, para que pudesse deixar meu número.

Eu estava um pouco confusa, mas salvei meu número e o devolvi pela segunda vez o telemóvel. Ao meu lado, Alex abriu a galeria de seu celular para procurar a imagem de que falavam. Ao passar por outras fotos, uma delas chamou minha atenção. Um choque percorreu meu corpo.

Era a montagem que provocara minha briga com Andrew.


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Notas finais do capítulo

Bom, espero que tenham gostado. Adoraria saber a opinião de vcs!