A Lagarta escrita por Vatrushka


Capítulo 5
Hora do Chá




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Até Lana se assustou com a própria atitude. Era sempre tão calada, tão contida... Engolira todas as injustiças cometidas pela Rainha, sua Corte e a guarda de Copas até agora, sem revolta... 

Achava ser capaz de conter seus próprios sentimentos. Mas ver o Chapeleiro em prantos... Ver a pessoa mais forte que já conheceu ceder assim... Fora seu estopim.

Sempre vira o Chapeleiro como um exemplo a ser seguido. A lógica era essa: se ele perdeu o controle, eu também posso perder. A fúria tomou conta de si antes que pudesse pensar no que estava fazendo.

O nome real do Chapeleiro era Carl. Lana conhecia Carl desde criança. Assistira o rapaz desenvolver suas defesas, seus pensamentos... E sabia que a única coisa que o ligava à realidade, que o motivava a seguir em frente, tudo com o que ele sempre se importou foi sua família. Seus irmãos sempre foram sua vida.

Quando viu Carl sendo rastejado sozinho, Lana sentiu uma dor profunda no peito. Uma dor que não se permitia sentir há muito tempo.

'Droga.' Pensou Lana. 'Empatia é uma fraqueza.'

E havia lutado tanto para não senti-la mais...

Tinha medo que Carl, desta vez, definitivamente se entregasse à loucura.

A Lagarta assistiu o Chapeleiro ser jogado aos pés da Rainha. Teve o impulso de correr para ajudá-lo, mas os braços de ferro de Giullian continuavam ao seu redor. 

As lágrimas embaçavam sua visão. Temia pelo o que poderia acontecer a Carl. Ele não teria mais forças para entreter a Corte... Ou não ia aguentar e acabaria direcionar seu ódio à Rainha...

Em qualquer das duas alternativas, a morte era certa. E Lana não estava disposta a aceitar isso.

"Giullian..." Sussurrou Lana. "Ele não pode morrer."

"Ele não vai." Assegurou.

Carl ainda estava de bruços no chão. 'Levante-se.' Rezava a Lagarta. 'Levante-se!'

Victoria o olhou com desprezo. Mexeu o rosto do Chapeleiro com seu pé.

"Chapeleiro...?"

Lana ouviu risadinhas em coro, puxadas pelo tal guarda de Ouros. Sentiu vontade de socá-lo.

"Hm. Todos perdem sua energia algum dia. Fora com a cabe—!"

"Carl!!" Guinchou Lana, na tentativa de fazê-lo voltar à realidade. 

E em um movimento muito rápido, Carl se levantou e sorriu de forma radiante.

Lana quase caiu no chão de alívio. "Eu disse," sussurrou o contador de histórias. "ele nunca te deixaria."

Carl preencheu o silêncio do salão com uma risada deliciosa. Sim. O seu Chapeleiro Maluco havia voltado.

Ele batia palmas enquanto sapateava. "Rainha Victoria! Minha querida, senti mais falta de você do que sentiria de minha chaleira a navegar!" E completou a sentença com uma exagerada referência.

Do jeito que Victoria gostava. Entortando o nariz, apontou o leque em sua direção.

"Claro que sentiu. Vamos, vamos, sirva o chá. Meus súditos lhe aguardam."

O Chapeleiro rodopiou, cantando melodias desconhecidas.

Lana finalmente sentiu as mãos de Giullian largarem sua cintura. Ela se endireitou e arrumou seu vestido. Não havia nada a temer, por enquanto. 

Voltaria a interpretar seu papel, talvez com a mesma perfeição que Carl.

As atrações voltaram aos seus afazeres com êxito. Lana "lia" o futuro de alguns, acrescentando sempre efeitos excêntricos como ventanias e explosões de fumaças azuladas; Carl dançava e fazia piadas sem sentido incessantemente; Giullian recitava estrofes de poemas de forma aleatória.

Horas se passaram assim. Todos estavam se divertindo e Victoria parecia radiante.

A Lagarta estava começando a ficar tonta de tanto ler auras e dar previsões. Quando se levantou, crente de que atendera o último cliente, o tal Valete puxa-saco-da-Corte sentou-se em sua frente.

"Ainda não, Lagarta." Exclamou, rindo. Lana voltou a se sentar, claramente desanimada.

"Qual o seu nome, rapaz?" Interrogou, pedindo sua mão.

"Viktor." Respondeu, levemente perplexo por não ser conhecido por ela. Mas não se deixou abalar: revelou a fileira de dentes perfeitamente brancos. 

Lana controlou-se para não revirar os olhos. Segurando em sua mão com firmeza, pediu para que ele se endireitasse e olhasse diretamente para ela.

"Tudo que quiser, gracinha." Provocou o rapaz.

Ignorou-o e começou a analisar sua aura. Seu ego era inflado e sua alma corrompida. Nada que fosse grande novidade naquele salão.

Em seguida, invadiu sua memórias. Era um garoto mimado, rejeitado, que fazia de tudo para receber aprovação do meio. 

Inteligente, não podia negar. Havia conseguido convencer todos ali dentro de que tinha uma autoestima inabalável. Tinha também seduzido muitas moças, o que incluía, logicamente, a Rainha...

E noite passada, eles... Eles...

Lana estremeceu de nojo. 'Que pervertido!' Mas logo se recuperou, fingindo que não era nada.

Suas intenções eram muito lógicas: manipular as pessoas da Corte - do reino inteiro se fosse preciso - para se tornar o próximo rei. E quando assim fosse, descartaria Victoria de alguma forma.

Já esperava isso. E sabia exatamente o que fazer para tirar proveito.

"E então, Lagarta?" Perguntou ele, entusiasmado. "O que me aguarda? Vitórias? Presentes? Lucros? Você?"

"A guerra que escolheu para lutar é muito perigosa, Viktor." Concluiu, soltando sua mão. "E você é um soldado muito talentoso. Só precisa mudar de lado, se quiser sair vencedor...

E com sua cabeça junto ao pescoço."

Viktor pareceu intrigado.  Conseguiu ver em seus olhos o medo de que a Lagarta, a temida feiticeira, tivesse descoberto seus planos.

Lana sabia que teria que contar com a ajuda de alguém mais influente na guarda para conseguir iniciar a busca pelos irmãos de Carl. Durante as sessões, bolara como iria ajudar o Chapeleiro a recuperá-los.

E Viktor, se fosse mesmo esperto, se juntaria a eles.

Ainda perplexo, o Carta se afastou. "Lado vencedor." Lana sussurrou com um olhar intenso, antes que ele desviasse o rosto.

A Lagarta se levantou e desmaterializou as poltronas antes que mais alguém quisesse fazer uma consulta. Não havia reparado, mas a hora da dança já tinha começado. Por isso, Giullian, Carl e ela puderam conversar e descansar um pouco.

Lana correu em direção à Carl e os dois se abraçaram forte. Ficaram assim por um tempo.

"Estou cuidando de tudo." Sussurrou para o Chapeleiro. "Vamos resgatá-los." 

Ele fingiu não ouvir e então se afastaram. Giullian olhava para os dois de forma suspeita.

Carl voltou à sua postura inquieta. Mas Lana voltou a puxar assunto.

"Sabe, eu convidaria vocês para dançar, se pudêssemos."

O Chapeleiro gargalhou, e então puxou os dois para o centro do salão. Claro que ele não ligava se era permitido ou não.

Os três dançaram em ciranda por um tempo. Descoordenados, saltitantes e alegres, pareciam ter voltado aos bons tempos de infância.

E foi assim até Giullian tomar uma atitude depressiva e se retirar da pista.

Enfim a sós - ainda que tivessem muitos olhares ao longo do salão que os acompanhasse - Carl a puxou para mais perto pela cintura. Começaram a dançar uma música lenta.

"Esse Giullian é doido." Comentou o Chapeleiro. Lana riu.

Os dois entraram em sintonia. Iam para lá e para cá, como um pêndulo, sem pressa alguma para descansar...

Lana encostou sua bochecha na de Carl. Tinha sentido sua falta.

O momento estava maravilhoso, mas a Lagarta não queria passar por egoísta. Não queria prolongar a provável agonia que o amigo estava enfrentando até agora.

O plano de fuga já havia sido planejado por ela. Com um movimento de mão, eles já estariam fugindo dali...

Mas a dança não foi interrompida por Lana; e sim por uma tosse rouca.

A Lagarta se afastou um pouco do Chapeleiro, mas este não largou sua mão. Era o Rei que os encarava. Todos ao redor olharam para a mão do monarca erguida, que convidava a Lagarta para dançar.

Aquilo deveria ser outro escândalo. O Rei nunca tivera autoridade para dançar com alguém que não fosse a Rainha. O Rei nunca tivera autoridade para nada.

A Rainha, ao perceber aquilo, ficou furiosa. Descolou-se do peito de Viktor e foi marchando na direção deles. Alguns vermelhos ali perto já tampavam os ouvidos.

A mão de Carl apertava a de Lana ainda mais forte.

"Cortem-lhe a cabeça!" Exclamou, apontando para o Rei e para a Lagarta.

Sim. Aquela definitivamente era a hora mais indicada para uma fuga.

Antes que os guardas a alcançassem, o Chapeleiro, os Gêmeos e a Lagarta desapareceram em uma fumaça azulada.


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