A Lagarta escrita por Vatrushka


Capítulo 17
Se Essa Rua Fosse Minha


Notas iniciais do capítulo

Acho que esse vai ser o maior capítulo dessa história. Já vou avisando que é uma tempestade de informações. Respire, relaxe e aproveite!



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Lana sempre teve dois mandamentos indiscutíveis. Duas condições que prometera a si mesma, desde pequena, a nunca violar.

A primeira era o de nunca matar ninguém.

Matara Viktor.

A segunda era nunca intervir no livre arbítrio de ninguém - o que inclui, naturalmente, feitiços de controlar o corpo alheio ou invadir mentes.

Acabara de o fazer com Alice.

Lana estava desestruturada. Todos os valores nos quais sempre acreditou, tudo no que sempre se baseou... Transformado em pó. Agora só sobrara o vazio.

Mas claro que Lana ainda não tivera tempo para pensar nisso ainda. Tinha medo de fazê-lo.

Nunca havia realizado esse feitiço de forma completa. Estudara os procedimentos, mas é claro que apenas leitura não podia garantir uma prática bem-feita.

Para não afetar os pensamentos de quem está sendo invadido, o intruso deve anestesiar as próprias emoções. Ser o mais silencioso, ausente possível.

Por isso Lana entrou num estado de quase amnesia. Não se recordou de quem era, do que estava fazendo ou quais eram seus objetivos. Tomou uma postura de completa admiradora. Assistia sem sentir. Recebia informações sem refleti-las.

Primeiro, Lana se viu caindo em um breu infinito. Parecia ser um penhasco sem paredes nem chão. Apenas o escuro. Sentiria frio, se estivesse em condições de sentir alguma coisa...

Foi quando, do nada, Lana parou de cair. A paisagem do breu foi substituída pela casa de Martin.

Suas próprias emoções - nostalgia, tristeza, luto - tentaram começar a saltar de seus olhos, mas Lana se controlou. Continuaria vegetando.

Estava de noite. Avistou uma criança de 8 anos correndo para fora da cabana. Seus cachos dourados eram empurrados pelo vento, deixando exposta a sua face em prantos.

As emoções da criança atingiram Lana. Tristeza. Confusão. Mas ao mesmo tempo, uma forte convicção de que estava fazendo a coisa certa.

A menina se chamava Anh. Era órfã. Havia recebido este nome por um Flor que trabalhava no orfanato, já sem mais ideias de como nomear uma criança.

Não conseguira pais adotivos, mas havia conseguido uma vaga como aprendiz de Martin.

Anh nunca teve interesse em aprender a arte da feitiçaria. Tudo no que tinha interesse era em conseguir um lar para ela e seu amigo, Pan.

Pan era filho de guardas de Paus. Por lei, seu destino seria o mesmo. Não queria que ele morresse. Não queria que ele morresse! Daria um jeito de enfiá-lo em algum outro lugar!

Foi morar com Martin por seis meses. Quando se sentiu segura o suficiente para conversar abertamente com seu Mestre, propôs - e em seguida implorou— para que ele acolhesse Pan em sua casa. 

Ele perguntou se acaso era um feiticeiro. Anh negou com a cabeça. "Nada posso fazer, criança." Respondeu o homem. "Rei Zeno sabe o que está fazendo. O trabalho dos Cartas de Paus é necessário. É crime ir contra isso."

Anh não entendia. Não sabia exatamente o trabalho dos Cartas de Paus, só sabia que marchavam aos milhares através dos portões dos limites do País das Maravilhas, em rumo às terras desconhecidas, e depois, apenas seus corpos mutilados eram devolvidos.

Mas seja lá o que acontecesse, não conseguia engolir que era justo. Um massacre não poderia ser justo! Precisava salvar Pan!

Resolvera fugir. Se não conseguisse apoio de Martin, nada mais ele poderia oferecer. 

Lana sentiu que Anh estava mentindo para si mesma. Seu coração se apertava, pois sentiria falta da forma que Martin a tratara: como uma filha. Poderia fazer parte de uma família, pela primeira vez.

Não. Pan era sua família.

Lana se viu em outro cenário. O mais terrível que já vira ou imaginara, para falar a verdade. Parecia ser um acampamento de guerra. O céu estava sempre cinzento, independente de ser dia ou noite. Milhares de barracas ocupavam um terreno baldio.

Era a "vila" dos Guardas de Paus. Não parecia uma cidade - não haviam ruas, nem restaurantes, hotéis, bancos, senado, música! Apenas um gigantesco acampamento de pessoas se armando e treinando, preparadas para morrer.

Anh já tinha seus 12 anos. Havia fugido para a vila para ajudar Pan. Como ainda não haviam alcançado a maioridade, estavam ali como - ó, ironia - aprendizes de guerra.

Ninguém havia barrado Anh ao entrar na vila. Sempre aceitaram voluntários para o exército. Todos ali só se preocupavam mesmo era em barrar possíveis fugitivos e abafar levantes.

Começara a entender a função social dos Cartas de Paus na sociedade. Atrás daqueles tão temidos portões, nas tais terras desconhecidas, moravam os seres mágicos mais temidos até então.

Dragões.

Suas escamas, garras e ovos tinham recompensas inimagináveis - uma vez que tinham, em sua essência, um potencial medicinal quase milagroso. Consegui-los era uma missão de alto risco. Há dinastias que contratavam-se os guerreiros mais corajosos para adentrar o território desconhecido para conquistar tais valias.

Dragões, entretanto, além de serem seres milenários, eram os maiores conhecedores tanto de magia quanto dos maiores segredos do universo. Nem a maior das bravuras era capaz de detê-los.

Com o tempo, o número de voluntários foi diminuindo. Os descendentes dos antigos heróis foram, portanto, trancafiados em uma vila e obrigados a mandar exércitos inteiros anualmente.

Se conseguiam saquear algum dente ou sangue de dragão de fato, ninguém sabia. Mas considerando que continuavam mandando as tais tropas sempre, supunha-se que sim.

Anh havia roubado diversos livros e pergaminhos de bruxaria do Mestre antes de fugir. Treinava, por necessidade, feitiços e poções que algum dia fossem úteis para os dois.

"Aprendi a usar teletransporte, Pan." Dizia a jovem. "Podemos fugir daqui!"

"E deixar todos para trás?" Debatia, zangado. "Precisamos aproveitar a vantagem que temos, Anh!"

"Pan, não podemos salvar todo mundo."

Pan a encarou fixamente.

"Quem disse?"

Com dezessete anos, Pan e Anh estavam muito mais organizados. Anh sempre contrabandeava livros, medicamentos e jornais para dentro da vila. Pan os distribuía. 

Anh estava muito mais avançada em feitiçaria. Construiu uma base refugiada para todos os Cartas que conseguiam fugir - claro, com sua ajuda. A resistência já juntava suas centenas.

Há três anos, o Rei Zeno havia caído. Francisco tomara seu lugar. Mas pouco foi mudado em relação aos Cartas de Paus - e apenas para a pior: eram muito mais explorados, a comida vinha em menor escala e as condições eram cada vez mais deploráveis.

Haviam decidido: aquele ano seria o grande ato. Anh e Pan, os líderes do levante, iriam para as terras desconhecidas naquele ano.

Na frente dos portões, Pan e Anh deram as mãos. "E se não der certo?" Interrogou Pan, em um dos seus raros momentos de fraqueza.

Anh odiava mentir para Pan. Mas o conhecia desde sempre: sabia que era nobre. Que jamais fugiria da batalha. O plano que haviam bolado juntos era de que, com a ajuda da feiticeira, seria possível roubar um ovo de Dragão e voltarem vivos.

Haviam ouvido falar de histórias nas quais isto já acontecera. Mas Anh sabia que, ainda se fosse verdade, os Lendários Dragões com certeza já teriam aprendido com seus erros. Não podia contar com a sorte.

Não se preocuparia em roubar nada de Dragão nenhum. Apenas faria Pan voltar, ainda que sem nada. Seria o primeiro Carta de Paus vivo em muito tempo.

Ao longo dos anos, Anh se teletransportara vez ou outra para as terras desconhecidas. Assistira milhares de Cartas de Paus desistindo da missão, tentando fugir dali, voltando para os portões e batendo para que abrissem.

Nunca abriram. Não aceitavam nenhum Carta que não voltasse sem recompensa.

Por isso bolara seu próprio plano.

"Morrerei ao seu lado, se necessário." Respondeu Anh, sem pestanejar.

Sorriram um para o outro, antes que a trombeta soasse e os portões se abrissem.

A tropa marchou pelas florestas sombrias por horas. Ainda que quase se remoendo de ansiedade, Anh se controlou. Apenas faria Pan fugir no primeiro sinal de ataque que tivesse.

Não tardou muito para que acontecesse. Os cipós nos quais a tropa estava pisando começaram a se debater, puxando os Cartas para o interior do pântano.

Todos entraram em pânico ao perceberem que os cipós eram, na verdade, caudas de um mesmo Dragão.

Ao ouvir seu rugido monstruoso, Pan pegou sua espada e Anh segurou seu braço.

Pan se voltou para ela com uma interrogação no olhar. Anh segurou o choro.

"Pan... Você é tudo o que tenho."

Os olhos dele começaram a entender. Antes que conseguisse impedi-la, o polegar de Anh já estavam em sua testa.

Invadindo sua mente, obrigou-o a tentar fugir. A esquecer os outros Cartas. A tentativa de revolução. Que voltasse como herói, conseguisse seu assento na Corte e que assim fosse feliz.

Ao impor tais ordens em sua mente, teletransportou os dois para os limites das terras desconhecidas, em frente aos portões que os impediam de voltar à vila do Cartas de Paus.

Anh olhou para seus olhos desconcertados pelo o que achou ser uma última vez. Beijou-o ternamente e sussurrou:

"Eu te amo."

E teletransportou-o sozinho para o outro lado dos portões.

Anh encarou o ferro dos portões da fortaleza. A ventania, cheirando a chumbo, levava as lágrimas para longe.

Os Cartas de Copas, que controlavam as fortalezas dali, sempre se certificaram que a lei de "O Carta de Paus que retornar vivo ganhará um assento na Corte" não fosse cumprida. Assassinavam aqueles que tentavam conseguir.

Mas graças a Anh, Pan conseguira. A partir do momento que ele concretizara a lei, os Cartas de Copas nada poderiam fazer a respeito. Anh conseguia ouvir, dali, o clamor da multidão ao avistar Pan vivo.

Ahn morreria. Fosse pelos Dragões ou pelos Cartas de Copas.

 Fim.

O que não esperava, entretanto, era o efeito colateral do feitiço de invadir mentes.

Para ser um intruso, deve-se poupar das próprias emoções ao máximo - e não se deve dar ordens a outra mente.

Caso o contrário, as duas mentes se fundem e a mais forte se torna dominante da outra para sempre - independente da vontade daquele que realiza o feitiço.

Anh reparou, ali e na hora, que não conseguira desconectar sua mente da de Pan. Conseguia ver pelos seus olhos, sentir suas emoções.

Os pensamentos do rapaz estavam confusos e oprimidos pela vontade de Anh.

A força de vontade de Pan agora limitava-se somente ao seu subconsciente. Quem o controlava agora era Ahn.

O rapaz não conseguiu ter reação quando foi carregado pela multidão, em meio de vivas.

Anh ajoelhou-se, odiosa de si mesma. 'Pan...' Pensava. 'O que foi que eu fiz...?'

Foi quando sentiu uma vontade desenfreada e incontrolável de segui-lo. Uma obsessão de observá-lo, controlá-lo e manipulá-lo ainda mais.

Cedendo à fraqueza, teletransportou-se para o outro lado do portão e se infiltrou em meio à multidão.

Em respeito à antiga força de vontade de Pan, Anh continuou organizando a resistência contra a Dinastia Vermelha.

Anos passaram-se. Tornava-se cada vez mais natural controlar as ações de Pan. Usava de sua influência na Corte para conseguir informações.

Victoria subiu ao poder. Anh acreditava que aquele era o momento mais frágil da Dinastia, e portanto, o melhor para atacar.

Até um tal humano Lewis se meter no País das Maravilhas.

Até personagens como os Gêmeos, o Coelho Branco, o Gato Risonho, a Duquesa, a Lebre, o Arganaz, o Chapeleiro Maluco e a Lagarta Azul se popularizarem.

Anh, naturalmente, ficou curiosa. Pesquisou de perto cada um, na esperança de que algum lhe fosse útil.

Que coincidência que encontrou, ao saber que o Gato e a Lagarta haviam sido aprendizes de Martin.

Que susto agradável que tomou, ao remexer o passado do Chapeleiro e seus irmãos.

Que conveniente foi quando o livro de Lewis foi publicado no País das Maravilhas, e junto com toda a população do Reino, Anh leu a história de uma pequena e inocente menina chamada Alice.

O palco estava montado. Tudo o que Anh precisava fazer era dizer ação.


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Notas finais do capítulo

Vamos supor que vocês estejam curiosos do porque esses nomes: "Pan" e "Anh".
Pan é um prefixo grego que quer dizer "tudo" e An é outro prefixo grego que tem significado de negação, ausência. (Se você estudou gramática na escola, você sabe.)
Aí eu meio que quis fazer uma brincadeira de opostos interligados, de Yin e Yang com os dois: o tudo e o nada, o nobre e o covarde, Pan e Anh. (coloquei um h no final pra ficar menos estranho.)
Até o próximo capítulo!



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