Translucidez escrita por yume


Capítulo 1
Translucidez


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste da história, Sunny! Fiz com cuidado e carinho, pesquisei um monte e procurei escrever os personagens com a maior fidedignidade possível.

Feliz Natal! Feliz Ano Novo!



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Roronoa Zoro não costumava se deixar consumir pela ira.

Isso não significava que ele nunca a sentisse. Afinal, ele era apenas humano – e um humano com uma noção precisa de sua condição mortal e efêmera. Bastava que olhasse para o mar que cercava o barco onde vivia e essa noção tornava-se ainda mais concreta dentre as verdades que tinha como inabaláveis.

No entanto, a fúria era um estado de espírito que desconstruía com maestria todo o embasamento do Bushido, e o Bushido era a carta de navegação sobre a qual Zoro havia decidido buscar seu propósito de vida. A espada era fria; a espada cortava; a espada não sentia. Quem sentia era o espadachim e, por isso, cada golpe deveria ser algo pensado, calculado, objetivo, algo que não arriscasse o propósito do metal empunhado. A paixão avassaladora da raiva era incompatível com essas noções e, portanto, incompatível com a filosofia de vida de Zoro.

Ainda assim, ele tinha plena consciência de que muitas vezes fora vencido pela ira. Incontáveis, quando era mais jovem e inexperiente, quando todas as ofensas eram imperdoáveis, quando cada obstáculo parecia intransponível. Esporádicas nos últimos anos, desde que pisara pela primeira vez no convés de Monkey D. Luffy para se tornar o recipiente da confiança inabalável daquele que escolhera como seu capitão.

Esses episódios de fúria mais recentes, que precisaram estripar o coração do espadachim para consumirem-no propriamente, foram imensuráveis se comparados aos arroubos de frustração frequentes de antes. Dentre eles, Zoro sabia qual fora o pior e mais nocivo de todos, é claro: o dia em que descobrira que o mundo de Luffy havia sido destruído sem que Zoro pudesse fazer nada para impedir. Mesmo hoje, anos depois, ainda sentia o gosto metálico de sangue em sua boca quando fechava os olhos e recordava do momento em que fora separado de seu melhor amigo e mandado para tão longe que sequer fora capaz de acompanhar a angústia dele através das imagens projetadas pelo mundo, como a maioria dos outros membros da tripulação relatara depois. Dificilmente existiria algum outro momento em sua vida que derrotasse aquele como o pior de todos. Zoro não permitiria que houvesse, havia prometido a si mesmo.

Esse fato não impedia os seres viventes do mundo de tentarem testar sua paciência, todavia. Um deles, em particular, parecia ter tomado o ato de enfurecer Roronoa Zoro como seu objetivo de vida. Chegar ao All Blue, pescar mariscos de todos os oceanos? Uma fachada para o real desejo, que era destruir toda a sanidade restante de Zoro.

Dessa vez, dessa vez somente, Zoro se permitiria a raiva real e justificada. Dessa vez, Sanji ficaria ciente de que não só espadas cortavam. Dessa forma, o espadachim poderia readquirir seu equilíbrio e, quem sabe, derrubar a teimosia infundada do cozinheiro para fazer com que ele pensasse além das solas daqueles malditos sapatos de couro.

Era por esses motivos que Zoro estava parado do lado de fora do quarto de Sanji, aproveitando o silêncio raro pairando no Thousand Sunny para definir sua estratégia. Atacar com espadas era simples. Palavras exigiam mais tempo. Infelizmente, ele era provavelmente a única pessoa naquele navio ciente das verdades que Sanji precisava ouvir.

(Talvez Robin soubesse, também. Mas ela nunca as diria, porque era gentil demais.)

Estalando a língua, Zoro abriu a porta do quarto sem se preocupar em bater.

O aposento era pequeno – todos os aposentos do barco eram – e organizado. Zoro nunca havia entrado nele, mas não estava surpreso com a mesa organizada, a estante cheia de livros de receitas e cadernos recheados de infindáveis criações culinárias originais, o armário fechado e certamente contendo várias peças engomadas e impecáveis de paletós e smokings, blusas de tecidos finos e gravatas de seda.

As duas coisas que não se encaixavam no lugar eram Chopper precariamente equilibrado em um banco de madeira alto e Sanji pálido, cheio de hematomas e curativos, com a perna direita imobilizada sobre alguns travesseiros.

Chopper estava observando o sono do cozinheiro, ele mesmo sonolento, seu chapéu torto entre suas orelhas. Havia passado a noite anterior estabilizando os variados ferimentos de Sanji, costurando cortes e lidando com queimaduras extensas. Era um milagre, o médico dissera, que a perna dele ainda estivesse intacta; a fratura na tíbia era limpa e reta, iria cicatrizar em alguns dias depois de todos os medicamentos que a rena enfiara goela abaixo do cozinheiro.

– Ei. Chopper. – Zoro chamou, encostando a ponta da bota em uma das pernas do banco onde o médico estava. – Acorda.

Chopper piscou assustado e virou para encarar o primeiro imediato, surpreso.

– Zoro...?

– Alguns dos idiotas que residem nesse barco resolveram tomar conta da cozinha enquanto o idiota que geralmente cozinha está fora de ação. Até o momento em que eu ainda estava lá, Usopp já havia queimado uma mão, um cotovelo e um chumaço do cabelo do Brook. – Zoro reportou, como se estivesse lendo uma notícia desinteressante.

Gemendo de frustração, Chopper começou a se mover lentamente para descer do banco e alcançar sua bolsa de instrumentos meio oculta embaixo da cama de Sanji. Ao segurá-la, a rena observou seu paciente, obviamente em conflito. Zoro não rolou os olhos diante da cena porque não costumava fazer isso.

– Pode ir. Eu fico aqui com ele. – ofereceu, movendo-se até encostar o quadril livre de espadas na escrivaninha ao lado da cama. – Aproveita e come alguma coisa. Desce na ilha para ver a neve. Não é todo dia que estamos em um lugar que neva.

Pensativo, Chopper acenou afirmativamente com a cabeça e saiu vagarosamente do quarto depois de checar uma última vez a temperatura de Sanji. Fechou a porta com um estalido mudo e deixou Sanji e Zoro sozinhos no silêncio do quarto. O mar estava calmo e fazia o navio balançar gentilmente. Era o gelo, Nami havia explicado, que fazia aquela calmaria.

A ilha onde estavam ancorados era estranhamente similar à terra natal de Chopper. Os moradores locais haviam explicado que, ao contrário de Drum Island, Yule Island não ficava coberta de neve o ano todo, apenas metade desse tempo. Como o bando do Chapéu de Palha havia aportado ali justamente durante os meses de inverno do local, a impressão era que estavam em Drum.

Ao presenciar a felicidade de Chopper caminhando entre bancos de gelo, com flocos de neve presos em sua galhada, Luffy anunciou que o barco pararia ali por alguns dias para “reabastecer”. O que realmente aconteceu, como era de costume, foi que a tripulação se misturou aos habitantes da ilha e descobriu a história de vida deles. Eram um povo pacífico, cuja principal produção era sorvete feito com as frutas que nasciam durante os meses em que havia calor e folhagens verdes. A maioria deles era pequena a ponto de não ter altura o suficiente para ultrapassar a cintura de Usopp. Chamavam-se “Duendes” e usavam roupas de veludo, invariavelmente coloridas de verde, vermelho ou amarelo. Os cães que usavam para transporte e caça eram tão grandes quanto os mais altos entre eles.

Chopper estava se sentindo em casa no meio de toda aquela neve e gente de sua própria altura.

Os Chapéu de Palha haviam chegado justamente na semana que antecedia um festejo tradicional da ilha. Se Zoro não estava enganado, haviam chamado a data da festa de “Natal” e, pelo que Robin havia explicado depois de algumas horas na biblioteca do chefe da aldeia, era um dia no qual comemoravam “paz, união e família”. Também faziam banquetes suntuosos, para a felicidade de Luffy.

Tudo estava indo muito bem até Sanji e Nami saírem para ajudar os anfitriões a adquirir alguns dos ingredientes do banquete (uma ave gigante que morava do outro lado da ilha, enorme o bastante para alimentar toda a aldeia mesmo depois de assada). No caminho, encontraram um Pacifista. Modelo novo.

O conflito que se seguiu ocorreu da forma mais previsível possível. O resultado fora: Nami, sem um arranhão sequer; Sanji, semi-morto e dono de mais um paletó chamuscado.

– Você já pode ir, se quiser. Eu não vou morrer até Chopper voltar.

A voz arrastada, rouca pelas dezenas de cigarros diariamente aspirados, não surpreendeu Zoro mesmo diante da aparente inércia do paciente prostrado na cama. Poucas coisas surpreendiam Zoro em batalha. Além disso, ele conhecia a inspiração e expiração de Sanji. Já sabia que ele estava consciente.

– Tem certeza, Sobrancelha? Da última vez que você ficou sozinho, veio parar aí nessa cama, moribundo.

Apesar da situação, o cabelo loiro do cozinheiro ainda estava lustroso e bem penteado sobre o lado direito do rosto dele. O único olho visível, antes fechado, agora estava aberto, encarando o espadachim com toda a irritação que seu estado patético e inválido era capaz de proporcionar.

– Olha aqui, juba de grama, ninguém pediu sua opinião sobre os fatos.

Zoro sorriu com ferocidade. Ele já estava ficando agressivo; ótimo. Não há honra em derrotar um adversário incapaz de lutar.

– E esse é o problema com você: a opinião dos outros.

Um instante de surpresa relampejou nas feições de Sanji antes da expressão retornar à simulação de constipação característica de todas as interações prolongadas com Zoro.

– Por favor, faça algum sentido. Eu ainda não bebi o suficiente hoje para traduzir as suas asneiras e Chopper se recusou usar as drogas mais divertidas para espantar a dor.

– A opinião dos outros é um problema. Você não pede a opinião de ninguém, mas está constantemente apavorado com o que todos pensam.

Do que você está—

– Você tem tanto medo da opinião dos outros que raramente quer realmente saber o que pensam.

– Ha! Você ouve o que está dizendo? Ao contrário de você, seu troglodita, eu fui educado para ser um cavalheiro e nunca decidir por ninguém—

– Eu não estou falando sobre a quantidade de sal na sopa ou se a Robin prefere sapatos de salto, seu idiota. Estou falando de opiniões que as pessoas têm sobre você. São dessas que você foge.

Engasgando com a própria saliva, Sanji soltou um grunhido indignado e forçou o peso do corpo sobre os cotovelos para poder levantar o tronco da posição reclinada e fuzilar Zoro com os olhos de forma mais efetiva.

Zoro não moveu de sua posição apoiado na escrivaninha. Sanji não precisava de mimo e cuidado da parte de Zoro; ambos estavam sempre cientes disso, em todos os momentos.

– Enquanto essa sua atitude só era manifestada nessa teimosia absurda que você alimenta como se fosse um bicho de estimação, eu estava decidido a ficar calado. Mas eu pensava que dois anos longe fariam você menos suicida. Eu estava errado.

Aquela com certeza seria a conversa mais longa entre eles. Zoro não gostava de conversas. Ele acreditava em ações e promessas cumpridas. Infelizmente, nenhuma ação ou promessa atingiriam Sanji naquele momento. Felizmente, Zoro era um estrategista adaptável.

O cozinheiro precisava de palavras? Zoro daria as palavras. Nenhum dos dois estaria confortável, mas o que precisava ser feito, seria feito.

– Eu já entendi você. Há muito tempo eu já entendi. Você está sempre consciente de que foi o quinto a chegar no barco, de que já haviam outros aqui antes de você, de que vieram outros depois.

– O quê? – Sanji interrompeu, o rosto deformado em um misto de confusão e descrença.

Zoro não interrompeu seu discurso.

– E você mede seu propósito nesse barco através do propósito de todos os outros. Luffy é o capitão e o centro, eu sou o primeiro imediato, Nami é a navegadora. Todos sabemos o que aconteceu aqui quando Usopp foi embora. – a cada tripulante enumerado, a expressão de Sanji escurecia. - Franky faz o navio funcionar. Chopper faz com que a gente continue funcionando. A Robin tem o conhecimento que nós precisamos e o Brook tem a experiência.

– Eu não sei onde você quer chegar.

– Sabe sim. – Zoro prosseguiu, ainda no mesmo tom monótono com o qual havia iniciado a conversa. - Qual a função de um cozinheiro nesse barco, você se pergunta. E às vezes você imagina que qualquer outro poderia ser cozinheiro nesse barco, não é? Você não é insubstituível. A tripulação existia sem cozinheiro e pode voltar a existir sem você.

– Cala a boca.

– Você não estava aqui desde o início, você não foi o pivô de nenhuma mudança grande o bastante para deixar uma cicatriz. Ninguém foi à guerra por sua causa.

Cala a boca!

– Então, você precisa se fazer necessário. E a forma que você encontrou para fazer isso foi se tornando um mártir.

– Você não sabe do que está falando!

A expressão de angústia no olho visível de Sanji era prova o suficiente de que Zoro sabia, sim.

– Então você decidiu que vai ser um escudo. Decidiu que você vai ser importante porque vai colocar todos os outros acima de você. – desencostando da mesa, Zoro caminhou até o banco e sentou nele para chegar o mais próximo possível de Sanji, seu único olho encarando o único olho visível dele. – E o resultado é isso aqui.

Erguendo a mão, o espadachim tocou no tornozelo enfaixado do outro, deixando seus dedos circundarem a tala responsável por imobilizar o membro, tal qual faziam no cabo de suas espadas, com cuidado para não pressionar, para não machucar. Não tinha essa intenção. Queria apenas tocar para confirmar o que Chopper assegurara: que era uma fratura simples, que a perna voltaria ao normal em breve.

Com o gesto, Sanji respirou fundo, trêmulo, mas não fez menção de ser mover.

– Você percebeu que o Pacifista não era um fracote como os outros. Percebeu que ele podia acabar com a sua raça, e o que você fez? Excluiu a Nami da luta, foi para um lugar onde ela teria dificuldade de te seguir e encarou um inimigo bem mais forte do que você, como um bom sacrifício. – Zoro explicou tudo isso encarando a perna enfaixada, com os olhos vidrados.

Fora Zoro quem encontrara Sanji desacordado, na beira de um desfiladeiro, entre os destroços do Pacifista, em uma poça de sangue. Nami chegara minutos depois, furiosa, acompanhada de Chopper e de uma maca improvisada. Os dois humanos carregaram o corpo desacordado de Sanji montanha abaixo enquanto Chopper fazia o possível para garantir que eles ainda teriam um cozinheiro na tripulação ao fim do dia.

Assim como articulações descoladas e objetos pontiagudos fincados sob a pele, era melhor que Zoro fosse ágil e fizesse o que tinha que fazer de uma vez. Resolveu ir direto ao ponto e dar logo o recado. Seu fôlego não era treinado para sustentar tantas palavras de uma vez.

– Tire a Nami do pedestal em que você a colocou e veja que ela é sua amiga e se importa com a sua vida. Melhor ainda, entenda que ela é tão competente quanto você e seria perfeitamente capaz de ajudar numa situação como aquela. Juntos, vocês teriam conseguido derrotar aquela coisa sem que você precisasse voltar dos mortos graças ao Chopper. Você não ajuda ninguém com essa de idealizar as pessoas. A única coisa que você faz é se isolar e dificultar a comunicação na tripulação.

Soltando uma risadinha descrente, Sanji balançou a cabeça em negação e abriu a boca para revidar. Zoro não permitiu e continuou.

– Você é o cozinheiro. Você é um dos melhores guerreiros desse navio. Você é importante para todos da tripulação, que estão lá embaixo, na cozinha, tentando fazer um jantar para esse tal de Natal porque você estava empolgado com a festa e eles não querem que você fique decepcionado por estar aí quebrado, onde você mesmo se colocou. – Zoro finalizou. Ergueu a mão para libertar a tala da perna do cozinheiro, satisfeito com a firmeza do curativo. Chopper estava certo; era apenas uma questão de tempo até Sanji se recuperar por completo. Luffy ia ficar muito feliz em saber disso. - Ao invés de ficar preso nessa miragem que você tem do seu lugar entre nós, pare e olhe ao redor para ver onde você realmente está. Não ignore a importância que eles dão para você, seu imbecil.

Golpe final. Não precisava ficar para observar os efeitos de suas palavras. Sanji não se deixaria afetar até que Zoro estivesse longe, afinal. Por isso, o primeiro imediato levantou do banco, virou as costas e caminhou até a porta antes que Sanji pudesse se recuperar do ataque verbal que recebera.

Já havia fechado a porta e caminhado alguns passos no corredor quando começou a ouvir impropérios gritados em sua direção. Tendo vivido tanto tempo com aquelas Okamas malucas, Sanji tinha um dos linguajares mais coloridos da tripulação.

Satisfeito, Zoro sorriu. Não sentia mais raiva, pois havia dado a ela um propósito. Agora, restava aguardar.

.

Cinco dias após o encontro entre Sanji e o Pacifista (PX-36, modelo novo, definitivamente não mais um protótipo), três coisas aconteceram.

A primeira: sua perna direita foi completamente “remendada”. Os remédios e vitaminas de Chopper funcionaram rápido a ponto de Nami começar a insinuar que eles podiam ganhar uns berries extras comercializando as pílulas.

A segunda: Nami havia voltado a falar com Sanji, interrompendo a semana de silêncio que a navegadora havia imposto sobre o cozinheiro depois de se certificar que ele sobreviveria. Para conseguir voltar a cair nas graças dela, o rapaz havia se desculpado inúmeras vezes, profusamente, e criado algumas dezenas de receitas envolvendo laranjas. O sorvete de laranja feito em parceria com os Duendes havia sido o divisor de águas. (Nami também havia sugerido comercializá-lo. Aparentemente, o tesouro dos Chapéu de Palha estava em tempo de vacas magras).

A terceira: Sanji ainda não havia voltado a falar com Zoro. Não que os dois possuíssem uma relação agradável e estável, para começo de conversa. Não, eles sempre foram mais como pólvora e pavio, óleo e faísca. Ninguém da tripulação estranhava se os dois não estivessem se tratando com qualquer cordialidade.

O problema era que Sanji passara esses cinco dias remoendo o discurso daquele cabeça de moita e... Prestando atenção.

Luffy e Usopp tentaram cozinhar para ele. Cozinhar. Foi um desastre, a carne estava queimada, a sopa estava salgada e os vegetais pareciam ter a idade de Brook, mas Sanji sentiu os olhos lacrimejarem e comeu cada pedaço.

Robin trouxe livros para ler em voz alta, cortesia dos Duendes de Yule Island. A maioria explicava as origens da Festa do Natal ou como quer que fosse que os baixinhos chamavam o dia do banquete.

– Aparentemente, algumas centenas de anos atrás, nasceu uma criança no meio do inverno. Havia uma profecia sobre ela, dizendo que nasceria com a incumbência de, e aqui vou citar ipsis literis, “expiar a maldade do mundo”. – A arqueóloga explicou, com um brilho empolgado nos olhos escuros.

– Muita responsabilidade para um bebê, não acha?

– Oh, sim. – Robin acenara com a cabeça em concordância. – A criança cresceu para se tornar um grande herói. Ele realmente se sacrificou pela ilha algumas décadas depois, protegendo-a de alguns nobres inescrupulosos. Houve tortura e humilhação, mas o sacrifício dele garantiu que Yule Island prosseguisse livre do escrutínio do Governo Mundial.

– E por isso eles comemoram o nascimento desse herói.

– Precisamente. Parece que comemoram a morte dele, também, mas isso nos meses de primavera.

– Encorajador.

Franky criou uma cadeira de rodas... Ok, uma cadeira meio flutuante que funcionava através de combustível e não tinha rodas, mas serviu muito bem durante os poucos dias que Sanji não podia caminhar normalmente. Usopp ajudou a complementar a cadeira com um verdadeiro arsenal que Sanji esperava nunca precisar usar, mas se sentia mais seguro por ter à disposição.

Brook compôs uma música em homenagem à batalha heroica do cozinheiro em busca da ave do banquete da festa. Batizou de “Balada do Peru de Natal” e já estava fazendo muito sucesso entre os moradores de Yule. As crianças da ilha estavam inclusive montando uma apresentação de teatro embasada na letra da música, que aparentemente seria o ponto alto da festa.

Quanto a Zoro, Sanji não via o espadachim desde o dia em que fora obrigado a ouvir o discurso sem pé nem cabeça dele sobre idealização e mártires e todas aqueles absurdos provavelmente originados dos danos permanentes depois de tantas concussões sofridas por aquela cabeça de alga. Infelizmente, a ausência de contato entre eles fez com que Sanji precisasse ruminar sobre aquela conversa para entender qual, exatamente, havia sido a intenção daquele troglodita sem noção.

O fato é: Sanji conhecia Zoro. Meses no mar com poucas pessoas à disposição para interação haviam garantido que os dois convivessem, mesmo que forçadamente. Por causa disso, Sanji sabia que horas Zoro costumava acordar pela manhã (cedo demais), quanto tempo passava treinando diariamente com aquelas espadas (tempo demais), os dias em que ele era o responsável pela limpeza (gostava de encerar o convés porque “era um bom exercício”, palavras dele) e, é claro, o que gostava de comer.

Era obrigação do cozinheiro saber o que a tripulação gostava de comer, afinal. E somente por isso que Sanji fazia a sobremesa favorita de Zoro de vez em quando. Estava apenas fazendo seu trabalho direito. Ninguém poderia julgar.

Mas isso não vinha ao caso, a questão era que Sanji conhecia Roronoa Zoro há anos e Roronoa Zoro não fazia nada sem um propósito. Agir sem objetivos era uma ofensa ao tal Bushido pelo qual ele vivia. Isso significa que aquela conversa aleatória cheia de veneno não havia sido nem um pouco aleatória.

Como Sanji estava pensando no que havia sido dito naquele dia, o maldito espadachim provavelmente havia conseguido o que queria, como de costume. O pior de tudo: Sanji estava começando a entender o que havia sido dito.

Nos últimos dias, acamado, havia colocado a conversa em dia com Robin. Perguntara a opinião dela sobre a ilha onde estavam. Sondara sobre o que ela, em seus estudos, sabia sobre o All Blue. Em meio a uma avalanche de informações, Sanji percebera que nunca havia conversado tanto assim com ela, uma pessoa que ele admirava tanto. Oh, era comum que comentasse sobre como ela era bela e elegante, admirar suas curvas e até mesmo buscar agir para satisfazer os gostos dela.

Entretanto, sua atitude solicita de antes agora lhe parecia responsável por erguer uma barreira entre eles. Como se ela fosse uma princesa e ele fosse um vassalo. Como se ela fosse Vivi, milhas e milhas distante, bela e inesquecível, mas não mais parte constante dos dias dos Chapéu de Palha.

Depois de conversar com Robin sobre “contos de Natal” e a veracidade histórica de um local como o All Blue em um mundo onde quase tudo parecia ser possível, Sanji percebeu que só agora estava realmente tratando-a com a amizade com a qual julgava classifica-la. E o mesmo ocorrera com Nami, nas horas em que a seguira pelo navio prometendo que jamais a deixaria de fora de uma batalha, novamente. Que confiava nela para protege-lo assim como ela confiava nele para protege-la.

Durante os cinco dias em que ficara imóvel, precisando de cuidados, Sanji entendera verdadeiramente algo que antes eram apenas palavras soltas em sua mente. Era uma noção bem simples: Sanji é um membro da tripulação dos Chapéu de Palha. Entretanto, agora ele percebia que, da mesma forma como ele mesmo associava “tripulação” a “família”, seu tesouro mais precioso e a real razão para existir naquele mundo, os outros tripulantes também pensavam assim.

Todos eles o consideravam importante. Isso havia ficado claro com o cuidado e preocupação demonstrados nos últimos dias.

No entanto, Sanji odiava não ter a última palavra em qualquer discussão com Zoro, mesmo que o espadachim estivesse munido de alguns gramas de razão. Sendo assim, no meio do banquete de Natal, quando viu o espadachim se afastar um pouco da festa e seguir na direção dos estábulos da aldeia, Sanji largou o que estava fazendo e o seguiu. Não se preocupou em ser silencioso ou discreto; Zoro dificilmente era surpreendido pelo que quer que seja.

Oi, cabeça de grama. – Chamou, finalmente, quando decidiu que já haviam andado o bastante para poderem se ouvir acima do barulho da música e das risadas ecoando na praça da aldeia onde estava ocorrendo a festa.

Zoro, que estivera abaixado para coçar atrás das orelhas de um dos cães dos Duendes deitado dentro de um dos estábulos, olhou por cima do ombro para manifestar que ouvira o chamado. Estava usando um casaco de peles, para a surpresa de Sanji – ele raramente demonstrava ser afetado por qualquer tipo de força externa que não o fizesse sangrar.

– Você estava errado. Sobre eu não me achar insubstituível. – Sanji anunciou, confiante, deixando as mãos escondidas nos bolsos da calça porque não tinha luvas. – Minha autoestima nunca foi tão frágil assim e eu sei que vocês dificilmente encontrarão um cozinheiro tão bom e tão multiuso quanto eu.

Soltando uma risadinha de escárnio, Zoro parou de fazer carinhos no cão e virou completamente para encarar Sanji de frente. O cozinheiro estalou a língua e deu alguns passos à frente até ficar a menos de um metro de distância do espadachim. Era muito bom que os dois tivessem mais ou menos a mesma altura; Sanji não suportaria ter que olhar para cima para dizer o que precisava a seguir:

– Mas entendi o que você quis dizer, apesar de você ter falado tudo sem muito nexo ou contexto e ter feito toda aquela ladainha enquanto eu ainda estava dopado de sedativos.

– Hmm. – foi a única resposta de Zoro. O rosto dele estava impassível, a imobilidade de seus músculos faciais agravadas pelo olho fechado, cortado pela cicatriz que seguia até metade da bochecha.

Sanji rolou os olhos. Claro que o idiota não iria facilitar.

– Sim, entendi, preciso parar de questionar meu lugar no bando e, por tabela, questionar o bando, etc etc, pode ficar tranquilo.

Erguendo a sobrancelha do seu olho sadio, Zoro continuou calado. Irritado, Sanji continuou falando:

– Deu para perceber que todo mundo se importa com o meu bem-estar, certo? – Sanji admitiu, entredentes. – Como você deu a entender. Se é que era isso que você queria dizer.

Como Zoro ainda se recusava a retrucar, Sanji sorriu ironicamente. Bem, se ele queria deixar o cozinheiro ter a última palavra assim, tão fácil, era isso o que teria.

– Quero dizer, todo mundo menos você, então talvez eu tenha razão em—

Infelizmente, Sanji esquecera que Zoro preferia não falar porque se comunicava através de atitudes, e por isso o cozinheiro não estava preparado para que o espadachim fechasse uma mão sobre sua lapela de veludo, a outra circundando sua nuca, para puxá-lo e, bem. Usar a própria boca para evitar que Sanji completasse seu raciocínio.

O beijo não poderia ter durado mais do que dez segundos, mas quando Zoro puxou seu pescoço para separá-los de novo, Sanji sentiu como se houvesse segurado o fôlego por minutos.

– Desgraçado, você não pode argumentar com palavras, como uma pessoa normal?

– Não.

– E quem te deu permissão para fazer isso?

Zoro apenas ergueu as sobrancelhas, contemplativo. Sanji rosnou, indignado, e decidiu dar o troco na mesma moeda. Usou os braços que estiveram inertes ao longo de seu corpo durante a cena toda e lançou suas mãos desnudas sobre o rosto de Zoro, curvando seus dedos no ângulo da mandíbula do espadachim para puxar o rosto dele novamente contra o seu.

Para sua frustração, não encontrou resistência alguma. Zoro permitiu-se a aproximação e fechou o olho direito antes mesmo de seus lábios entrarem em contato com os de Sanji. De tão perto, Sanji podia contar os cílios – ridículos, eram verdes também, que absurdo – do espadachim, curvados gentilmente sobre as bochechas.

Sentiu um calor estranho no peito, similar ao que sentira quando fora oficialmente aceito por Luffy como membro da tripulação, mas aliado ao mesmo frio na barriga que sentia quando via coisas bonitas demais.

– Isso não é justo. – gemeu irritado, soprando as palavras contra a bochecha marcada de Zoro. Deixou as mãos subirem para o cabelo dele, estranhamente macio para alguém que parecia cultivar grama no crânio.

As mãos de Zoro haviam migrado para a cintura de Sanji. A cena toda era surreal.

– Eu ainda não perdoei você por ter destilado veneno sobre a minha cama de enfermo. – Sanji sibilou, puxando um pouco o cabelo que estava segurando.

Sentiu a vibração da risada de Zoro com o corpo todo e imaginou se ainda não estava muito afetado por seus ferimentos, porque estava sentindo sua cabeça leve e tonta como só acontecia quando perdia muito sangue em uma batalha.

– Você não ouviu a Robin explicando? – Zoro rebateu, insolente. - O Natal é tempo de perdão e união, você tem que se enquadrar na cultura local.

Dessa vez, foi Sanji quem sorriu.

– Cala a boca.

Entretanto, ele não resistiu quando, minutos depois, Zoro o arrastou para o estábulo e o jogou sobre o feno estocado em uma das baias desabitadas.

Ao contrário de todos os seus amigos que cuidaram de sua saúde até aquele dia, Zoro não foi excessivamente gentil ou cuidadoso, como se Sanji ainda estivesse jogado em uma poça do próprio sangue no meio de uma nevasca. Não, Zoro ajoelhou entre as pernas longas de Sanji e o empurrou contra o feno com a certeza de que aquele corpo sob suas mãos era firme e forte o suficiente para ir de encontro ao seu.

Saber disso alimentou enormemente o calor que Sanji sentira no peito e que agora migrava com lentidão para seus membros antes enregelados pela neve que caia lá fora.

Veja bem, Sanji não era um virgem puro e delicado há muitos anos, como seu comportamento diante de mulheres calipígeas dava a entender. No entanto, ao contrário do que suas reações a qualquer Okama que cruzasse seu caminho demonstrava, ele não estava alheio à atração por homens como ele.

Ora, sua primeira experiência daquelas havia sido com outro garoto. Qualquer um que o conhecesse estranharia esse fato, mas Sanji crescera em um grupo composto quase que exclusivamente de homens. Era de se esperar algo do tipo.

Zoro não parecia muito surpreso em não ter ainda recebido um chute entre as pernas. Também não parecia muito propício a parar o que estava fazendo (no momento, mordendo a junção entre o pescoço e o ombro de Sanji e fazendo o cozinheiro exclamar em um misto de satisfação e surpresa).

– O que você está fazendo?

– Você não é tão burro assim?

Irritado, Sanji cruzou as pernas ao redor dos quadris de Zoro e forçou um encontro entre as pelves de ambos. Incrédulo, sentiu que Zoro definitivamente sabia o que estava fazendo, e ficou ainda mais surpreso ao notar que seu próprio corpo estava respondendo mais do que positivamente às intenções do espadachim.

O que não mudava os fatos sobre a situação dos dois.

– A gente faz isso e depois vai precisar conviver no Thousand Sunny. – Sanji alertou, embora não estivesse fazendo nada para interromper as mãos de Zoro desabotoando seu casaco com uma velocidade impressiva.

– Estou sabendo. – foi a resposta distraída que obteve.

– Você não vai simplesmente poder esquecer isso aqui e ignorar porque, acredite, não funciona.

Assim que essas palavras pairaram entre eles, Zoro interrompeu o que estava fazendo – empurrando o casaco (e a blusa que estava embaixo) por cima dos ombros de Sanji – para encarar o outro como se ele fosse um quebra-cabeça particularmente fácil de resolver.

– Eu não pretendo esquecer ou ignorar. Por que eu faria isso?

Encarando o único olho disponível do espadachim (que era potente o bastante sem precisar da outra metade do par), Sanji sentiu-se corar. Aquela resposta não deixava margem para interpretações.

Oh. – foi tudo o que conseguiu dizer, engolindo em seco.

Zoro ainda o encarava quando Sanji ergueu a mão e, sem desviar os olhos, permitiu-se arranhar levemente a enorme cicatriz que cruzava o peito do outro do ombro ao quadril. Se fosse sincero consigo mesmo, poderia admitir que sempre quisera fazer aquilo.

O gesto foi o suficiente para fazer Zoro decidir que a conversa havia encerrado ali e que ele podia continuar a trilha que começara na base do pescoço de Sanji, minutos antes. Ele agia com a segurança de quem tinha plena confiança no que estava fazendo.

Colocando mais força no aperto de suas pernas, Sanji jogou a cabeça para trás e deixou escapar uma risada, sem muito ar nos pulmões. Mesmo no meio de todo aquele frio, as mãos de Zoro sustentando suas costas pareciam brasa. Cada toque era sentido como uma promessa.

Nenhum dos dois deixou os estábulos ao longo de toda a noite.

(Ninguém os procurou porque Robin se incumbiu de dar desculpas sobre o paradeiro deles toda vez que a pergunta surgia durante o banquete. Afinal, ela refletiu, se o Natal de Yule era tempo de confraternização e generosidade, nada como realizar uma boa ação para seus amigos queridos.)


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Notas finais do capítulo

Esta é a primeira história em Português que eu escrevo em anos, por isso peço perdão por qualquer sintaxe estranha ou construção adverbial esquisita. Revisei bastante, mas algum erro pode ter me escapado por causa da minha falta de prática.

Também foi a primeira vez na vida que eu tentei escrever de verdade uma cena e sexo e, como ficou claro, não consegui ir ao até o final. Espero ter saciado pelo menos um pouquinho da sua sede por pegação, Sunny.

Críticas construtivas são muito bem-vindas!



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