Thalia

Quando gritei, a pessoa oculta nas sombras tapou minha boca. Comecei a me desesperar e quis gritar ainda mais. No desespero, fazemos coisas que não faríamos em situações normais. Mordi a mão do indivíduo que deu um gemido de dor e disse:

— Senhorita Thalia, eu só vim ver se a senhorita estava bem...

A luz do luar iluminou a figura.

Era o mordomo de Luke, Nicholas. Ele tinha uma expressão de um pouco de dor, e a mão dele estava marcada. Mas seus olhos continuavam tão frios e inexpressivos como antes. Ele olhou no fundo de meus olhos e continuou:

— Kelli disse que escutou um choro vindo de seu quarto e me pediu para ir verificar, se tivesse alguém aqui ela não seria capaz de te defender... e não queria acordar o Rei Luke. - Sua voz estava um pouco cansada. - Está tudo bem com a senhorita?

— S-sim... - falei, ainda meio receosa e com medo. Ele carregava uma espada negra, tão escura quanto seus olhos. Seu fraque fora substituído por uma roupa de guarda do castelo. - Estou bem... eu só... nada. Não se preocupe. Parece estar cansado. Pode ir dormir.

— Normalmente não durmo muito.

— O que? Você não dorme? Como assim? Passa a noite acordado? Não dorme nem um pouco?

— Durmo apenas o necessário. Três horas, normalmente. Por que a senhorita há de se preocupar comigo, apenas um simples mordomo? - ele continuava sem expressão. O que ele tinha? Parecia apenas um boneco. Realmente um boneco. Pálido, muito bonito e sem expressões. Os olhos, um buraco negro, vazio de emoções.

— Por que você é humano! - "acho que é, não é?", pensei. - Tem que dormir pelo menos oito horas por dia! 

Ele suspirou.

— Não se preocupe comigo, senhorita. Vivo apenas para o bem do Rei Luke. Dormir pouco para mim, não é um problema. Mas aconselho que a senhorita se deite. Amanhã, provavelmente, terá um dia corrido.

— Por quê? - perguntei.

— Não foi permitido-me falar. Amanhã, a senhorita irá ficar sabendo.

Apesar do jeito frio dele, parecendo uma marionete nas mãos do Rei Luke, ele falava de um jeito reconfortante e carinhoso. Sua voz contradizia sua aparência inemotiva. Eu queria ficar conversando mais com ele...

— Ei, poderia ficar aqui mais um pouco? - disse, com a voz cansada.

— Não poderia, senhorita. Tenho de proteger o Rei Luke e...

— Ele ficaria muito bravo se soubesse que você me deixou desprotegida até eu dormir! - Argumentei, com uma expressão brava, mas no fundo, estava realmente muito feliz.

— B-bem... - ele corou um pouco. ELE CORA?! ISSO MUDA TUDO! Que fofo! — Acho então que... terei de ficar com a senhorita até dormir. Estou certo?

— Sim! Obrigada, Nicholas... E pode me chamar de Thalia.

— Isso eu não poderia, senhorita.

— Pode sim.

— Por favor, senhorita, não insista nisso. - A expressão dele estava um pouco irritada. Achei melhor não continuar tocando no assunto. 

— Certo... - deitei-me na cama, e ele ficou em pé ao meu lado. - Boa noite, Nicholas...

Ele ficou calado por um tempo. Fechei os olhos.

— Boa noite, senhorita. - Senti que em seus lábios, havia um pequeno sorriso. Não abri os olhos para ver, mas minha noite ficou muito mais feliz.

De manhã, quando acordei, Nicholas estava sentado em uma cadeira, ao lado de minha cama, dormindo.

Ele parecia tão soleno, tão angelical dormindo... Não tinha aqueles olhos frios (estavam fechados, óbvio) e tinha uma expressão calma e até um pouco feliz em seu rosto. Fiquei tentada a tocar. Parecia uma escultura, de tão bela... Como ele poderia ser um mordomo? Ele era tão lindo...

Não consegui me segurar. Aproximei minha mão de seu rosto e...

Seus olhos se abriram num instante, arregalados. Ele se levantou num pulo e estava muito corado. Que fofo... pensei novamente, e comecei a rir.

— O que foi, Nicholas? - disse. - Se assustou?

— E-eu dormi aqui... - Nicholas parecia estupefato. - Rei Luke deve estar uma fera comigo! Me perdoe, senhorita Thalia, tenho que voltar aos aposentos de Rei Luke. 

— Certo... - dei um sorriso. - Vá.

E saiu apressado pela porta.

Nicholas, na verdade, não era tão frio e inemotivo quanto parecia. Era, na verdade, tímido e fofo... e tinha sentimentos, aparentemente. Era muito bondoso, apesar de rígido.

Tentei voltar a dormir muitas vezes, mas não consegui. Ainda não era o horário de acordar... fiquei então, deitada, fingindo dormir, para Kelli não desconfiar de nada, ou algo do tipo.

Quando ela chegou à meus aposentos, fechei os olhos, fingindo dormir. 

— Senhorita, está na hora de acordar. - Disse ela, tocando-me suavemente. Abri os olhos, com cara de sonolenta. Nossa, poderia trabalhar no teatro! Ela deu um sorriso. - Quer ajuda para se trocar?

— Não, obrigada... - bocejei. Levantei da cama. 

Abri o armário, e peguei um vestido roxo e longo, adequado para a manhã, pois era de um roxo muito singelo e delicado, claro, não chegando a ser lilás, nem violeta, mas ainda assim, nada escuro. Comecei e me vestir e pedi que Kelli fizesse uma trança em meus cabelos e fizesse uma maquiagem simples e leve. Ela obedeceu tudo. 

Desci as escadas e fui até o salão de jantar, para tomarmos café da manhã. Rei Luke me recebeu com um sorriso grande e gentil. Senti um sorriso aparecendo em meus lábios.

— Bom dia, Thalia! Como dormiu? - perguntou ele.

— Bem... - comecei a olhar em volta, procurando por Nicholas. Ele não se encontrava em lugar algum. O que será que teria acontecido? Ele normalmente não saia do lado do Rei Luke... - E o senhor, dormiu bem?

Luke fez uma cara de desgosto.

— Não me chame de senhor! Me chame de Luke, por favor. Sem formalidades.

— Certo... - dei um sorriso. - Luke.

— Dormi bem, apesar de ter sentido falta do meu mordomo a noite... Ele ficou em seu quarto, não foi, Thalia?

Ele descobriu! Será que Nicholas não está aqui por isso...?

— Sim, mas eu pedi a ele. Me perdoe. Estava meio abalada e nervosa com tudo isso e demorei um pouco para dormir. Depois, ele ficou cansado e dormiu sentado em uma cadeira. Não foi culpa dele. Por falar nisso, onde ele está?

Luke ficou sério, de repente.

— Foi a cidade comprar ingredientes para o jantar de hoje à noite. Convidarei pessoas importantes do reino para jantarem conosco e conhecerem você. Está tudo bem para você?

— Sim... - comprar ingredientes? Muito estranho... tem algo por trás dessa história, e vou descobrir o que é. — Então, podemos comer? - dei um sorriso.

— Claro. Fique a vontade.

Olhei para aquela grande mesa e vi a coisa mais deliciosa do mundo... morangos! Peguei alguns e mergulhei em calda, caramelo, mel, tudo o que podia. Claro, como sou uma dama, não comi muito (mesmo querendo comer tudo naquela mesa como fazia as vezes em casa quando meu pai nem minha mãe estavam me vigiando),  apenas morangos e um pedaço de bolo, e tomei um chá Earl Grey divino. 

— Luke, poderia ver o castelo?

— Claro que sim. - Ele deu um sorriso. - Uma pena que não poderei lhe acompanhar. Terei de rever os preparativos para o jantar de hoje a noite. Kelli irá te acompanhar, se quiser. 

— Posso ir sozinha. Em meu castelo... - corrigi-me. - No castelo de meu pai, havia um labirinto. Já terminei-o mais de uma vez. Sei me localizar em castelos e labirintos. Posso?

Luke deu um sorriso nervoso.

— Claro que pode. 

Dei um sorriso, limpei-me e comecei a andar pelo castelo. As pinturas eram realmente um pouco incomodas, mas muito bonitas, e com ar triste. Depois, iria perguntar a Luke quem havia feito aquelas pinturas. Iria conhece-lo, talvez conversar com ele.

Haviam vários quartos de hóspedes, e o castelo, em si, era muito esplendoroso, e bonito. 

Havia uma pintura, que me chamou muito a atenção... Era uma criança, de cabelos negros, chorando, ajoelhada, enquanto uma mulher bonita, de cabelos negros como os da criança, era assassinada em sua frente. Era um quadro muito forte para um castelo lindo como aquele. 

Quando toquei nele, algo se abriu.

Uma porta.

Tinha uma escada, que descia muito... A curiosidade me venceu e comecei a descer as escadas... qualquer coisa que tivesse lá embaixo, eu iria ser silenciosa. 

Escutei gritos e gemidos de dor.

O que há lá embaixo?! Pessoas sofrendo?! Não... alguém sofrendo!

Logo, uma pessoa veio à minha mente.

Desci mais rápido as escadas, e havia um vão. Fiquei encostada na parede, criando coragem para olhar o que havia ali... E quando olhei, arquejei...

Era Nicholas. Ele gemia, e gritava de dor...

Ele estava sendo torturado.