Amálgama escrita por General Bear


Capítulo 1
Atrelamento Anímico


Notas iniciais do capítulo

Helloes, galerinhes lindes!

O texto não está tão longo quanto o de costume (todos comemora). Como já puderam perceber nos gêneros e avisos, não terá lemon. E não, dessa vez não irei reescrever depois para adicionar o lemon. É a primeira vez que tento caminhar para um lado mais fluffy, mas não garanto ter conseguido.

Enfim, desejo uma ótima leitura para todos aqueles que se dispuserem a ler.



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— Preparado para o grande dia, Caramelo? — A voz doce e rouca de Isolda questionava-o. — Está com saudades dele, não é mesmo, pequenino? — A velha baixa e corcunda, com suas cãs emaranhadas num coque firme na altura da nuca, continuava a arrumar o quarto numa lentidão costumeira. — Como você acha que o nosso Abelardo deve estar hoje? — Finalmente terminava de colocar uma colcha em cima da cama, então olhou para o gato laranja que estava no topo de uma estante de livros. — Vai ser bom tê-lo novamente conosco, não é mesmo, Caramelo? — A face engelhada e cheia de verrugas se retorquiu ainda mais quando ela abriu um enorme sorriso esburacado pela idade.

A senhora encarou as fendas do olhar verde do felino por alguns instantes, como se esperasse uma resposta. Todavia, a criatura de pelos alaranjados e listras marrons nada fez além de encará-la friamente, como se observasse mais uma peça qualquer da mobília. A ponta da cauda longilínea serpenteava atrás dele, analista e entediada.

— Há quanto tempo ele está fora de casa, Caramelo? Você se lembra? — insistiu. Mas o animal reagiu da mesma forma, fitando-a com seu olhar gélido. Dessa vez, entretanto, ainda tratou de sentar-se em cima da estante. E quando Isolda pensou que ele finalmente teria alguma reação, o gato começou a lamber a própria pata, ignorando completamente a presença da velha no aposento.

Isolda suspirou descontente e seguiu para a saída com uma infelicidade pesando dentro do peito.

— Ele não ficará contente de te encontrar neste estado, Caramelo. — despediu-se num conselho amargo.

O gato, com suas orelhas grandes levantadas, parou de lamber-se e assistiu a mulher saindo do lugar. Quando finalmente escutou os passos lentos dela descendo a escadaria do corredor, Caramelo levantou-se, alongou-se, espreguiçou-se e saltou de cima da estante.

Rápido e preciso, caiu sobre as quatro patas em cima da cama recém arrumada. Silencioso também teria sido um dos adjetivos antes cabidos ao animal, mas depois que a velha Isolda prendeu-lhe um guizo tilintante — e irritante — à coleira do pescoço, ficava difícil esgueirar-se por aí sorrateiramente como em outros tempo... Até mesmo caçar ratos, agora, mostrava-se uma tarefa árdua com esta coisa barulhenta anunciando todos os movimentos.

Caminhou pelo colchão macio até se aproximar do travesseiro, onde expôs as unhas e amaciou o algodão, repuxando o tecido. Encolheu-se ali, acomodado, e enrolou a cauda em torno de si. Fechou os olhos e aproveitou o momento de solidão — algo com o que já estava bastante habituado em sua vida.

Não sabia muito bem no que deveria pensar. Verdade fosse dita, queria de fato adormecer ali, sonhar com os tempos de glória e poder; mas as memórias e os pensamentos confusos impediam-no. O que foi até bom, caso dormisse, bem capaz seria, como de comum, ter pesadelos com a escuridão eterna do limbo.

Não fosse por ele, ainda estaria preso lá.

Há quanto tempo não via Abelardo?

Mais de três anos...

Três anos, sete meses e dezenove dias seria a resposta exata. Depois de tanto tempo perdido selado dentro de um maldito grimório, absorto de toda a realidade, contar os dias, as horas e os segundos virara uma espécie de hobby desde que se situou novamente no plano real...

Três milênios inteiros aprisionado nas entranhas escuras de um livro empoeirado.

A solidão era fria, escura e amarga.

O gato recolheu-se ainda mais, apequenando-se no travesseiro fofo. Tentava aquecer-se e livrar-se das lembranças gélidas, mas o esforço era em vão.

Raiva, ira, ódio, desespero, pânico, medo, pavor, conformação, súplica, solidão, angústia, desesperança... Era tudo tão palpável ainda. E como poderia não ser? Reinos, impérios, civilizações, espécies inteiras deveriam ter surgido e desaparecido durante o período em que passou trancafiado no limbo tecido por Alluin. Aquele maldito e asqueroso feiticeiro que derrotou, selou ou mesmo destruiu tantos e tantos demônios.

“Traidor maldito,” o Arrependimento soprou em seus ouvidos.

As lembranças do limbo eram bastante conflituosas, afinal de contas, não havia de fato memórias de dias, de momentos especiais, recordações sensitivas que o fizessem lembrar de todo aquele tempo perdido nas entranhas da inexistência. Como bem diziam os ancestrais, nas zonas de limbo não há noção de espaço, nem existe qualquer sentido além da consciência. “O concreto é completamente extinto e o abstrato torna-se uma prisão”... A noção de tempo, em geral, destrói-se depois do primeiro surto inexistencial, que normalmente ocorre no primeiro ano de isolamento completo... Depois disso, não faz diferença se se passaram décadas, séculos ou milênios, a consciência perde a capacidade de calcular o tempo e, de repente, a mente se resume em ondas explosivas de emoções fermentadas e imprevisíveis que ganham vida e som na mente de qualquer um.

Se num momento explode-se de raiva furiosa e ódio irrestrito, prometendo vingança e destruição a toda uma raça de arcanos que o trancafiaram ali; noutro instante está-se a remoer naquele mar de solidão, implorando para que uma voz companheira surja e converse consigo... E o maior dos problemas é quando estas vozes surgem. Quantas vezes havia conversado consigo mesmo? Milhares, com as mais diversas vozes. E, infelizmente, este era um hábito que ele ainda não havia superado.

“O que irá fazer quando ele chegar?” Não soube responder àquela questão. “Não me diga que irá perdoá-lo? Ele te abandonou, como nós dissemos que ele iria fazer. Nem acredito que ele esteja retornando, ele nos odeia depois que descobriu o que você é realmente... Sei que você também pensa como eu... Sabe mais o que eu acho? Ele nos abandonou e está voltando para nos selar novamente naquele maldito livro! Deveríamos ir embora, fugir para longe onde ele não possa mais nos alcançar...Ou melhor, podemos matá-lo... Ninguém sabe o seu segredo, somente ele. Talvez não nos consigamos restaurar, mas seremos livres dele e desse medo de que ele possa nos selar novamente... Alluin vive com ele, bem sabes... Podemos matá-lo durante sono, como já planejamos várias vezes.

O gato abanou a cabeça, afastando a sensação sombria que lhe permeou a mente através das palavras da Suspeição.

Não eram ideias de todo ruins, até porque o sentimento de vingança ainda lhe pulsava dentro do peito... Alluin... Abelardo... O sangue do maldito que o traiu e o aprisionou corria nas veias daquele que o libertou. Por mais irônico que tudo aquilo fosse, não havia surpresa nenhuma nessa coincidência, feitiços de selamento poderosos muitas vezes eram assegurados com selos de sangue, adido ao fato de que o grimório provavelmente tornara-se uma herança familiar, cedo ou tarde alguém iria libertá-lo.

“Até parece que foi tudo planejado por aquele magista maldito,” foi a vez da Conspiração incitar seus reclames.

“Entretanto, poderia chamar isto de liberdade?”, a Insatisfação, em sua fome eterna, questionava-se-lhe... Preso na forma de um maldito gato laranja chamado de Caramelo? Sem poder, sem força, sem sequer sua verdadeira forma. “Patético!

“Mas já é melhor que o limbo, certamente,” a sempre otimista Resignação argumentou, e ele não pôde discordar do levantamento feito por ela.

Caramelo saltou da cama e aterrissou no parapeito da grande janela circular que havia no quarto. Olhou o movimento na rua de ladrilhos que havia do outro lado do vidro. Fazia tempo que ele não se aventurava lá fora, desde que ficou sabendo do retorno de Abelardo. Estava livre do limbo há pouco mais de cem anos, mas ainda não se havia conseguido acostumar a toda aquela mudança no mundo.

Pessoas andando livremente de um lado para o outro. Magos, bruxas, feiticeiros, arcanistas... seres humanos e seus familiares com suas tralhas conjuradoras, com roupas, com sorrisos estampados nos rostos. Aquilo fazia a Ojeriza revirar-se de maneira tamanha em seu subconsciente que não conseguiria explicar o que sentia. “Os tempos haviam mudado, afinal... mudado até demais.”

Os demônios foram extintos, lembrava-se das explicações de Abelardo. Destruídos e dizimados em sua maioria, alguns poucos foram selados e trancafiados para a eternidade, segundo os livros de história.

E o mais irônico daquilo tudo era os demônios terem iniciado os humanos de maior potencial arcano nas artes mágicas, e assim surgiram os primeiros arcanistas. “Essas escórias não conseguirão nada demais, mal tem energia espiritual em suas constituições, deixem-nos protegerem-se dos espíritos menores com um pouco de magia nulificadora. Assim teremos mais com o que nos preocupar além de defender estes vermes desprezíveis enquanto trabalham para nós. Caramelo sentia vontade de rir e gargalhar sempre que se lembrava do quanto haviam subestimado aqueles vermes desprezíveis.

Foi preciso um ano inteiro para o demônio indefeso que agora era acostumar-se com a nova volta que a Roda da Fortuna havia trazido. A Era dos Bruxos começou, e parece estar longe de acabar.

Caramelo passou algumas horas deitado no parapeito. Observou senhora Hermínia cuidando do grifo novo dela; o viúvo Danberth cuidando de sua horta suspensa; os pombos correio voando de um lado para o outro... “Seriam eles saborosos?”, a Gula bateu-lhe ao pé do estômago.

Ainda era difícil digerir todo aquele novo velho cenário. Teve um século para adaptar-se àquilo tudo, mas simplesmente não conseguia, era uma mácula, uma humilhação grande demais para a visão que tinha de si mesmo. Quem imaginaria que seres humanos, criaturas desprovidas de qualquer essência mágica, poderiam ter dominado a magia de maneira tão complexa e exímia como nem mesmo os demônios, os diabolos, os espíritos menores e as entidades mágicas — seres de pura energia anímica — jamais haviam conseguido? Há explicação para tal feito?

Energia harmônica. Todos sabiam que corpos físicos não eram capazes de armazenar energia anímica, logo a pouca magia que seres humanos carregavam em espírito jamais poderia ser comparada à magia de seres superiores. Mas nenhuma criatura espiritual poderia fazer ideia de que criaturas físicas e vivas teriam a capacidade de canalizar a energia livre que os cercava. E enquanto seres espirituais podiam somente usar feitiços e magias a partir de suas próprias essências armazenadas, os humanos logo aprenderam a usar uma nova forma de canalizar a energia harmônica que os cercava... os rituais. Surgiam no meio disso, os primeiros bruxos, arcanistas especializados no fluxo e na tradução da energia harmônica.

E então, quando os bruxos aprenderam a criar familiares, a guerra havia acabado. Por mais imponentes que pudessem ser, os demônios tinham poderes limitados e, uma hora, precisariam de tempo para restaurar suas forças... Os arcanistas humanos poderiam simplesmente fazer rituais e usar energia harmônica de maneira quase ilimitada.

As orelhas pontudas levantaram-se em alerta quando uma carruagem barata parou em frente ao casebre dos Garuda, bem no meio da rua apertada. O felino levantou-se para observar melhor a figura que saía da cabine. O chapéu pontudo e de abas largas impediu-o de ver o rosto do homem que desceu. Ele conversava alguma coisa com o cocheiro, que retirava malas, diversas bolsas e caixotes do bagageiro.

Seria Abelardo?

Mas que tipo de pergunta era aquela? Quem mais estaria chegando na rua com um monte de bagagens? Não havia qualquer dúvida. Haveria?

Caramelo, curioso e aflito, tentava ver melhor o que acontecia lá embaixo, mas a visão proporcionada pela janela era terrível, quase não era possível avistar a sege estacionada à porta. O felino farejou o ar, como se tentasse identificar o odor dos estranhos lá embaixo; também tratou de aguçar a audição, mas foi tudo inútil... A janela fechada impedia que cheiros mais sutis entrassem no aposento; e a rua estava barulhenta demais para se escutar a conversa dos dois e tentar identificar a voz de Abelardo.

Enquanto o cocheiro ainda descarregava a carruagem, Caramelo conseguiu escutar a porta ser aberta no andar debaixo. Num impulso involuntário, saltou da janela e correu para fora do quarto. Amaldiçoou-se três vezes por fazer barulho demais com o sininho badalando em seu pescoço e amaldiçoou Isolda duas vezes mais por ter feito aquilo.

— Dona Garuda? Caramelo? Tem alguém em casa? — Uma voz grave e preguiçosa percorreu o silêncio da residência.

Abelardo!

As orelhas pontudas esticaram-se o máximo que puderam. Um frio nervoso desceu seu pescoço, sua coluna e somente parou quando alcançou a ponta firme de sua cauda. Um sentimento estranho revirava-se-lhe nas entranhas. Ao mesmo tempo em que queria correr escadaria abaixo e esfregar-se nas pernas dele, também queria mordê-lo e arranhar-lhe a cara, afiar as unhas em suas costas. Odiava-o por deixá-lo para trás e, ao mesmo tempo, queria senti-lo novamente afagando atrás de suas orelhas.

Com cuidado, Caramelo seguiu vagarosamente pelo corredor, tentando inutilmente não balançar o guizo preso em sua coleira.

Um passo atrás do outro.

Com um atenção sigilosa, desceu os primeiros degraus. No entanto parou a descida tão logo avistou Isolda. A velha estava abraçada com o recém-chegado. Ela o apertava, abraçava, cheirava, beijava nas bochechas e na testa. A mulher fazia perguntas atrás de perguntas. “Está magro demais, não te alimentaram direito? Conheceu alguma boa companhia? Está velho demais para não estar em busca de uma tampa para seu caldeirão. Ande, venha na cozinha, eu preparei o doce de enguia que você tanto adora.” O homem riu sonoramente diante de todos aqueles mimos e retribuiu-a com um abraço apertado, levantando-a do chão e fazendo-a gritar espantada.

Há quanto tempo não escutava essa risada?

A cauda do felino, o qual assistia toda a cena do alto da escadaria, balançava analista e alegre, por mais que ele se recusasse a escutar o que o sentimento balbuciava-lhe.

— Caramelo? — A voz masculina entoou. Abelardo soltou-se dos braços de sua mãe e observou o animal que os vigiava.

Ele vai nos selar! Ele vai te jogar de volta no limbo! Não confie nele. Ele tem o sangue de Alluin,” Medo, Pânico e Desconfiança fizeram um coro mental.

O felino não soube o que fazer neste momento. Seus olhos verdes e grandes fitaram o humano com receio e timidez. Quando Abelardo deu o primeiro passo em sua direção, Caramelo correu desesperadamente de volta para o quarto com o coração explodindo dentro do peito e o guizo tilintando em seu pescoço.

Embrenhou-se debaixo da cama e permaneceu ali, respirando profundamente e tentando acalmar os batimentos acelerados. Os bigodes em seu focinho tremiam em nervosismo incontido. Debaixo da cama e através das cobertas, o animal ficou encarando a porta, esperando pelo ser fascinante que há tanto tempo não via.

A que criatura ridícula fomos reduzidos, não é mesmo? Com medo de um humano, um bruxinho qualquer. Patético, seria melhor voltarmos para o limbo, lá ninguém iria te ver passar esta vergonha. Se um demônio te visse nesse instante, teria que implorar para que ele nos matasse por piedade. Duvido que algum deles quisesse sujar as mãos com a escória que você nos tornou.

— Você por algum acaso acha que existe algum demônio vivo, ou pelo menos inteiro, nos dias de hoje? — respondeu-se com um humor cítrico de deboche — Tem humanos andando livremente pelas ruas. No máximo teremos alguns ancestrais castrados de seus poderes e reduzidos à familiares.

Aquela resposta fora o suficiente para calar a voz do Desprezo, pelo menos momentaneamente... Mas ele tinha razão, no final, ele sempre tinha razão. Haviam sido completamente reduzidos a nada. Onde já se viu? Um demônio com medo de um reles humano? “Não querendo desmerecer Abelardo, mas a magia dele é medíocre demais para se temer.”

— Não querendo desmerecê-lo? — resmungou-se — Não me digam que agora sentem algo por este verme?

Além de desprezo, ódio e raiva?... Olhando a posição em que você nos encontra neste momento... um pouco(o que quer dizer muito) de medo também devemos sentir,” a Arrogância conseguia ser sempre tão incisiva.

— Asneiras! Não tenho medo dele! — rebateu-se altivo.

E está debaixo da cama com os bigodes trêmulos por simples e pura vontade de ficar no escuro. Entendemos... Tocando neste assunto, não sei como não tens medo de ficar no escuro e em espaços apertados depois de tanto tempo preso no limbo,” a Insegurança surgia.

Mas é claro que alguém tinha que lembrá-lo do limbo neste instante... É bom que Isolda tenha trocado a areia da caixa, não dou mais de dois minutos para ele ir cagar de medo.

— Eu não estou com medo! — Deslizou calmamente debaixo da cama e, numa sequência de saltos precisos, escalou cadeira, escrivaninha, armário e foi parar outra vez no topo da estante de livros.

Continuou observando a porta com um sentimento gélido esmagando-lhe os intestinos. “Onde ele estaria afinal? Por que demorava tanto a subir para o quarto?” A voz da Saudade, ou seria da Precaução, pungia os pensamentos acelerados.

Com sua audição apurada, conseguiu escutar, ainda que em nuances silenciosas, as vozes de Isolda e de Abelardo. Conversaram sobre as aventuras dele, sobre a solidão dela, sobre comidas exóticas, amores passageiros, criaturas fantásticas, a estranha família do falecido Senhor Garuda... Caramelo ainda conseguiu escutar seu nome ser evocado três vezes, e em todas as vezes Isolda resmungou coisas que traziam o tom de uma reclamação.

Velha maldita!

***

Os minutos se passaram vagarosos. Os dois papearam por quase duas horas lá embaixo. Até mesmo as vozes na cabeça de Caramelo já haviam sido devidamente silenciadas pelo tédio exorbitante que era ficar observando o quarto de cima da estante. Todavia, foi somente escutar os rangidos eternos dos degraus da escadaria que o gato pôs-se atento outra vez.

Corra, fuja, ele vai te prender novamente no grimório,” o Pânico junto da Desconfiança alertavam-no.

O animal iria se mover e esconder-se em algum lugar outra vez. Mas não teve tempo.

— Caramelo, cheguei! — Abelardo anunciava sua entrada no aposento.

O bruxo, que não era muito alto, vestia-se completamente de cinza, as botas, as calças, o casaco, a manta, o chapéu pontudo, amarrotado e torto. Consigo, carregava um pesado e grande baú de carvalho negro, que empurrava com bastante dificuldade sobre o assoalho do quarto.

Ele estava diferente, muitíssimo diferente.

Ao contrário do que Isolda havia dito, estava visivelmente mais forte e mais largo, pelo que se podia perceber do corpo escondido sob as vestes. E como poderia ficar mais magro do que antes fora? Deveriam confundi-lo sempre com uma varinha, riu-se internamente das memórias antigas. Os cabelos longos e negros estavam presos num rabo de cavalo comportado, uma vasta e longa barba descia pelo seu queixo. Os olhos estavam fundos e cansados, aparentavam estar ainda mais pesados abaixo daquelas sobrancelhas grossas despenteadas.

— Não vai me dar as boas-vindas, Caramelo? — Abandonou o enorme baú no meio do cômodo e cruzou os braços. Encarou os olhos verdes do gato com o penetrante olhar negro que esbanjava orgulho. Parecia levemente autoritário enquanto batia o pé no chão e esperava que o companheiro descesse do alto para cumprimentá-lo.

O felino continuou em silêncio, fitando-o com uma indiferença exorbitante. Abelardo aceitou aquele jogo por quase dois minutos inteiros esperando uma resposta. Mas ela não veio.

— Mamãe falou que anda calado ultimamente…

— Se ultimamente significar nos últimos três anos de minha existência, acredito que seja um valor deveras próximo. — rebateu azedo.

— Ó, então o gato tem língua? — brincou risonho.

— Não, estou falando pela bunda, bem sabes. — ironizou — Merdanês parece uma língua comum entre os humanos, foi de meu interesse aprendê-la.

Abelardo fitou-o severamente, com um sorriso malicioso evidenciando-se debaixo da barba.

— Chego em casa depois de três anos fora e é nesse tom que me recebe, pulguento? — Simulou seu melhor tom de ofensa, mas falhou ao rir da cara fechada e séria do amigo.

— Não deveria estar reclamando. Eu ia deixar uma bola de pelos em cima do seu travesseiro como presente de boas vindas. Mas, devido à circunstâncias, o planejamento não teve sucesso.

— Ó, então eu devo agradecê-lo por ter misericórdia de meu travesseiro? — Abelardo observou a cama para assegurar-se de que o gato realmente não havia cuspido nada ali.

— Na verdade deve agradecer sua mãe. Eu passei uma semana engolindo pelos para deixar uma bela boas-vindas na sua cama hoje... Infelizmente aquela maldita velha trocou as colchas depois que encontrou a minha surpresa. — desabafava toda sua decepção forjada.

O bruxo encarou-o com os olhos estreitos, estudando a veracidade daquelas palavras, mas não conseguiu saber se se tratava ou não de um blefe.

— E o que eu fiz para merecer tamanho desgosto? — vitimizou-se.

— Você já passou três anos sozinho com aquela maldita velha!?

— Não fale assim dela, ela é minha mãe... E já passei muito tempo vivendo sozinho com ela antes de você chegar. Não era tão horrível quanto você faz parec... — Abelardo interrompeu-se, nem mesmo ele acreditaria no que estava a prestes a dizer. — Okay, você (talvez!) tenha um ponto... Mas ela não é de toda cruel, convenhamos.

— Não é cruel?! Olhe para isso! — O felino, inconformado e dramático, bateu a pata na sineta presa em seu pescoço. O tilintar ecoou estridente. — Caçar ratos e pombos ficou impossível! Estou sendo completamente rechaçado pelos demais gatos da vizinhança... Nunca fui tão humilhado em minha vida felina! Um dos grandes demônios do Conselho Infernal reduzido a gato de viúva! Eu quase agradeço por todos os demônios estarem extintos, eu preferiria a morte a alguém ver-me nesta condição degradante.

— Ó, não faça esse drama todo. Até que ficou fofo. — Abelardo tentou segurar a gargalhada, mas falhou. — Dá um pouco do ar da graça que falta nessa sua cara de morte lenta e dolorosa.

— Continue rindo e veremos quem você chamará de fofo depois que eu cagar nas suas botas. — A ameaça séria quase atingiu o humano.

— Ó Caramelo, sempre sutil como um empalamento. Sentia falta desse seu jeito agridoce, por mais que ele sempre me incomode. — Abelardo tentou esticar-se para alcançar o gato, mas a criatura saltou para o outro lado do móvel, astuto e traiçoeiro. — Você não sentiu falta de mim ao acaso?

— Caramelo não é o meu nome.

— Lá vamos nós novamente com sua frescura por apelidos. — Abelardo revirou os olhos e suspirou desiludido. O gato iria responder alguma coisa, mas o bruxo foi mais rápido. — Okay, senhor Myka, o senhor sent…

— Continua não sendo o meu nome!

— Okay , Malackyas, melhorou agora?

— Bastante. — respondeu enquanto caminhava sobre os livros empilhados na estante, o rabo serpenteando esnobe e vitorioso.

— Eu havia esquecido dessa sua birra boba pelo nome.

— Birra boba? Queremos nos chamar por apelidos agora? Posso te chamar de Bacon, ou prefere Bebel?

Abelardo fez uma careta de desagrado e alinhou um muxoxo nos beiços.

— Acho que entendi seu ponto. — concordou finalmente.

— Depois de três milênios preso dentro de um livro, perdido num vazio qualquer, fica-se bastante apegado ao nome, Abelardo. Você não tem noção de quantas vezes eu duvidei de quem eu sou de verdade. — explicou-se, dessa vez, sem tom de superioridade ou sarcasmo.

O bruxo não soube como responder àquilo, nunca fora muito bom em momentos de vulnerabilidade alheia. Ficou somente encarando o animal que o via de cima, parecia ter pena dele.

— E então, não vai refazer a pergunta que queria fazer? — O gato tentou quebrar o clima tenso tecido entre os dois.

— Ó... Então você realmente sentiu a minha falta?

— A pergunta não era esta.

— Hm... Ó senhor Malackyas, vossa grandiosi... vossa demonicidade sentiu falta de mim como eu senti a sua falta? — Abelardo retirou o chapéu pontudo e lançou-o em cima da cama, na sequência forçou uma reverência bastante espalhafatosa.

— Eu passei três milênios sozinho no meio de uma escuridão inviolável; acha mesmo que eu sentiria falta de alguém por passar somente três anos sem vê-lo?

— Furtivo como sempre. Fazer uma pergunta para não responder o que pedi é contra as regras, mocinho, bem sabe disso.

— Pelos infernos, Abelardo! Eu jamais sentiria falta de um humano medíocre!

— Ai, essa doeu. — A expressão do bruxo transfigurou-se numa falsa carranca de mágoa e ressentimento. Ele aproximou-se da cama e despencou de costas contra o leito, estava cansado da viagem. — Você precisa ser sempre tão cruel e rude, Myka? — Chamou-o pelo apelido pela simples vontade de fazer-lhe raiva.

Malackyas saltou de cima da estante e aterrissou no colchão.

— Não me culpe por ser realista, a vida é cruel, eu sou somente cru. — Caminhou melindroso pela cama e subiu em cima da barriga de Abelardo, que estava deitado com os braços abertos ali.

O bruxo observava o teto do quarto, concentrado.

— Medíocre é uma palavra muito forte, Malackyas. — Estava mais pensativo do que de fato ofendido.

— Você é um bruxo de cento e sessenta anos que ainda vive com sua mãe. Do que você quer que eu te chame? De guru?

Abelardo gargalhou com aquele argumento. De maneira involuntária, levou a mão à cabeça do gato em seu colo e afagou-lhe carinhosamente a cabeça.

— Você tem um ponto, não posso negar. Mas se eu sou medíocre por morar com minha mãe, o que seria um demônio sem poderes que ficará preso pela eternidade na imagem de um inofensivo gatinho laranja, hein?

Apesar de Malackyas fuzilá-lo com os olhos verdes em fenda, Abelardo não parou de agradá-lo na cabeça.

— Certo, eu mereci esta, mas agora ficamos quites. — concluiu enquanto esfregava-se na mão que lhe dava carinho.

O humano ficou em silêncio, o mascote sentado sobre seu peito, olhava o animal enquanto sorria alegremente.

Um tanto envergonhado quando aquela cena prolongou-se por mais de três minutos, Caramelo resolveu tomar as rédeas daquela conversa.

— E você, Abelardo, por onde andou este tempo todo? Ao acaso juntou-se a ermitões naturistas? — perguntava enquanto suas patas pisavam na vasta barba negra do humano — Devo dizer que este cabelo, estas roupas esfarrapadas, esta barba fedida... Você sabe que eu não acompanho muito da moda mágica, mas tenho quase certeza de que o look indigente anda démodé.

Abelardo riu-se daquela informação.

Há quanto tempo não ouvia aquela gargalhada preguiçosa?”, um suspiro mental da Saudade e da Alegria aflorou-se num sorriso felino.

— Ó, é mesmo? E eu aqui achando que estava conseguindo me camuflar na multidão.

— Camuflar-se onde? Num necrotério? Fedendo assim não sei como ninguém tentou te exorcizar como desmorto.

— Não precisa exagerar tanto, Myka. — Abelardo curvou o braço para atrás da cabeça e remexeu-se no intuito de farejar a própria axila. Não foi preciso mais que uma fungada profunda para retorquir a cara num desgosto irresoluto. — Pelas barbas de Merlin! Como eu pude abraçar a minha mãe fedendo desta maneira?

— Eu te disse. A minha bosta está cheirando melhor que você. Verdade seja dita, eu só não te enterrei na minha caixa de areia porque tenho (quase!) certeza de que está vivo. — Ao perceber a movimentação do humano, o gato saltou de cima do peito dele, sentou-se no colchão e assistiu-o levantar-se da cama.

— Okay, mensagem recebida, eu estou precisando de um banho... Mais alguma coisa, senhor gato? — questionava e retirava as botinas ao mesmo tempo.

— Ainda não respondeu por onde esteve em tuas andanças.

— Estava seguindo uma pista para conseguir uma coisa importante que eu andei pesquisando antes da viagem.

Coisa importante? Explicação intrigantemente reveladora. — inquiriu com desgosto sarcástico — Um jovem magista que passou a vida inteira enfurnado em livros e bibliotecas (atrás de conhecer feitiços, poções e rituais) de repente diz que irá partir em uma busca e não sabe quando vai voltar não é uma desculpa muito plausível para se desaparecer por três anos (quase quatro!) e depois voltar com um sorriso garboso no meio das fuças achando que tudo vai estar como antes.

— Falando neste tom até parece que sentiu minha falta. — insistiu ousado. Depois de retirar as meias, Abelardo começou a desabotoar o casaco.

— Eu não senti sua falta! — rebateu inconsistente — Só... só... somente fiquei preocupado... Numa semana você descobre que sou (ou fui? Enfim...) um Demônio Imperial, na outra você decide viajar sem rumo pelo mundo e me deixar aqui preso com a velha maldita. — Aquelas palavras demoraram a sair de sua garganta, estavam fermentadas pelo rancor.

— E o que tem demais nisso? — questionou, mas logo percebeu o que o amigo quis dizer — Ó, você não achou que eu estava te abandonando, achou? — O bruxo aproximou-se do animal, que virou o olhar verde e deixou-se cabisbaixo.

Abelardo enrubesceu e ficou sem reação por alguns instantes, sem saber o que dizer para consolar o demônio. Coçou a nuca três vezes antes de tomar uma decisão concisa: pegou-o nas mãos e levantou-o à altura da própria face, forçando-o a encará-lo frente à frente.

— Você não pensou que eu iria embora para sempre, pensou? Eu prometi que te ajudaria a se restaurar. E, por mais medíocre que eu seja, não costumo descumprir promessas.

Ele está mentindo.” “E irá nos trair e nos matar, tenho certeza!” “Fuja, corra, esconda-se!” Todas as suas vozes internas diziam, mas ele ignorou a todas elas.

Caramelo demorou a responder, perdido num alívio interno por saber que o humano não o havia deixado ali por medo ou repulsa. As palavras demoraram a ordenarem-se-lhe à mente.

— Há precedentes de humanos que não gostam de demônios... E se não quiser acreditar, temos uma extinção como prova a nosso favor... Não pode me culpar por pensar assim.

— Não estou culpando ninguém, seu pulguento! — Abelardo sorriu próximo ao animal. — Agora ande. Faça o que você quer fazer desde que eu entrei por aquela porta.

Malackyas ficou encarando-o, confuso e perdido. Como ele poderia saber?

— N-nã não sei do que está falando. — Remexeu-se nas mãos do magista, tentando soltar-se do captor. — Me solte, Abelardo! — ordenava, mas não era obedecido.

— Não seja assim tão durão, Malackyas. Eu sei que você não resiste. — Aproximou o rosto ao do gato.

— Afaste essa barba nojenta de mim, Abelardo! Isso é uma ordem! Obedeça-me, humano insolente! — Sacudia-se exasperado, mas toda a sua luta foi em vão. — Pare com isso! Você vai me passar pulgas!

Mas já era tarde demais.

Abelardo esfregava-se contra o felino em suas mãos. Caramelo sentia a barba espessa e espinhenta atritando-se-lhe contra os pelos da face. Os movimentos bruscos e calorosos do humano amassavam e desarrumavam seus bigodes pontudos. Ao mesmo tempo em que desejava arranhar toda a cara do bruxo — e bem tinha oportunidade invejável para isto —, não queria parar de sentir o calor dele contra seu corpo.

— Já chega, Abelardo... — suplicava e tentava livrar-se daquele carinho bizarro, mas logo desistiu de resistir.

De repente, queria aquele calor humano para si. As patas finas e laranjas abraçaram a cabeça do arcanista e, dessa vez, foi o gato quem se esfregou contra o homem. Myka ronronava alegre e deleitoso. Abelardo, por sua vez, gargalhava e sorria diante dos carinhos tardios.

Os dois continuaram naquele abraço saudoso por bastante tempo, então o bruxo interveio e afastou Caramelo, que miou em desagrado quando fora colocado sobre o enorme baú. “Já acabou?”, a incomum mistura de Afeto e Insatisfação alinhou-se em seus pensamentos.

— Eu disse que você não iria resistir, não disse? — riu-se.

— Asno, deveria ter arranhado as tuas fuças e arrancado esse teu sorriso azedo com minhas garras! — resmungou.

O humano gargalhou.

— Acho melhor tomar meu banho agora.

Abelardo continuou a despir-se, tirando sua blusa e deixando seu tórax à mostra.

Ele não era mais aquela varinha que um dia fora... Abandonar a mesa de livros e explorar o mundo fez muito bem à saúde dele, afinal.” Malackyas observou atentamente ao som da Luxúria em seus ouvidos... O humano ficava nu em pelos ali. O tórax peludo e largo, os músculos das costas movendo-se fortes debaixo da pele clara. De repente o demônio estava se lembrando de seus tempos de governante infernal, onde podia simplesmente ter a criatura que quisesse ao seu lado na cama.

— Algum problema, Malackyas? — indagou ao tempo em que retirava as calçolas e deixava as vergonhas ao sabor da gravidade.

O demônio ainda ficou alguns segundos calado, hipnotizado pelo tom roxo da glande que se mostrava à sua frente.

— Myka?

— Hã? O que foi? — Retornava de seu transe libidinoso.

— Algum problema? Você ficou estranhamente silencioso. O gato comeu sua língua? — riu-se.

— N-não é nada, estava pensando sozinho. Tentando adivinhar o que teria de tão importante neste baú.

Abelardo sorriu malicioso.

— Pensei que nunca iria perguntar.

— Por quê? — Sua curiosidade havia sido finalmente capturada.

— Sabe, depois que você disse para mim que na verdade era um demônio... você se lembra daquele livro que eu consegui que explicava mais sobre demônios famosos, selos infernais, rituais antigos de combate contra espíritos malignos?

— Sim, lembro-me, o que tem ele?

— Hector Langsthorius... Eu resolvi pesquisar por mais obras dele. Achei fascinante os estudos dele sobre demônios e diabolos infernais. Quando sai daqui de casa, te confesso que minha intenção era simplesmente ter uma conversa com o Sr. Langsthorius. Viajei até Pratasolar e consegui sem muitas dificuldades uma conversa com este ilustre pesquisador... Hector é um homem incrivelmente simpático, adora conversar e debater sobre suas pesquisas. Foi uma conversa extremamente agradável... além de elegante é um homem bastante charmos…

— Abelardo, foco! — interrompeu-o, não soube dizer se pela influência do Ciúme ou se pela Curiosidade em saber o que o bruxo enrolão havia descoberto.

— Okay, okay... Prosseguindo. — Aproveitou para coçar o próprio saco exposto neste instante. — Conversamos sobre as obras dele e sobre hipóteses comuns que sempre faziam a ele. Perguntei sobre a possibilidade de ainda existirem demônios. Ele disse que demônios selados são criaturas muito comuns e, se achando o sangue certo para quebrar os selos, eles poderiam retornar com consciência sem grandes dificuldades… Mas em corpos desprovidos de energia anímica.

— Até agora não ouvi nenhuma novidade! Nós dois já sabemos disso, afinal, já passamos por isso.

— Calma, senhor Caramelo, está muito apressado.

— Então deixe de enrolações, até parece uma gata no cio.

— Então... Eu perguntei a ele se, numa hipótese improvável, um selo demoníaco sendo rompido, haveria alguma chance, mesmo que remota, da criatura recuperar seus poderes diabólicos... A princípio ele pensou e me disse várias hipóteses... Todas envolvendo rituais semelhantes aos de invocação ou criação de familiares (aqueles todos que testamos mas falhamos). — completou com um ar de decepção.

— Então eu não tenho nenhuma chance de restaurar meus poderes? — O fio de sua voz era trêmulo e desesperançoso.

Abelardo abriu um sorriso sádico e traiçoeiro. Uma sensação sombria e gélida percorreu a espinha de Malackyas, descendo do pescoço à ponta da cauda e fazendo cada pelo de suas costas eriçar amedrontado.

— Todavia ele me falou de outro ritual antigo, dos tempos em que a conexão entre o mundo espiritual e mundo físico não era tão fácil como hoje e os deslocamentos planares não eram simples. Mas o ritual acabou ficando obsoleto depois de todos os avanços mágicos... Segundo estudos, este ritual (que na verdade tem forma de pacto, já que rituais não existiam na época) era comum entre humanos e criaturas espirituais para que ambas as partes pudessem vagar entre os planos distintos sem grandes dificuldades.

Malackyas estava confuso e pensativo, tentando compreender o que o humano dizia, mas não conseguia concentrar-se muito bem, a simples expectativa de que poderia restaurar seus poderes novamente fazia-o perder-se completamente em êxtase.

— Então... — interrompeu-o — Você sabe onde podemos encontrar um manuscrito com este ritual?

— Melhor do que isso. — Sorriu convencido.

— Não... — miou surpreso, alegre e excitado — Não me diga que você… — a cauda otimista bailava no ar.

— Sim, eu já tenho o manuscrito.

— E o que, pelos infernos abençoados, estamos esperando? Mostre-me, mostre-me agora!

— Calma, Caramelo, muita calma. Eu vou tomar um banho primeiro. E antes de tentarmos alguma coisa, esperaremos minha mãe sair de casa, ela irá na feira comprar alguns ingredientes para o jantar de boas-vindas que ela vai oferecer à família esta noite… Teremos a tarde livre.

Faça-o falar! Faça-o devolver-lhe sua integridade, sua completude. Faça-nos completos outras vez,” Ganância e Ambição iam de mãos dadas.

— Não me faça esperar mais do que já esperei! — O gato avançou na direção de Abelardo, que seguia para o banheiro, e prendeu-se à perna dele com unhas e dentes. — Eu ordeno que me mostre já este ritual, humano medíocre. Mostre-me já!

— Gato maluco! — Abelardo ria e sacudia a perna, tentando soltar Myka sem o uso da força. Depois de muita luta, descravou as garras dele de sua carne e segurou-o rosto no rosto. — Não iremos demorar muito mais, eu prometo. Mas preciso que espere mais um pouco, por favor.

Caramelo abriu a boca e guinchou agressivo, tentando arranhar a cara do bruxo. No susto causado por aquele ímpeto, o animal acabou sendo liberado. O felino correu pelo quarto, subiu outra vez em cima da estante e encarou Abelardo com severidade, mas como se desse permissão para que o humano inferior banhasse-se.

Quando o homem deu-lhe as costas, o bichano ainda deixou sua cabeça pender levemente para a direita, tendo uma visão agradável do traseiro redondo e peludo de Abelardo.

***

— Atrelamento anímico? — Tentava lembrar se já ouvira falar no nome daquele feitiço. — Não me parece uma coisa lá muito agradável.

— E tecnicamente não o é. — explicou-se o humano.

Abelardo estava vestido com maior propriedade, com um casaco escuro e calças cinzas. Durante o banho havia aparado bastante a barba, pelo menos uns trinta anos de idade deveriam ter descido o ralo da pia abaixo junto dos pelos de sua cara. Sua barba, agora, estava comportada e rente deixando seu rosto mais quadrado do que seria normalmente. A cabeleira negra permanecia longa, estava elegante e lustrosa presa num rabo de cavalo.

O bruxo estava sentado no chão, com as pernas cruzadas e com o enorme livro, aberto no pacto indicado, em cima das pernas. Malackyas estava à frente dele, tentando ler as páginas amareladas de cabeça para baixo.

— Mas como ele funciona? Quais os efeitos? Tem certeza de que funcionará? É algo reversível?

— Apesar de rústico, é um processo bem simples. Alguns ingredientes foram bem difíceis e complexos de se encontrar, mas a magia antiga é sempre atolada de elementos e canalizadores específicos que hoje a gente sabe que são basicamente inúteis. Mas eu já tenho todos os ingredientes necessár…

— Abelardo? — interrompeu-o com ar de represália.

— Foco? — questionou com um sorriso amarelo de culpa.

— Exatamente.

— Okay, okay. — Pigarreou a garganta. — A magia tem mais características de pacto do que de ritual em si, ou seja, apesar das proximidades, as duas partes precisarão estar completamente de acordo quando forem selar o vínculo, ou ele não funcionará.

— Vínculo? — resmungou desconfiado.

Ele quer roubar nossos poderes?” “Mas que poderes? Nem temos poderes!” “Não importa, ele não é confiável, tem o sangue de Alluin.” “Irá nos trair e nos prender naquele maldito grimório depois que perdermos a utilidade, como fez o outro.

— Sim, seremos vinculados a nível espiritual.

O gato estreitou os olhos.

— Isso quer dizer que iremos dividir nossa magia e nossos poderes para o resto de nossas vidas… Ou até encontrarmos um encantamento de reversão?

Então era isso o que este maldito sempre quis de nós! Nossos poderes. Não podemos nos arriscar a isto.” “Ele nos roubará os poderes e depois nos aprisionará naquele maldito livro empoeirado!

— Então é por isso que você pretendeu me ajudar este tempo inteiro? Para compartilhar (ou talvez mesmo roubar) meu arcanismo?

Abelardo bufou e revirou os olhos.

— Não me venha com estes dramas vitimizados novamente, Malackyas. Eu venho tentado encontrar uma forma de te devolver o teu corpo já faz quase noventa anos. Acho que eu mereço um pouco mais de confiança do que ser chamado de aproveitador. — Era a primeira vez que ele parecia verdadeiramente irritado e ofendido desde que chegara de viagem. — Eu estou ao seu lado tentando descobrir uma forma de fazê-lo recuperar sua verdadeira forma desde sempre. Somente nesta viagem descobri este método que, se funcionar, irá trazer seus poderes e sua verdadeira forma de volta… é apenas uma consequência o fato de que eu poderei usar suas habilidades e sua energia anímica.

Ele está mentindo. Tudo isso deve ter sido planejado desde antes de ele nos libertar do livro.

— Ó, mas que consequência inconveniente, não é mesmo? — rebateu sarcástico — Adquirir um poder milenar e completamente fora de qualquer outro que já tenha visto é realmente uma ocasionalidade desimportante e sem qualquer relevância.

— Okay. — respondia cansado e desanimado — Se você não quer testar, o jeito é guardar tudo no baú novamente. Ainda bem que ao menos os ingredientes raros dá para usar em algo interessante ou vender por um bom preço.

— É isso? Não vai insistir? Vai mesmo perder a oportunidade de conseguir poderes ancestrais assim tão fácil? Este não é o Abelardo que conheço. Tsc tsc…

— Eu já gastei três anos da minha vida atrás dos ingredientes para este feitiço.

Gastar três anos para tentar roubar nossos poderes, isso sim,” a conspiração andava de mãos dadas com a desconfiança.

— Na verdade não é um feitiço, é um ritual… ou seria pacto? — alfinetou-o.

— Que seja… Já gastei tempo demais com isto para perder ainda mais tempo com suas desconfianças e seu sarcasmo… Estou cansado da viagem, vou dormir um pouco. — Deixou o grimório no chão e levantou-se. — Depois a gente volta às pesquisas para ver se encontramos outra coisa que possa resolver seu problema.

— Como? — Malackyas parecia extremamente surpreso com aquilo. O animal engatinhou para próximo da cama onde, agora, o humano estava deitado. — Ainda pretende me ajudar?

Ele está mentindo! É tudo um jogo para você se sentir culpado. Ele quer se fazer de amigável para que você volte atrás. É tudo manipulação! Não caía nestes truques.

— Eu fiz uma promessa a um amigo, Caramelo. E por mais que ele sempre acabe dificultando as coisas, é uma promessa que pretendo cumprir. — Esticou o braço e afagou a orelha do felino. Abriu um sorriso morno e depois tratou de virar-se em cima do colchão, dando as costas ao companheiro. — Agora eu vou tirar um cochilo pois eu preciso estar disposto para a festa de boas-vindas.

Malackyas ficou estático e confuso ali, sem saber muito bem o que fazer. Uma estranha sensação de culpa começava a remoer-se dentro do estômago.

Não acredite nele, ele está tentando te manipular.” “Ele quer fazer você sentir-se culpado, é somente isto.

O gato ignorou as vozes e decidiu aproximar-se do grande livro, que ainda estava aberto na página do famigerado ritual. “Não era pacto?”, o Sarcasmo fez questão de salientar.

Atrelamento Anímico

Duas partes de água, duas partes de ouro, uma parte de fogo. Corpos e mentes entrarão em sintonia quando as almas atingirem a consonância.

Ouro é o selo da mente, água é o selo do corpo, fogo é o selo do alma. Malackyas observou cuidadosamente a descrição e os detalhes de cada efeito descrito naquelas páginas amareladas.

Não havia tanta diferença entre a relação solidificada entre um magista e um familiar comum, pelo menos não na questão do vínculo. Uma vez as duas partes entrando em acordo, o espírito vira servo incondicional do arcanista, que fica na obrigação de partilhar parte de sua energia harmônica para que o familiar possa sobreviver e assumir forma no plano físico. Entretanto, no tal do Atrelamento Anímico, apesar da contraparte espiritual também ficar subjugada à parte do plano físico, o magista não precisava doar parte de sua energia harmônica, ao invés disso, uma vez as almas em consonância, o próprio magista poderia acessar a fonte de poder do espírito e canalizá-la para o plano físico.

Valeria a pena trocar a liberdade pela restauração de seu poder?

No meio da página, os rabiscos que Myka facilmente identificou como a péssima caligrafia de Abelardo, eram dispostos com anotações, setas, asteriscos, suposições, perigos, efeitos possíveis, duvidas particulares e cálculos matemáticos.

Dentre os problemas de tudo aquilo não dar certo, estava o fato de Malackyas encontrar-se incompleto. Outra questão seria o fato do selo nulificador posto por Alluin ainda impedir que o demônio retornasse ao plano espiritual, onde poderia finalmente reincorporar seus poderes… E era exatamente este o plano de Abelardo com aquele ritual — Pacto! —, com as almas dos dois em consonância tanto o bruxo poderia canalizar os poderes demoníacos para o plano físico, como o próprio Malackyas poderia usar a alma de Abelardo como portal para atravessar o véu e entrar no plano espiritual…

É uma boa ideia,” a Ambição sussurrou sedenta em sua mente ao ler e compreender todo o plano.

Uma boa ideia se tudo ocorrer como na teoria,” a Insegurança fez questão de evidenciar os alertas anotados por Abelardo no papel, “Estamos considerando que poderemos usar a alma dele para driblar o selo nulificador, mas e se o efeito do selo também for transmitido durante a consonância? O espírito dele também ficará preso neste plano, banido do plano espiritual… E se essa coisa de corpos em sintonia acabar fazendo-nos nos fundirmos a ele? Há muitas possibilidades de risco.” Não vale a pena tentar, podemos acabar sem poderes e presos a um humano medíocre.

— Ele também correrá perigo. — Apesar de todas as vozes em sua mente, Malackyas somente conseguia pensar no quanto Abelardo estava disposto a apostar em nome daquilo.

Um bruxo arriscar perder sua conexão com o mundo espiritual não era algo que se via todo dia. Uma vez extinta a pena de morte, selos nulificadores eram a sanção mais rigorosa que havia dentro da República. Um magista que não poderia atravessar o véu até o plano espiritual tornava-se praticamente inútil. Sem o contato que a pouca energia anímica que o corpo humano possui para converter a energia harmônica em magia, um arcanista, no máximo, iria poder fabricar poções e realizar rituais simplórios... Conjurar feitiços, criar familiares, ou até mesmo funções normais no cotidiano que exigiam magia — como guiar seges sem montaria e destrancar portas e travas mais complexas — seriam feitos impossíveis... Basicamente, se a magia desse errado ali, Abelardo seria reduzido à inutilidade que, nesse momento, Malackyas era.

— Por que ele se arriscaria tanto para isso? — perguntou-se em voz alta

— Por que eu fiz uma promessa a um amigo. Eu não costumo quebrar meus juramentos… Que espécie de bruxo eu seria se não tivesse minha palavra? — Abelardo continuava acordado, estava deitado na cama e com cara de cansaço, ou talvez fosse desânimo.

— E que espécie de bruxo você será se sua alma estiver impossibilitada de atravessar o véu? Um desmorto teria mais utilidade que você. — Olhou seriamente para a figura preguiçosa do magista.

— Algumas pessoas se valem pelo risco. — Abriu um sorriso morno. Myka nunca havia sentido tanta confiança e tanta compaixão exalando de um humano antes.

Não confie nele. Ele está mentindo para nós. Ele está nos manipulando.

— E por que você se arrisca tanto por mim? — Não sabia exatamente que sentimento era aquele que germinava dentro do peito.

— Você não faria o mesmo por mim? — perguntou como se já soubesse a resposta.

Faria?

Uma coisa era inegável, durante toda a sua existência, aqueles últimos cem anos ao lado de Abelardo fora, com toda certeza, o período que mais conseguiu tornar-se íntimo com alguém. Talvez por causa de sua atual condição vulnerável e dependente, aproximar-se de Abelardo era uma questão de segurança. Fosse como fosse, não poderia negar que, por aquele bruxo, talvez ele fizesse alguma coisa. “Mas nada radical demais como arriscar a própria magia…” “Como se ainda tivéssemos alguma magia.

— Como você pode confiar tanto em mim? — Myka estava confuso.

— Por que eu não confiaria? — Sentou-se na cama, dando um rumo mais firme à conversa. — Convivo com você faz mais de cem anos. Pelo menos para nós bruxos, isso é tempo suficiente para se conhecer bem uma pessoa… ou demônio, no seu caso.

— E como pode ter tanta certeza de que me conhece? Posso estar te usando, me aproveitando de você. Sou um demônio, sua raça deveria me odiar pelos séculos e séculos mais de escravidão. Você deveria temer que eu restaure o meu poder e tente escravizar magistas novamente… Você deveria ter medo de mim! — O gato saltou em cima da cama, sentando-se ao lado do humano e encarando-o com um pouco de decepção.

Abelardo riu-se.

— Ó, então tudo isso foi por causa do seu orgulho ferido, pulguento? Por que eu teria medo de você, Caramelo? — Afagou a cabeça do bichano. — Eu conheço você, eu tenho apreço por você… eu confio em você.

Malackyas baixou a cabeça, envergonhado.

— Mas é diferente, você é apenas um humano. Deveria ter medo de demônios como eu. — gabou-se.

Abelardo gargalhou e colocou o gato em cima de suas pernas, afagando as costas dele. Myka ronronou.

— Mas eu confio que você, mesmo em todo o seu poderio diabólico — caçoou —, não irá me fazer mal algum…

— Mas você não tem nem uma ponta de medo, nem uma ponta de dúvida? — A voz ecoava num fio fraquejado. — Eu fui um demônio selado pelo teu antepassado, ele não teve motivos para fazer isso?

— Com isso eu concordo. Ele te selou por bons motivos, acredito eu. Mas ele também destruiu e erradicou por completo vários outros demônios… alguns, inclusive, bem mais poderosos e perigosos que você.

Malackyas estreitou os olhos como se aquilo fosse algum tipo de ofensa.

— O que quero dizer… — o humano voltava a falar — é que se Alluin o selou ao invés de o destruir, é porque ele deveria acreditar que você não merecia ser destruído. Seja por qual motivo ele tiver feito esta escolha. — Mais uma vez o homem levantou o gato e fê-lo encarar a própria face. — Como eu já disse, Caramelo, eu confio em você e sei que você não irá me fazer mal nenhum. Assim como acredito que você não tem qualquer medo de mim. Ou ao acaso tem?

Myka tentou desviar o olhar, mas Abelardo forçou-o a olha-lo de frente.

— Às vezes eu tenho medo de que você possa me selar novamente no grimório de Alluin. — As orelhas peludas rebaixaram-se em timidez.

Abelardo fez uma careta de troça e repreensão.

— Selar você? Mas como eu faria isso? A velha Isolda já queimou aquele livro faz décadas! Mesmo que eu quisesse(numa hipótese impossível), eu não teria mais o livro mágico para fazer isso… E não conheço nenhum magista atual capaz de confeccionar um grimório com a propriedade necessária para selar a consciência de um demônio.

— D-des-destruído? — Aquela notícia pegou o gato completamente de surpresa. Ele não sabia mais o que dizer ali. Um sentimento alienígena e inédito floresceu-se-lhe dentro do peito como nunca havia sentido igual.

— Sim, completamente destruído. — sorriu acolhedor.

Um singelo momento de vergonha e silêncio teceu-se entre os olhares.

— Abelardo… — evocou aquele nome com timidez.

— Sou todo a ouvidos.

— Você ficaria irritado demais se eu dissesse que estou disposto a tentar o ritual agora? — Desviou os olhos verdes, completamente envergonhado por estar naquela situação.

O bruxo respondeu-o com um grande sorriso adornado pelos dentes grandes e brancos.

***

A mandala ritualística havia sido desenhada com bastante destreza no assoalho. Os selos que representavam o ouro estavam desenhados ao norte e ao sul da mandala, os símbolos que indicavam a água estavam riscados a leste e a oeste. No centro do pentagrama ritualístico, o selo do fogo reinava com uma vela espiritual de chama roxa bailando dentro da runa mágica.

— Isso é venenoso? — Myka perguntou enquanto observava e farejava um líquido viscoso, negro, borbulhante e fumegante que estava dentro de uma taça esculpida em mármore.

Tanto o cálice quanto o felino estavam dentro da mandala ritualística.

— Provavelmente. — respondeu temeroso e com nojo.

— Eu só tenho que beber isso e o pacto estará completo?

— De acordo com a descrição, sim. — disse aparentemente inseguro.

Não beba!“Perderá os poderes de vez!” “Ele quer nos matar” “Ele irá te selar novamente” “Criatura patética, morreremos por teus erros.” Todas as vozes em sua cabeça diziam para que ele não fizesse aquilo.

“Eu confio em você,” as palavras de Abelardo ecoaram dentro de sua cabeça. Automaticamente todas as demais vozes silenciaram.

Com determinação, o gato fechou os olhos, respirou fundo e aproximou o focinho do cálice. Lambeu o conteúdo negro e borbulhante o mais rápido que conseguiu.

O gosto era terrível, Malackyas tossiu e engasgou-se diante do desgosto incalculável.

— E então, sentindo alguma coisa de diferente? — Abelardo parecia animado e esperançoso.

— A vontade de vomitar conta? — replicava ainda tentando segurar as ânsias.

Os dois ficaram ali, encarando-se desentendidos esperando por um acontecimento que não vinha.

— Será que fizemos alguma coisa errada? — Myka quebrou o silêncio construído ali.

— Talvez eu tenha que fazer alguma coisa. Eu tenha que te dar alguma ordem ou coisa do tipo. Será?

— Talvez. — Tentava disfarçar a decepção naquele fracasso.

— Deixe-me tentar... Entidade espiritual que a mim serve, mostre-me sua verdadeira forma! — Esperaram algum efeito.

Nada.

— Parangaricotimirruaru!

Nenhum efeito.

— Avra Kedabra, Al Qasam!

Coisa nenhuma.

— Servo espiritual que a mim deve obediência, como teu mestre ordeno que revele-se!

Inércia.

— Hocus Pocus, tontus talontus, vade celerita jubes!

Inefetivo.

— Volte à forma humilde que merece, carta Clow!

Malackyas afiou o olhar, repreendendo-o pela piada inconveniente naquele momento.

— Eu não sei mais o que testar. — rebateu tristonho e extremamente desconsolado. — Eu sinto muito, Caramelo, não foi dessa vez. — Alinhou um muxoxo nos lábios finos.

Pegou o gato nos braços e levantou-o, segurando-o pelas axilas, aproximou os rostos um ao outro.

— Eu prometo que a gente não vai desistir, okay? — Tentava animar o mascote entristecido.

Diante daquele carinho e daquele encorajamento tentado por Abelardo, Myka lambeu o nariz do homem numa demonstração de todo o afeto que havia recebido e, também, numa tentativa de consolar o bruxo que mostrava-se tão desolado quanto ele.

Assim que a língua áspera do gato tocou o nariz humano, uma estranha sensação calorosa percorreu o corpo dos dois. A mandala ritualística desenhada no assoalho começava a incandescer e o cheiro de madeira queimada empesteou o aposento. Uma rajada sombria de vento sussurrou palavras que nenhum ali conseguia compreender. Os móveis tremiam no chão e nas paredes. Pequenos objetos até mesmo caíam, livros choviam das prateleiras e eram arremessados pelo quarto.

Abelardo e Malackyas entreolhavam-se confusos e assustados. Uma inexplicável e densa fumaça esverdeada passou a ser expelida pelo corpo do bruxo, um aroma cítrico preencheu o ar. O vento logo tratou de guiar a bruma verde na direção da vela que queimava no centro da runa mágica. A chama roxa parecia devorar aquela fumaça sobrenatural, o fogo aumentava à medida que o verde era consumido. Quando toda a névoa expelida pelo corpo do arcano finalmente fora consumida pela luz da vela, os ventos sopraram ainda mais fortes dentro do lugar e as labaredas arroxeadas da vela começaram a dissipar-se pelos ares. Salamandras descontroladas de fogo e faíscas começaram a dançar frenéticas transformando tudo ali num vendaval purpúreo.

Em meio aquela tempestade escaldante, o corpo pequeno do gato brilhou vividamente e começou a flutuar. Malackyas observava a tudo com um pânico evidenciado em seus olhos esverdeados, as fendas revirando-se atentas dentro de suas órbitas. Parecia tentar falar, miar, desesperar-se, mas não conseguia mover-se nem um milímetro sequer.

— Myka! — O bruxo, preocupado, tentou segurar o demônio. Mas fora impedido.

As flamas púrpuras envolveram o felino, aprisionando-o num globo infernal. Um forte e intenso brilho avolumou-se rapidamente dentro da esfera de energia. Uma explosão quente de luz preencheu o quarto e cegou momentaneamente o humano.

— Mas pelas barbas de Merlin! — Abelardo reclamava enquanto tentava enxergar o que havia acontecido. Estava confuso e deitado no chão. Logo tentou levantar, mas sentiu um peso incomum em cima de seu corpo, impedindo-o de realizar tal ação. — Mas que merd... — Quando sua visão finalmente retornou, os olhos de Abelardo arregalaram-se em surpresa e espanto. — Malackyas? É você?

A enorme criatura estava sentada em cima de sua cintura, com os joelhos apoiados no chão. Era um grande tigre humanoide — que de pé deveria alcançar os dois metros, no mínimo — de pelos laranjas, brilhantes e aconchegantes como fogo. Os olhos verdes espectrais observavam as próprias mãos, e estas logo trataram de apalpar o próprio corpo, como se tentassem averiguar se tudo aquilo era realmente verdade. A coleira com o guizo dourado continuava presa ao seu pescoço, somente ajustando-se à largura de sua nova forma; o ar de graça combinava com a sensação indescritível que o inundava.

— Myka? Este é seu corpo? — Observando o sorriso desenhado na expressão do felino, o bruxo queria ter certeza de que haviam conseguido antes de comemorar.

— Sim… — respondeu incrédulo com a felicidade ribombando nas entranhas. Malackyas não conseguia tirar os olhos do próprio corpo, queria ter certeza de que tudo estava ali.

— Nós conseguimos, então? Você sente seus poderes?

O demônio parou de analisar-se e encarou os olhos negros do amigo. Abelardo sorria profundamente e, de uma forma incompreensivelmente contagiante, Myka viu-se sorrindo de volta. Uma força alienígena apoderava-se de suas reações e impediam-no de agir de qualquer outra forma. Quando o bruxo começou a gargalhar de felicidade a criatura animalesca sentada em sua cintura o acompanhou num coro histérico de felicidade. Ria e alegrava-se com Abelardo, escutava-o rir, sentia-o rir, percebia-o dentro de si e sentia-se dentro dele; era como se uma gravidade suave conectasse-os e unisse-os. Nunca presenciara tanta felicidade e alegria dentro de sua mente. Aquilo não poderia vir somente de si... E não vinha.

Também percebia o poder correr dentro de si, aquela sensação antiga de imponência, de indestrutibilidade. As chamas diabólicas aqueciam o sangue que percorria suas veias. Estava forte e completo, como há muito, muito, muito tempo não sentia.

“Mate-o!” “Vingue-se do sangue de Alluin!” “Agora que ele já nos restaurou, mate-o!” “Não precisamos mais dele.” “Acabe com ele enquanto ele não pode, não deixe ele dar nenhuma ordem ou poderemos nunca ter outra chance.” Num coro uníssono as vozes de sua cabeça pediam por vingança, pediam por sangue.

— O que são essas vozes? — O bruxo perguntou confuso e desnorteado.

Malackyas espantou-se. Conseguia perceber toda insegurança e dúvida que o humano exalava, era como se elas percorressem seu próprio corpo também.

Ele podia ler seus pensamentos! Ele ouviria todos os seus pesadelos! O felino tentou calar as vozes que mandavam matar Abelardo. As orelhas, antes de pé, murcharam envergonhadas. Estava com medo e extremamente desconcertado de que ele pudesse dar ouvidos às vozes em sua cabeça.

— Elas são eu… — rebateu entristecido e cabisbaixo — Me desculpe por ter que ouvir isso… Não foi minha intenção. — Os olhos umedeciam. — Dê-me somente um minuto e irei conseguir calá-las.

Myka cerrou os olhos e tentou concentrar-se em parar as palavras vivas de sua consciência fragmentada.

— Não… — Abelardo tocou na face do demônio, fazendo um carinho doce em seu focinho ao despentear seus bigodes pontudos. — Deixe que falem… Eu quero conhecer você… todas as suas faces... cada ferida... cada pedaço...

Os olhos antes marejados do felino encheram-se de lágrimas de alegria. Sentia-se compreendido e querido. Havia se enganado ao pensar que estava completo como um dia já fora. De fato, estava inteiro, mas, somente agora, encontrava-se completo como nunca antes estivera. Sua existência gravitava em direção a Abelardo. Não mais estava sozinho, afinal.

Num instinto impetuoso de um sentimento quase desconhecido de tão antigo, a fera deitou-se em cima do homem e começou a esfregar sua própria face peluda contra a barba dele. A resposta carinhosa do bruxo chegou na forma de um afago caricioso em sua nuca felpuda.

— Eu senti tanto a sua falta… — ronronava e esfregava-se contra o corpo quente do humano. — Por favor, nunca mais me deixe sozinho com aquela velha maldita.

Abelardo ria-se e gargalhava. Abraçava o animal com força e afeto enquanto Malackyas continuava a roçar a face contra a sua.

— Myka? — Tentava chamar a atenção do demônio. E aquilo tudo mostrava-se extremamente estranho, era como se ele já soubesse o que seria dito, ainda assim, não fazia questão de impedir Abelardo, queria escutá-lo, senti-lo, sê-lo. — Esta vontade esquisita que estou tendo de ir caçar um pombo e deixar ele em cima da minha cama… Ela vem de você ou eu estou ficando louco?

— Ela vem de mim, sim. — Não parava um segundo de abraçar e acariciar o humano com o próprio rosto.

— E o que esta vontade significa?

— Que eu estou morrendo de fome. — mentiu descaradamente.

Os dois continuaram abraçados no chão, simplesmente aproveitando aquele momento inédito em suas vidas. Estavam conectados como nunca estiveram com ninguém.

— Caramelo?

— Sim? — O animal finalmente parou de demonstrar todo o afeto e encarou o olhar negro do bruxo, sabia o que viria dali, mas aquilo certamente merecia sua atenção. Seus olhos verdes estavam grandes e brilhantes; as orelhas erguidas ao máximo; a cauda, ao alto, tinha sua ponta bailando timidamente naquela atenção construída.

— Eu também te amo, Myka.

E seu coração, então, sorriu como nunca antes.


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Notas finais do capítulo

Se você conseguiu chegar até aqui inteiro, gratuleixons.

A fic acabou sendo feito em umas 48 horas, mudei de plot algumas várias vezes e tinha outros planejamentos para a fic, não achei que saiu nada brilhante, mas deve ter dado pro gasto.

É isso, agradecido fico a quem deixar aquele review dizendo o que gostou, o que não gostou, sugestões de melhoras e tudo mais...

Um abraço do urso.

Woof!