Serena escrita por Maria Lua


Capítulo 10
Dossiê completo




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Entrei na sala da diretora um pouco encabulado. Ao sentar em sua mesa já tinha tudo programado. Sabia o que dizer e de que maneira. Tinha certeza de que ela entenderia minha situação e que iria ajudar.

– Bom dia, Sr. Humphrey. Como posso ajudá-lo? – ela sorriu ao perguntar.

– Bom dia... Bom, não sei bem como te pedir isso. Mas desde a última vez que estive aqui pensei bastante... É sobre Serena Doolitle. – falei bem devagar, com o tom de voz baixo. Ela esfregou a testa e tirou os óculos.

– O que ela fez dessa vez? – perguntou impaciente.

– Nada demais, na verdade. Mas a postura dela em sala de aula, o desinteresse pela matéria, esse tipo de coisa... Sem mencionar que ela faltou a uma aula. Eu queria entender mais a situação dela para saber o que pensar e como agir diante dela. Se devo tratá-la normalmente, ser mais rígido, cobrar mais, ou relevar por conta de seu histórico. Queria saber se você podia me contar mais sobre ela. – pedi, escondendo os dedos cruzados debaixo da minha cadeira.

Ela soltou o ar e levantou-se. Começou a mexer em um armário, até pegar uma pasta e voltar para a mesa.

– Às vezes esqueço que você é novo no colégio. Nunca menciono muito porque todos os professores estão habituados a lidar com ela, mas acho certo você saber com quem convive. – ela me entregou a pasta escrita Serena Doolitle em letras garrafadas e vermelhas. – Essa é a pasta dela, quatro vezes maior que qualquer outra pasta do colégio. Ela tem quinze anos de muita história. Leve para seu quarto e leia em seu tempo livre. Não tem pressa para me entregar. Caso eu tenha novas coisas para arquivar, entrego a você para guardar. Mas, por favor, não mostre a ninguém. Faço isso por confiança a você. – ela falou.

Folheei aquelas folhas, agradeci e me retirei. Fui direto para o quarto ler enquanto não tinha outra aula próxima. Mal sabia por onde começar. Era um dossiê completo sobre ela, incluindo fotos, cartas, rabiscos. Comecei pela infância.

Pelo que li, Serena nasceu em uma família perturbada. Seus pais brigavam muito, o que fazia a menina foragir-se na casa da avó materna durante muito tempo. A sua avó sofria de Alzheimer, o que a fazia não ser muito adequada para cuidar da menina. Serena caía, se machucava, e tem inclusive cicatrizes de queimadura e fraturas, mas de qualquer maneira esse ambiente descuidado era ainda mais seguro do que entre seus pais, que estavam sempre com uma arma apontada para a cabeça um do outro, metaforicamente falando, é claro.

Aos cinco anos de idade, em seu aniversário, surpreendentemente o seu pai chegou cedo. A sua mãe, nunca chegou. Ela ficou decepcionada, estava na época em que as meninas tinham a mãe como maior heroína. Eu sabia como era isso, meu pai já me inspirou muito anteriormente. Ela esperou o dia inteiro para sua mãe lhe desejar um feliz aniversário, mas ela não apareceu. E não apareceu também na semana posterior. E no mês seguinte, o mesmo. Até que encontram o seu corpo. Sua mãe fora sequestrada, estuprada e morta. Fora, também, mantida em cativeiro durante muito tempo. Teve um mês difícil antes da morte. Todos achavam que Serena nem suspeitava do que acontecia por conta de sua idade, mas ela admitiu quando teve acompanhamento psicológico que sempre soube de tudo. Veio de família muito rica, então tinha muitos eletrodomésticos que a ajudaram a descobrir isso da pior maneira. Em seu dossiê estava escrito: “e esse foi o início de toda questão patológica de sua vida, assim como seus distúrbios. Porém seus problemas se agravaram quando, isolada, ninguém notou que ela precisava de ajuda. Começando a tomar os remédios muito tarde em sua vida, aos dez anos de idade, a menina não tem muitos avanços.”

Fechei o dossiê imediatamente. Era como ler um livro do Stevenson. A angústia me dominou de um jeito incontrolável. Eu sabia que ela teve um passado difícil – a diretora havia me advertido disso – mas não imaginava os detalhes disso. Não pude continuar a ler, era demais para mim. Era real.

Serena, aquela doce menina, delicada menina, atraente, sedutora, uma versão benigna da Órfã – mulher em corpo de menina – toma remédios controlados, tem reais distúrbios psicológicos. Foi uma menina boa, uma menina inocente, mas foi forçada pela vida e pelo azar a ter que enfrentar coisas que sequer mereciam existir. Como eu ia encará-la agora? Não podia tratá-la como tratei hoje: ignorando a presença, fugindo. Ela não merecia isso. Já foi excluída e destratada muito em vida. Mas não podia mais vê-la como algum objeto de prazer, como uma mulher que desejo. Eu sentia uma ternura imensa por ela. Precisava encontrá-la.

E fui. Saí do quarto e fui ao seu encontro. Quando finalmente a encontrei, ela estava sentada no pé de uma árvore lendo Laranja Mecânica. Uma pessoa com distúrbios de personalidade podem ler coisas assim? Pensei, mas logo desviei esse pensamento. Ela ainda era alguém perfeitamente normal. Quando me viu sorriu cautelosamente, fechando o livro e o pondo ao seu lado. Eu me sentei ao seu lado, mantendo certa distância.

– Pensei que não quisesse me ver mais. – ela falou.

– Não queria. – respondi. Como poderia tratá-la normal? Todo aquele mistério de seus olhos, aquela aparência mantida em segredo tinha sido revelado para mim. Não era maturidade apenas, e muito menos sedução. Era dor. A dor entorpecia seus olhos.

– E agora quer? O que o fez mudar de idéia? – ela sentou mais próxima de mim. Sorrindo. Seu sorriso encantador já me parecia diferente. Era como se o que eu li desse mais peças para o quebra cabeça que é essa garota.

Eu não devo contar para ela o que sei. Não devo destratá-la. Eu a olhava e ainda lembrava do nosso beijo, a via como uma mulher, como a mulher que eu tanto queria. Ainda imaginava a cena dela beijando outras meninas no banho, lembrava dela tirando a blusa em minha frente, mas tinha consciência de que ela era mais que isso. Ela era uma alma desesperada, e por algum motivo se sentia à vontade em minha presença. É claro que isso não justifica o fato de termos um caso, mas eu me sinto orgulhoso e honrado por conquistá-la assim.

– Eu estive pensando... – comecei. – Você gosta de filmes?

Ela riu.

– Está dizendo que mudou de idéia vendo um filme? – perguntou. – Não me diga que assistiu O Despertar da Paixão e se lembrou de mim? E sim, eu amo filmes.

– Ótimo. E não, assisti Azul É A Cor Mais Quente, e aí sim me lembrei de você. – consegui arrancar uma gargalhada sua. – Pois bem, você gosta de filmes. E gosta de aventura?

– Aventura sendo gênero de filme ou de fato viver uma aventura? – seus olhos brilhavam ao falar comigo. – Bom, de qualquer maneira, amo os dois. O que está planejando? – ela arqueou a sobrancelha sorridente. Ela mexia nos cabelos. Com certeza já havia notado o quanto eu amava aquele movimento.

– Que tal eu, você, meu quarto, assistindo Before Sunrise inocentemente a dois passos de distância um do outro? – sugeri, me arrependendo de imediato.

– E se me pegarem? Se a sua ex namorada aparecer, ou a diretora, ou se quando eu sair alguém me vir? Não está mais preocupado com seu emprego? – perguntou, aproximando-se.

– Essa é a graça da aventura. – falei.

– Bom... Eu posso pensar no caso... – ela fingiu estar pensando, me fazendo rir com o seu jeito petiz. – Eu vou, com uma condição. Quero que haja menos de dois passos entre nós. Tudo bem?

– Então... Às oito e meia no meu quarto? Eu mandaria um chofer te buscar, mas você sabe... É uma aventura. – dei de ombros, rindo junto a ela. Meu riso foi contido no mesmo instante quando olhei por trás dela a Violet nos observando. Agora ela sabia. Sabia quem era a aluna. Rapidamente e de maneira discreta eu me despedi da Serena. Tentei parecer pouco afetivo, mas não sei bem se tive êxito, ainda mais não sabendo por quanto tempo ela esteve ali.

Eu precisava proteger Serena. Não só da Violet, afinal ela seria só uma dor de cabeça, uma “inimiga” desnecessária. Mas dela mesma. E mantendo-a perto eu consigo isso de uma maneira mais perfeita, sem falha. O meu carinho só crescia por essa garota, quero o seu bem, e o que acontecerá nessa noite... Bom, isso eu não faço ideia.


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Notas finais do capítulo

Olá, gente! Primeiro, quero agradecer pelos comentários muito lisonjeiros. Vocês me incentivam muito. E segundo: um agradecimento especial ao Raysing. Bruno, que recomendou a minha história com palavras tão gentis! Ele, meu primeiro leitor, é também alguém que me alegra muito com seus comentários! Esse capítulo foi para você! Um beijo!