Se eu fechar os olhos escrita por anabtribers


Capítulo 2
Um




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/657270/chapter/2

Estou encarando atonitamente minha tigela de cereal encoberta pelo leite que eu tive de comprar, para repor o anterior estragado, e percebendo que não vou comer isso.

Não tem maneira alguma de eu conseguir tomar meu café da manhã.

Sei que simplesmente não vai descer, e minha dor de cabeça não me ajuda a pensar racionalmente agora.

Faz dias que eu não me alimento direito, mas não é como se meus pais fossem se importar. Até porque na cabeça deles eu sou só um adolescente cheio de frescura de adolescente, que faz coisas de adolescentes cheios de frescuras.

Eu levanto e atiro todo o cereal na lixeira ao meu lado. Não acordei bem hoje, de maneira que, se eu comer isso, vou provavelmente vomitar em cima do carpete de mamãe — que já tem cor de vômito.

Olho para minha mãe, e ela me encara por cima dos óculos escuros¹. Dá pra ver que ela reprova o ato de jogar fora meu lanche, mas ela não diz nada a respeito. Talvez tenha medo que eu fale na cara dela que fui eu que comprei o leite e o cereal, com o meu dinheiro, que ganhei atuando no teatro que ela odeia. Ou talvez ela seja alheia demais, e apenas não esteja nem aí caso eu morra desnutrido.

Se eu tivesse pais sensíveis, com sentimentos, e se eles se importassem comigo como pais normais fazem, teriam me dito para não fazer aquilo. Teriam me dito para comer o cereal, mas faz tempo que nada disso acontece por aqui. Os meus não ligam para minha vida, não se importam com minha saúde e muito menos com a crise atual do país. Eles nem sequer estão ligando para as milhares de criancinhas morrendo de fome na Síria, e duvido muito que eles se importem com bebês mortos também.

Eu me sinto mal por estar jogando a porcaria do cereal fora, mas gosto de fazer meus pais pensarem que deveriam me educar — por mais que eu seja educado (ou medroso) demais para dizer isso na cara deles. E não é como se eles fossem me dar um pouco de atenção caso eu realmente dissesse que preciso de educação como qualquer outro adolescente.

— Adeus, mamãe — digo me virando para a mulher que está sentada em minha frente. E eu realmente quero que ela responda, porque apesar de tudo, eu ainda me importo o suficiente para me despedir dela. Eu não sou um filho ingrato, só quero que ela olhe para mim, e me diga adeus. Só isso.

Mas ela não responde, ao invés disso, balbucia um: "peça dinheiro a seu pai" enquanto bate violentamente a ponta das unhas  contra a tela do Smartphone².

Tenho vontade de tirar o celular da mão dela e fazê-la olhar em meus olhos, mas apenas me viro para meu pai, esperando que ele tenha ouvido minha despedida e, portanto, corrija minha mãe ou me dê uma porcaria de adeus.

Ele também não faz isso. Ele nem sequer me nota. Está concentrado demais em seu tablet, que não está ao menos ligado. E isso só mostra que eles me ignoram porque querem.

Eu rio.

Rio porque nem sei o que ainda estou fazendo aqui. Eu já deveria ter dado o fora. Já tenho idade suficiente para isso.

Eu literalmente não sou obrigado a passar por toda essa droga, mas eu não quero deixar meus pais e não sei o porquê. Talvez eu só queira provar que não sou o culpado disso tudo. Eu não sei.

Eu não sou o vilão, mas tenho que arcar com as consequências de ser diferente.

Passo por todas essas coisas apenas por ser diferente.

Que mundo maravilhoso esse.

Bem vindos à minha humilde e bem estruturada vida.

Às vezes até eu sinto pena do ser patético e desajustado que sou, e me odeio por isso.

Eu não sei o que estou fazendo nesta casa. Eu nem deveria esperar mais nada desses dois, mas algo em mim se recusa a acreditar que estou sendo vítima de tanta indiferença.

Logo eu.

Sinceramente, com toda a infinidade de problemas que eu tenho, grande parte emocional, era de se esperar que meus pais tivessem um cuidado especial comigo. Mas parece que eu vivo em um mundo de robôs. Não como os robôs de Eva, que se preocupam com o bem-estar de seus criadores, e sim como robôs de uma revolução apocalíptica — daqueles que andam por aí atirando em humanos.

É como se meus pais fossem zumbis. Eles nem sequer sabem como estão me deprimindo. Eles não fazem ideia do quanto estão me machucando. E isso só me magoa ainda mais, porque eles nunca procuram saber como eu estou. Por isso que não fazem ideia do quanto estão ferrando minha cabeça.

Meu cérebro está ficando mais ferrado que já é, a cada dia que passa.

E eu não suporto olhar para aquelas duas pessoas indiferentes agora, então eu só pego minhas chaves e saio de casa.

Já no lado de fora, respiro o ar fedido e enjoativo do Brooklyn, e me pergunto no que raios Diana³ estava pensando quando nos arrastou para cá — provavelmente em como se livrar da culpa, já que eu só tinha onze anos na época, e não era velho o suficiente para ser chamado de adolescente frescurento. Talvez ela até levasse meus problemas a sério, mas não suportasse levar a culpa por ser uma mãe negligente e irresponsável.

As ruas são uma embolação e tudo é muito barulhento, de forma que eu caminho todo o trajeto até a estação rodoviária apenas parcialmente consciente. Eu odeio ignorar completamente as pessoas que passam por mim, mas infelizmente é o meio menos doloroso de sobreviver ao meu dia porque sei que se eu olhar para essas pessoas, vou ver que elas estão tão tristes e mentalmente abatidas quanto eu. E tudo isso é horrível demais.

Às vezes faço essa coisa de gente deprimida que é ler as pessoas. Passo tanto tempo as observando na rua, enquanto caminham apressadas para seus empregos que odeiam ou então enquanto voltam para suas casas com expressões miseráveis no rosto, que posso facilmente recitar o quanto são previsíveis.

Juro que não entendo esses zumbis que andam por aí como se não tivessem nenhum aspecto bom em suas vidas... Quer dizer, todos eles têm famílias que eles mesmos construíram, todos têm a vida que escolheram ter, e mesmo assim são infelizes. Todas essas pessoas não aproveitam a sorte que têm.

Eu não as entendo e não gosto de acreditar que meu futuro será como o delas.

Uma vez, eu disse a Sr. Friedrich(4) que eu mesmo poderia mudar meu destino.  E ele me olhou nos olhos e disse, em sua voz mais confiante: "Mas não mudou. Se tivesse mudado algo, o que você faz aqui então?". E eu gostei da resposta porque ela era engenhosa e verdadeira.

Eu sempre tive a mania de querer parecer revolucionário, como se eu simplesmente não aceitasse os aspectos ruins em minha vida. Mas eu não posso mudar meu destino de fato. Quer dizer, como vou mudar algo que nem sei o que é? E se eu estivesse apenas me desviando de meu caminho, antes de retomar a estrada principal de novo?

Depois que Sr. Friedrich me fez calar a boca e prosseguiu com o ensaio experimental de Um Sonho de Uma Noite de Verão, eu decidi que não iria confundir futuro com destino novamente. Prefiro só ir aguentando tudo isso até onde der.

Toda essa bobagem vai além de minha compreensão.  E é basicamente por isso que eu tenho medo de observar os zumbis que passam por mim. Não quero correr o risco de permitir que a vida medíocre deles se torne a minha(5).

O ônibus demora chegar, e eu odeio esperar para ir ao teatro. Simplesmente amo o teatro. Esperar é como uma tortura. Poder atuar é uma das únicas coisas que me faz sorrir, mesmo que só um pouco.

Atualmente só existem duas coisas no mundo que me impedem de desistir de viver: o teatro, meu glorioso, adorável e consolante teatro, e Isabel. Mas não quero falar de Isabel agora. Ela mexe com minha cabeça mais do que deveria. Digamos que ela tenha o necessário para me fazer querer beijá-la, mas não posso dizer que a amo ou algo assim, até porque eu nem sequer ainda tive coragem de falar com ela.

Eu definitivamente não faço o perfil de menino apaixonado, mas pensar em Isabel agora ou em como ela tem influência em minha estabilidade não ajuda nem um pouco a provar isso. Então eu excluo qualquer pensamento direcionado a ela antes que eu esteja instável e sentimental de novo(6).
   

Para a minha decepção, o ônibus só chega depois de meia hora de espera, de forma que é meio dia agora e provavelmente estou atrasado para o teatro, o que significa que não poderei ajudar Thomas hoje à tarde e consequentemente terei de lidar com sua insatisfação contra minha pessoa.

O ônibus é uma das coisas que faz minha melancolia cotidiana se transformar em uma depressão contínua. Quase sempre, ele está lotado de zumbis(7). Ou então, de pessoas indiferentes. Eles me lembram mais que tudo a Diana e a meu pobre pai. Eu não os suporto quase sempre, algumas vezes eu abro exceções, e geralmente é quando tem adolescentes no ônibus. Não dá pra odiar de verdade os adolescentes normais, aqueles bem normais mesmo — os diferentes de mim. Eles são cheios de vida. Estúpidos? Sim! Previsíveis? Com certeza. Tediosos? Também. Mas felizes.

Quando o ônibus para, eu consigo notar que ele está quase vazio.

Está diferente, e isso me anima.

Eu sou uma das duas únicas pessoas nele.

Mostro minha carteira de estudante, que já está velha demais para ser usada, porque eu já terminei o ensino médio. Mas o motorista está cansado e distraído demais para notar esse detalhe, então ele me deixa entrar.

Consigo perceber que a pessoa que hoje me fará companhia no ônibus é uma garota apenas pelo antiquado vestido azul que ela está usando — já que seu cabelo é curto como o de um garoto. É quase anacrônica a maneira como meu cabelo é tão comprido enquanto o cabelo dela é tão curto. Meu cabelo é enorme, na verdade. Ele é de um louro-escuro, passa dos ombros, e cai por cima dos olhos caso eu não faça essa coisa de penteá-lo, que obviamente eu não faço.

Se eu não tivesse essa aparência tão fechada e introvertida e se não andasse por aí como se estivesse sentindo dor, ou como se fosse socar a primeira pessoa que interagisse comigo(8), seria certamente confundido com uma menina. 

Nós dois estamos obviamente fora dos padrões. E eu simpatizo com aquela garota quase imediatamente.

Observá-la, adiciono em minha lista mental.

Vou observá-la, mas resolvo me afastar.

Caminho para o fundo do ônibus, bem longe dela — que está entre os primeiros bancos.

Decido que não vou me aproximar. Principalmente porque ela está sorrindo enquanto digita no celular, e eu não quero que ela pare de fazer isso para me notar.

Ela está com fones brancos nos ouvidos, e mexe os lábios junto com a música.

Deve ser a primeira vez que vejo alguém fazendo isso no ônibus. E é hipnotizante demais para que eu consiga desviar o olhar.

Ela nem se dá conta de que eu  estou observando-a, e quando ela para de digitar no celular por alguns segundos, vira o rosto na direção contrária, então não consigo ver como ela é. Mas tenho uma ligeira impressão de que tem sardas pelo rosto todo — o que eu acho muito bonitinho.

O ônibus para mais duas vezes, e uma multidão entra, antes que eu perca a menina de visão. E eu lamento, porque o sorriso dela é o primeiro que eu vejo hoje.  Eu gostei dele, queria poder continuar olhando aquele sorriso. Ela parecia feliz. E isso é algo que eu raramente vejo no meu cotidiano: felicidade.

Desde que as coisas ruins aconteceram, e consequentemente eu tive de me mudar para Nova York, posso contar nos dedos quantas vezes eu sorri como aquela menina. Faz tempo que não sorrio com sinceridade. Abro uma exceção para o teatro, porque quando estou atuando eu me envolvo em um sentimento tão bom, que é o mais próximo da alegria que eu possa imaginar. Mas eu daria tudo para poder sorrir espontaneamente como aquela garota.

Só volto a vê-la quando o ônibus para em frente a uma escola bonitinha, bem diferente de minha escola antiga(9).

Ela sai do ônibus e literalmente saltita em direção ao portão — o que faz eu me lembrar de uma criança feliz e estereotipada.

Fico me perguntando quantos anos ela tem, onde mora, e se é usualmente feliz assim mesmo. Ela parece ter mais ou menos minha idade, talvez um ou dois anos mais nova, mas definitivamente parece ser bem mais infantil. Um tipo de infantilidade agradável, como se ainda não tivesse motivos para agir como um zumbi.

É como se ela não tivesse sido corrompida com toda a tristeza e estresse adulto.

O ônibus já não tem mais nenhum atrativo. Todos não passam de zumbis agora. Então eu fecho meus olhos e mergulho no nada até que eu chegue ao meu ponto.

Quase posso ouvir o lamento e as reclamações — e até mesmo as autorrecriminações — ecoarem de suas almas. O clima fica pesado e insuportável quando os ternos ambulantes invadem o ônibus. Sei que a maioria aqui não quer exatamente estar aqui, neste ônibus comercial, e gosto de imaginá-los como experiências.

Imagino que eles são apenas experimentos humanos para uma hipotética inclusão social pós-fim apocalíptico zumbi mundial. Sinto-me melhor assim. Fica mais fácil suportar. E não dá pra culpar experimentos, de qualquer jeito.

Ninguém acusaria um rato de laboratório de negligência paternal(10).

Desço do ônibus em frente ao teatro exatamente quando meu relógio marca uma da tarde. E como estou absolutamente atrasado, eu corro.

Paro em frente ao teatro, e como sempre faço, aprecio a antiquada construção à minha frente.

O teatro que eu tanto amo, não passa de um prédio velho e mal conservado. Ele tem uma altura mediana, não é chamativo e nem atrativo para a maioria das pessoas comuns. Pintura bege descascando em alguns lugares aqui e ali, a entrada tem três roletas que não funcionam mais, e a bilheteria foi transformada em uma espécie de secretaria.

Antigamente, o teatro funcionava. Quer dizer, várias peças eram apresentadas ali. Mas desde que um louco insatisfeito chamado Antonin Artaud resolveu fazer o teatro contemporâneo virar norma, nosso humilde teatro parou de atender todas as exigentes características da Arte Moderna. Infelizmente.

Eu acho tudo isso uma tremenda babaquice. Quer dizer, o que nós — OCIDENTE — temos a ver com a porcaria da Europa?

Parece que todos sentem necessidade em descaracterizar o passado. Sentem necessidade em destruir toda a glória, e modernizar tudo com "ideias inovadoras", que para mim não passam de grandes e trabalhadas frescuras.

Não me interpretem mal, não estou entrando em um contexto religioso e nem ético ou algo assim.

Longe disso.

O ser humano faz bem em evoluir.

Não estou dizendo que deveríamos voltar a queimar pessoas nas fogueiras e nem nada do gênero.

Meu ideal só se estende até o teatro, mais especificamente, até onde todos resolvem desrespeitar as características do teatro tradicional.

Entendo muito pouco de Artes, mas o que eu entendo é o suficiente para afirmar que se você não marca as pessoas com sua arte de uma forma inusitada e inesquecível, você é um artista medíocre.

E, com a entrada do contemporâneo, até um pote de geleia de morango em cima de uma escrivaninha é "Arte".

Qual é a beleza disso?

Eu simplesmente não entendo como as pessoas conseguem pagar tão caro para assistir a uma peça que retrata exatamente a mesma coisa que elas veem todo o santo dia: o cotidiano ferrado dos americanos.

Lamentável.

É por isso que eu só atuo os clássicos: ninguém mexe nos clássicos.

Clássicos são imutáveis.

Imodificáveis.

Irrefutáveis.

E também é por isso que eu amo Sr. Friedrich incondicionalmente: ele é um artista que respeita todos os períodos da arte.

Ele não é como eu, que prefere permanecer somente no tradicional, mas ele respeita os séculos passados e não os descaracteriza em suas peças.

Sr. Friedrich já escreveu um milhão de peças, e eu gostei de todas que li. Especialmente de uma que contava a história de um pobre coitado (sofrido, culpável, infeliz, miserável) assim como eu. Verdade seja dita, aquela foi a peça mais tocante dele. Ela me emocionou bastante, mas também não vou falar dela agora. Ela é muito intensa e eu sei que ele a escreveu para mim, porque foi na época em que Eric ferrou com minha vida, e ele conheceu Eric o suficiente para descobrir tudo o que eu passei por causa daquele garoto desprezível.

Eu posso dizer que Sr. Friedrich é o mais próximo de um pai que eu terei, por isso eu não sairia do teatro nem se ele resolvesse nos encher de Arte Moderna.
 

Passo em frente à secretaria, e Dona Marlyse, que está sentada em um banco de espera do lado de fora, acena para mim. Às vezes ela fica ali enquanto espera a neta de dez anos terminar de ensaiar. 

Eu meneio com a cabeça de volta porque faz quase uma semana que não vejo Marlyse e eu não perderia a chance de falar com ela por nada.

Eu já estava com saudades dela.

Marlyse é uma idosa muito simpática e gentil. Segundo ela, eu sou um jovem adorável(11) — que é um dos infinitos motivos para eu gostar tanto dela.

Falo adequadamente com Marlyse, e ela me dá um beijo estalado na bochecha. Então eu sigo em direção à sala A-3, que era onde ocorria os pré-shows, mas agora é só uma espécie de auditório que usamos para ensaiar.

Consigo a preciosa atenção de todos dentro da sala assim que abro a porta principal.

Eu os encaro de volta, individualmente. Um por um.

Posso decifrar todas as expressões: Tina Thompson, cansada.

Cori Golden, entediada.

Olívia Lewis, feliz, mas tenta inutilmente disfarçar.

Louis Cooper, uma imensa raiva e ressentimento do mundo por debaixo daquele capuz gigantesco.

Katy Davis, querendo me bater por eu ainda ousar frequentar o teatro depois de dizer em sua cara que ela é um ser insignificante em minha vida (longa história). Seu olhar venenoso e ressentido em minha direção a denuncia.

Derek Carlsson, só está aqui para ver sua namorada, e como Nick não veio, ele provavelmente quer dar o fora.

Jordan MacLean, com sono.

Ally Germany, querendo desesperadamente que Jordan apoie a cabeça em seu ombro e durma, mas a pobre coitada nem desconfia de que ele é gay.

A sala está bem mais cheia, mas é muito frustrante decifrar todos eles enquanto ninguém sorri ou algo do gênero, então eu desisto disso e procuro algum lugar para me sentar. Até porque todos eles são previsíveis demais e eu não quero me manter em pé. Posso facilmente lê-los sentado.

As pessoas do teatro são, com toda certeza, incompatíveis.

Tem gente de todo tipo aqui.

Eu rio pra cacete quando alguém fala "teatro" e as pessoas geralmente imaginam um monte de gente feliz, com macacão manchado de tinta, e com pauzinhos no cabelo. Rio porque esse estereótipo não passa de uma utopia. Nada disso é verdade. As pessoas aqui estão longe disso.

Longe de serem felizes. Acho que a única exceção no momento é Olívia, porque ela é a pessoa mais transparente de todo o teatro.

A maioria aqui é composta por pessoas com problemas psicológicos ou pessoas deslocadas demais do resto da sociedade para terem de fato uma vida agradável. Mas ninguém realmente se importa muito com o rótulo teatro = povo feliz. Porque, verdade seja dita, secretamente, todos estão aqui com o único objetivo de fugir de suas vidas reais. Então é meio que reconfortante passar uma imagem boa.

Todos querem atuar com esse fim. Esquecer os problemas — talvez a única exceção seja Katy Davis, que está aqui para somente ser admirada. Ou provavelmente, para somente me esfaquear até a morte caso eu lhe dê essa oportunidade.

Atualmente, estamos ensaiando Macbeth para a apresentação interna de final de ano, já que nossa turma é velha demais para atuar a manjada peça de Natal que todo o EUA atua em todos e todos os anos desde que ela foi escrita. Vocês sabem qual é.

Passado, Presente, Futuro — palavras chave.

Não estou entre os papéis principais, porque sei que Katy Davis fez questão de distribui-los antes que eu tomasse conhecimento da peça. Katy me odeia mais do que deveria, e isso faz um mal tremendo a ela, porque sei que ela provavelmente passa o dia inteiro escrevendo Como Ferir Kenai Ramon em seu caderno cor-de-rosa. E o mais lindo disso tudo, é que ela não conseguiria me afetar de forma alguma, mesmo se fizesse um esforço real para isso. Pra ser mais exato, Katy é uma megera ingrata. Mas eu não me dirijo a ela e nem sequer deixo-me abalar, o que a aborrece de uma maneira horrorosa. Ela deve chegar em casa e chorar, quando percebe que seu manual de como me machucar é falho. Mas não dou a mínima. Eu lhe disse em uma voz bem clara: "Nunca mais vou me dirigir a você, sua desprezível" e a culpa não é minha se ela não levou a sério.

Sr. Friedrich entra no auditório e cumprimenta a todos, que murmuram um "olá" em resposta.

Sr. Friedrich é alto, seu corpo físico é mais descritível como magro. Ele é mais alto que eu, então eu quase sempre me sinto uma criança ingênua quando ele começa a nos falar sobre a vida — o que geralmente acontece porque ele é tão reflexivo quanto Benjamin era, e o que geralmente me deprime porque nada do que ele fala é a minha realidade.

Ele pede desculpas pelo atraso, o que me agrada porque ele é o professor e mesmo assim está mais atrasado que eu. Isso facilita muita coisa para mim.

— Pessoal, vamos fazer algo diferente hoje — diz Sr. Friedrich. Ele anda de um lado para o outro, como geralmente faz quando está cheio de ideias. — Ontem eu estava com muita, muita, inspiração. E eu acabei fazendo uma peça perfeita para vocês. — Ele começa a tirar várias cópias datilografadas de sua maleta e, em seguida, as distribui para todos.

Quando chega até a mim, noto que não há nenhum título acima dos nomes dos personagens e nem acima dos Atos.

Sr. Friedrich às vezes faz isso de nos deixar escolher o nome da peça, então já estamos meio que acostumados com a falta de algum título em seus exemplares originais.

— Vamos dar uma pequena pausa em Macbeth. Quero que vocês leiam meu novo musical de fim de ano, mas se acalmem porque ele nada tem a ver com o Natal. Vamos abrir os testes semana que vem, e todos do teatro poderão participar — diz ele. — Gostaria que vocês mantivessem um personagem em mente e me dissessem qual é antes de começar o teste.

Ele nos olha de uma forma esperançosa, tentando adivinhar qual será nossa resposta. Isso não é de fato uma escola e nem um curso, nós somos praticamente atores profissionais e recebemos para atuar, de forma que ele não pode nos obrigar a fazer a peça caso não queiramos.

Ninguém diz nada, todos estão com os olhos cravados em seus manuscritos, concentrados demais para dizer alguma coisa.

Seus rostos encantados e maravilhados os denunciam, e eu sei que todos vão concordar em fazer a peça em três... Dois...

— Meu Deus, eu topo! — Katy é obviamente a primeira a gritar com sua voz aguda e estridente. — Este musical é tão fabuloso!

Eu rio, porque Katy nem sequer o leu. E mesmo se lesse, ela não entenderia porque ela nunca compreende absolutamente nada que Sr. Friedrich escreve. Ela sempre faz questão de criticar algo ou então de levantar um contra.

Katy é uma fachada. Ela é uma farsante e só está querendo o papel principal.

A mente de Katy Davis parou de evoluir aos sete anos, ela ainda é mimada e pirracenta como uma criança mal educada.

Alguns reviram os olhos para Katy enquanto ela faz sua encenaçãozinha nojenta.

Todos sabem o quão mentirosa e manipuladora ela é. Até mesmo Sr. Friedrich, mas ele é gentil demais para dizer algo assim.

Katy Davis escuta meu riso e olha feio em minha direção.

— Algum problema, fracassado? — pergunta ela.

Eu não lhe dou a satisfação de ganhar alguma resposta minha. Portanto, apenas sorrio e volto a encarar Sr. Friedrich.

— Mais alguém? — se virando para encarar todos nós, ele pergunta.

O rosto de Katy fica vermelho.

Ela não suporta a rejeição. Ou então o segundo lugar.

Sei que sua mente de rato minúscula está em conflito agora. Quase posso ver seu cérebro a obrigando: não aceite isso, Katy. Você é a melhor.

Ela sempre quer se manter em primeiro, e esse foi um dos motivos para eu mandá-la à merda tantas vezes.

Posso ver que ela está abalada mentalmente, porque sua atenção se desvia de mim para os outros atores. E vejo que ela nos olha com superioridade, quase como se nos desafiasse a nos inscrever para o teste. 

Se eu pudesse, eu apontaria agora mesmo o quanto ela está sendo ridícula, mas não posso fazer nada disso por causa do meu voto de silêncio e indiferença direcionado a Katy Davis.

Então eu apenas sorrio quando vejo Jordan, Derek e Olívia levantarem a mão. O resto apenas meneia com a cabeça, o que faz os três que levantaram a mão se sentirem envergonhados pelo gesto um tanto infantil. Então eu levanto minha mão também. Gosto o suficiente de Olívia, Jordan e Derek para fazer companhia a eles em seu suposto constrangimento.

Consigo ser muito amigável, quando quero.

Na verdade, geralmente sou muito gentil com os demais oprimidos como eu.

Fico orgulhoso quando vejo o rosto vermelho de Olívia voltar lentamente para sua cor normal.    Agora que tudo está feito, só resta me desligar do ensaio até que todos estejam satisfeitos, e, portanto, me deixem sozinho com Sr. Friedrich para que eu possa interrogá-lo sobre sua nova peça. Gosto de ouvir Sr. Friedrich falando sobre suas inspirações momentâneas.

Contudo, quando estou prestes a fechar os olhos e começar a bolar meu esquema de perguntas, sinto alguém me pegar pelo colarinho da camisa (que demorei horas passando, porque eu sou um adolescente anormal e não uso roupas de adolescentes normais) agressivamente. Pelo forte cheiro de aromatizante artificial de morango, mais conhecido como gloss labial, deduzo que seja Katy Davis, e isso me faz suspirar. Mas não é como se eu pudesse reclamar de muita coisa, porque até que demorou muito para ela resolver partir para a agressão física.

Encaro-a, e depois arqueio uma sobrancelha.

Estou esperando ela dizer o motivo exato por estar me agarrando.

— Ouça, Ramon — começa. — Eu sei que você sente alguma espécie de prazer em me ver irritada, mas pode me ignorar o quanto quiser, eu vou fazer de sua vida um caos.

Não mas do que ela já é, Katy. Não mais do que minha vida já é.

— Não vai falar nada? — Seu rosto está vermelho de novo. Ela joga uma mecha loura de seu cabelo para trás, e me lança seu carinhoso olhar assassino.

Não Katy, eu não vou dizer absolutamente nada. Vivo apenas para ignorar você.

Ignorar você é minha meta de vida, não percebe?

— Tudo bem então. Mas você vai pagar caro por me fazer mal.

Tudo bem, Katy. Mal posso esperar.

Ela me solta, desistindo de me fazer falar algo, e volta para sua cadeira pisando duro.

Katy não faz ideia do quanto é idiota.

Não sei o porquê dessa obsessão toda que ela tem por mim, mas espero que isso não dificulte mais a funcionalidade de meu cérebro.

Não suportaria ter de lidar com mais uma zumbi estúpida. Minha vida já é complicada o suficiente sem uma Katy Davis ambulante, certamente não preciso de todo esse ódio dirigido a mim.

Mal posso esperar para conversar com Sr. Friedrich.

Falar com ele após o ensaio é a única coisa que está me mantendo aqui agora, porque de alguma forma, a energia negativa de Katy conseguiu me atingir.

Irônico, eu sei.

Mas meus dias geralmente são assim.

Eu não me surpreenderia muito se alguém chegasse aqui, agora, e me dissesse: ei, Kenai, seus dias na Terra chegaram ao fim. Você vai morrer. Porque não é como se eu gostasse de viver com toda essa merda acontecendo, de qualquer jeito.

—________________
¹[Minha mãe diz que seus olhos são sensíveis demais para receber luz natural, o que não passa de uma desculpa para não ter de olhar para mim. Mas enfim, ao invés de procurar um médico como toda pessoa normal, ela compra Ray Bans infinitos, de 300 dólares, com o cartão de crédito de seu "colega de trabalho". Para usar em casa. Só que nossa casa é repleta de cortinas grossas em todos os cômodos para que, segundo mamãe, "o mundo exterior não meta o dedo aonde não deve". Quanta ironia.]

²[Ela passa a maior parte do dia mandando mensagens "superimportantes" para seus supervisores, que deduzo serem seus infinitos namorados. Não me interpretem mal, não estou fazendo piadinhas de minha mãe ou algo do gênero, eu simplesmente afirmo que ela trai o papai, pelo fato de eu já ter pegado ela no ato. Infelizmente. E não é como se papai não soubesse, ele apenas não fala no assunto. Mas ele sabe — por fontes que obviamente não sou eu.]

³[Mais conhecida como a minha amável e atenciosa mamãe. Eu a chamo assim apenas quando estou como agora, com raiva dela por ser tão indiferente. Mas geralmente gosto de não me dirigir a ela, assim como ela faz comigo há sete horrorosos anos.]

(4)[Sr. Friedrich é nosso dramaturgo no teatro. Mas também nos dá aula de literatura quando tem um tempo livre. Neste dia específico, ele nos explicava o porquê da tragédia ser um dos gêneros mais apreciados nas peças, e dizia particularmente que nós não podemos mudar nosso destino como nossos personagens milagrosamente fazem — coisa que eu não discordei tanto, afinal. Porque se eu pudesse mudar meu destino como tantos e tantos personagens de Shakespeare, já teria feito isso. Prefiro pensar que estou de mãos atadas.]

(5)[Não que eu esteja correndo algum risco, eu só gosto de acreditar que eu tenho a possibilidade de ter uma vida feliz quando for adulto. E não suportaria se me dissessem que ser adulto não vale a pena.]

(6)[Coisa que dificilmente não acontece. Eu sou o adolescente mais sentimental que conheço — não que eu conheça muitos adolescentes.]

(7)[Adultos. Celulares. Ternos. Tristeza. Isso resume tudo.]

(8)[O que é loucamente irônico, momento em que eu nunca faria algo assim. Talvez seja esse o motivo para 98% da população mundial me ignorar: minha aparência anormal. Eu não sei.]

(9)[Minha escola anterior se assemelhava muito a um presídio. E como 95% dos estudantes eram de fato criminosos (racistas, homofóbicos, xenofóbicos, e bullys inúteis. Para mim, eles não passavam de um bando de acéfalos), então a mera semelhança chegava a ser assustadora. Eu me sentia um oprimido naquela merda de escola, e dou graças por já ter acabado o colegial.]

(10)[Por isso imagino meus pais como ratos de laboratório inocentes, quando não estou afim de odiá-los.]

(11)[Marlyse tem 69 anos, eu a conheci em um bazar de roupas usadas que Diana me obrigou a ir — ela é capaz de tudo para tentar diminuir a culpa da maneira errada, inclusive arrastar o filho traumatizado, deprimido, e perturbado para um brechó, como se isso fosse fazê-la se caracterizar como mamãe novamente ou algo assim. Hilário. Isso foi uma semana após nos mudarmos para NY. Enquanto eu esperava, entediado, por Diana em uma bancada de chapéus, Marlyse se aproximou amigavelmente e enfiou um chapéu (consideravelmente maior que eu) em minha cabeça, toda maternal. Ela disse que era um presente de vovó, e, por tanto, eu não precisaria pagar por nada. O chapéu, que guardo e uso até hoje, é um daqueles chapéus dos típicos cantores country de Nashville. Eu o achei bem antiquado e elegante, algo que ninguém de quatorze anos usaria, então o adorei. Depois disso, voltei a ver Marlyse seguidas vezes em lojas de vinis ou em feiras cinematográficas — daquelas que vendem qualquer objeto de qualquer filme que você quiser —, e ela sempre me chamava e me comprava algo. Eu a adorei imediatamente. Ela foi a primeira amizade que fiz aqui nessa maldita cidade, e de longe a mais duradoura. Considero Marlyse como uma avó, já que não conheci a minha avó biológica, e creio que ela também me considera como um neto. Vou à casa dela às vezes. Escutamos bastante vinil, vemos todas as novelas em preto e branco dos anos 40 que conseguimos, jogamos xadrez, e fazemos coisas de vó e neto enquanto ela me conta suas experiências de vida. Aprendi muito com Marlyse, e a amo pra cacete. Acho que não suportaria perdê-la. Ela se importa comigo de verdade, talvez a única que se importa


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá pra você, pequena ervilha doce, que chegou até aqui.
O capítulo talvez esteja meio confuso, mas tudo irá ficar mais claro ao decorrer da fic.
Espero que tenha gostado.
Um beijão nesse seu rosto lindo e até mais.




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Se eu fechar os olhos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.