A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 47
Alento


Notas iniciais do capítulo

Neblina? ou vidraça
que o quente alento da gente,
que olha a rua, embaça?

(Guilherme de Almeida)



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A sala era fria — não pelo ar gélido, indiferente para Koenma. Mas pelas paredes vazias e estéreis, pelo silêncio que chegava a criar um zumbido no fundo do ouvido de tão pleno que era e, principalmente, pela suspensão da realidade que ele vinha sentindo desde que acordara.

A única coisa que o fazia ter certeza de que tudo aquilo era real e não uma alucinação era o machucado do ombro, um ferimento que parecia ter sido fundo, mas que agora se encontrava fechado e sob controle. A dor ainda estava lá, no entanto, bem como a recordação daquela dor. A lembrança era de algo quente, tão quente como se fosse lava que tivesse tocado seu corpo, o abrindo e escorrendo por dentro, o preenchendo até que o calor ficasse insuportável. Ele apagou logo depois. Quando acordou, já estava na sala gelada, o torso nu e uma cicatriz enorme onde o Punhal havia lhe atingido.

Preferia não pensar no que teria acontecido se a arma o tivesse atingido em algum ponto vital em vez de no ombro.

Koenma ouviu um barulho de clique. Se virou e viu a única porta da sala se abrir. Reconheceu a General Ayaka, uniformizada e cabelos firmemente presos atrás da cabeça, entrando por ela — e só então ele percebeu que ainda estava deitado. Tentou se ajeitar, sentando na cama igualmente fria que o acomodava, e sentiu a dor perfurar de novo por dentro.

Suas vestes estavam em uma cadeira próxima e ele esticou o braço para apanhá-las. Na blusa branca, uma enorme mancha vermelha escura, agora já ressecada, florescia na região onde havia sido atingido e se espalhava pela manga esquerda.

Ayaka se aproximou enquanto Koenma tentava, a despeito da dor, recolocar a roupa. Cada movimento com o braço fazia o ombro queimar e espalhava o calor pelo resto do corpo.

— O senhor está bem? — ela perguntou.

Com um esforço, Koenma terminou de encaixar a blusa no corpo e ajeitou a túnica azul, também com resquícios de sangue, por cima. A chupeta repousava delicadamente na mesinha ao lado e ele a pegou, sentindo o toque frio do objeto nas mãos. Aquele havia sido o receptáculo de sua energia por séculos, mas naquele momento mais parecia um acessório terreno comum. A chupeta estava apática em sua mão, gelada como todo o resto, sem vida — e Koenma entendeu que devia ter extraído até a última gota do pouco que ainda restava de seu reiki no ataque mais recente.

— Acho que sim… Quanto tempo fiquei aqui?

— Só algumas horas — Ela fez uma pausa — Recuperamos as Relíquias, achei que gostaria de saber.

Ele franziu o cenho de leve, absorvendo aquela informação. Levou a mão ao ombro ferido e reprimiu uma careta ao sentir o ardor novamente.

— E Liu?

O ar finalmente parecia estar se condensando dentro da sala. Já não era mais tão gelada e artificial como antes, e até a realidade parecia mais palpável.

— Liu foi capturado — ela falou — Segundo o relatório oficial, ele foi encontrado desacordado no corredor depois de ferir o senhor no ombro e foi enviado para o Centro de Detenção.

Ayaka pausou novamente, olhando atentamente para Koenma. Ele enrugava ainda mais a testa, tentando entender a resposta. Era como se tivesse perdido alguma informação no meio do caminho ou entendido errado as palavras da General.

— O que aconteceu?

— A hipótese mais aceita é que seu ataque, embora fraco, tenha sido suficiente para atordoá-lo.

Ele voltou a olhar para a chupeta nas mãos. Seria possível? Mesmo depois do desgaste que tivera com Sensuí?

— Você acha? — perguntou, após levantar o rosto para fitar a oficial novamente.

Ayaka não respondeu. Koenma não cogitou insistir. Preferiu o silêncio contemplativo que se formou entre os dois.

— A maioria dos oficiais dissidentes que participaram da tomada do Palácio não ofereceu resistência depois disso — Ayaka falou algum tempo depois, em um tom complacente — Os que aceitaram colaborar com a reorganização do Reikai tiveram sanções leves. Outros, de maior escalão, ainda estão aguardando julgamento na Ala de Segurança Mínima.

Ele ouviu, inspirou fundo e, quando expirou, já não tinha mais os olhos focados em nada especificamente. Mais alguns segundos se passaram até a General, pela segunda vez, quebrar o silêncio.

— Se o senhor precisar de mais alguma coisa...

— Liu está preso então? — Koenma perguntou de repente.

Ele meneou a cabeça para encontrar o rosto de Ayaka. Koenma tinha as costas curvadas, as mãos em concha aparando a chupeta que ele ainda não tinha recolocado e os cabelos quase escondendo o símbolo de Jr que tinha na testa. A postura da General, em contrapartida, era firme e impecável.

O espaço de tempo que se criou entre a pergunta de Koenma e a resposta de Ayaka foi como um suspiro necessário, uma antecipação para que ela selecionasse as palavras certas e para que ele se preparasse para escutá-las — ainda que nenhum dos dois tivesse consciência disso.

— Liu foi encontrado morto em sua cela uma hora atrás — ela falou. A voz era cristalina, mas, ao mesmo tempo, receosa — O relatório oficial aponta suicídio.

O susto foi evidente na expressão de Koenma e ele enfim se sentiu desperto. As costas ficaram eretas na mesma hora em forma de reflexo, e ele crispou os lábios. Aquela nova informação tinha sido como se um gongo houvesse soado dentro da sua cabeça, fazendo as vibrações reverberarem por todo seu corpo.

— Como isso foi acontecer? — A voz era bem mais firme dessa vez.

— Eu não estava presente no momento, sen-

— E quem estava? Quem encontrou o corpo?

O zumbido do gongo imaginário novamente encheu a cabeça de Koenma. A sensação de estar em alguma fantasia surreal já havia cessado completamente — e sem deixar o menor vestígio.

— A morte foi reportada pelo próprio Rei Enma.

(...)

Momentos depois, Koenma estava de pé, ganhando os corredores do Palácio, ignorando a dor lancinante do ombro cicatrizado. As vestes farfalhavam com seus passos largos que ecoavam pelos ambientes desertos. Os militares do Esquadrão Especial, que naquela noite haviam tomado conta de cada canto daquele lugar, já não eram mais visto em parte alguma — no máximo alguns onis tentando retomar as atividades, tentando fingir que nada havia acontecido.

Botan lhe veio à mente. Ele ainda não a encontrara desde que havia acordado, não tivera notícias e nem fazia ideia se ela estaria bem, mas algo o dizia que sim. No mínimo, Ayaka reportaria caso houvessem mais casualidades.

E havia ainda aquela energia, aquele poder sobrehumano vindo do Ningenkai naquela madrugada, uma onda tão forte que conseguiu até mesmo desestabilizar o Reikai. Definitivamente era algo com que eles não estavam acostumados a lidar — e Koenma nem mesmo sabia se eles sequer podiam lidar com algo daquela magnitude. Por que ninguém estava falando sobre isso? E Bozukan? E as barreiras? E as denúncias contra o pai? Haviam caído?

Eram tantas perguntas que Koenma se irritou por ter disparado daquela sala asséptica sem tê-las tirado a limpo mais cuidadosamente com a General. Mas nenhuma delas o ocorreu na hora. Na hora, ele só conseguia pensar em como parecia inusitada toda aquela situação, o suicídio de Liu, a maneira como tudo parecia estranhamente diferente, estranhamente calmo, desde que tinha acordado.

Koenma explodiu para dentro da sala do pai sem bater ou ser anunciado — uma ousadia que nem mesmo ele tinha permissão. Mas isso não o importou na hora. Não era o momento para protocolos.

— O que está acontecendo aqui? — ele perguntou.

O Rei o olhou do alto de sua estatura. Mesmo quando o filho adotava a forma adulta, era infinitamente menor do que ele.

— Vejo que acordou, que bom — Enma olhou para a mancha escura nas vestes do filho — Fiquei preocupado quando vi que estava sangrando.

Koenma rangeu os dentes e tocou o ombro ferido.

— O que aconteceu com Liu?

— Liu se matou.

— Como? Por quê?

— Eu não sei — Enma respondeu, a voz tão grave como um trovão — Ele era um lunático, queria poder. Não conseguiu e não deve ter conseguido suportar o fracasso.

O Rei suspirou, pesada e demoradamente, como se o assunto lhe incomodasse profundamente.

— Eu não tenho como julgar os seres espirituais que decidem parar de existir. É isso que acontece com eles, aliás; eles param de existir. Não possuem um corpo físico separável do espírito que continua existindo após a morte. Liu queria fugir do meu julgamento, e conseguiu.

— Eu… não entendo.

— Você devia descansar, e me deixar arrumar a bagunça que restou no Palácio depois do que aconteceu esta noite — Enma deu as costas para o filho, caminhando até uma escrivaninha no fundo da sala — Já tivemos problemas demais.

Koenma sabia que aquilo era mais uma ordem do que uma recomendação. E, por mais que ele ainda estivesse cheio de perguntas, por mais que não mais temesse o pai como temera no passado, ele acatou.

A notícia da morte de Liu era o tipo de alívio que ele se sentia estranho por ter. Ao mesmo tempo, se sentiu culpado por simplesmente não aceitar e agradecer que tudo tivesse corrido com o mínimo de problemas possível. Se alguém tinha que morrer naquela noite, que fosse Liu. Que deixasse o Reikai em paz.

Era apenas difícil de acreditar que, depois de tudo, aquele pesadelo tinha acabado. Mas ele tinha. Ao menos em parte, a pior parte.

Aquela seria uma nova era para o Reikai. E para Koenma também.

(...)

Kiki só se lembrava de flashes. Da aridez da parede de pedra ao subir de volta para a superfície. Do horizonte ganhando uma coloração dourada por cima do céu azul-marinho e anunciando que a noite tinha enfim terminado. Das palavras, dos abraços, de ser conduzida junto com alguém e para algum lugar.

Quando piscou, já não estava mais na rua. Estava numa casa, numa sala, com alguém (uma moça?) com um pano úmido limpando sua testa. Sentiu o aroma acre de cigarro e ouviu uma voz desconhecida, seguida por outra, conhecida. Vozes irritadas. Não, preocupadas. Ouviu perguntas e as respondeu mesmo sem entender.

Tudo ficou escuro novamente, Quando voltou a abrir os olhos, já estava mais lúcida, mais consciente. Levantou com cuidado da cama que estivera dormindo e ficou de pé. Olhou primeiro para si mesma, notando que os machucados já estavam tratados, alguns devidamente protegidos. A dor tinha amenizado também. Ela estava inteira, e isso por si só já era um alívio.

Depois, olhou para o ambiente. Não estava na sua casa, aquele não era o seu quarto. Era um quarto estranho, que ela nunca tinha visto na vida. De familiar, apenas o mesmo cheiro de cigarro de antes.

Abriu a porta de onde estava e saiu para o corredor. A casa estava silenciosa, apesar da claridade vinda das frestas das cortinas fechadas indicarem que o sol já estava alto.

Andou até uma outra porta fechada no corredor. A afastou um pouco e espiou para dentro. Viu Kuwabara dormindo confortavelmente, roncando baixinho, com faixas onde antes haviam feridas, o quarto com posters na parede e a mochila jogada no chão. E então ela entendeu que aquela devia ser a casa dele.

Na sala, uma mulher dormia no sofá. Ao contrário de Kuwabara, não tinha machucados. E, também diferente dele, tinha um cabelo liso e castanho, comprido a ponto de cair pelos ombros. Um cinzeiro com um restinho de cigarro amassado estava na mesinha de canto. Kiki não a conhecia, mas soube de imediato que tinha sido ela quem cuidou de seus ferimentos. Sabia também que Kuwabara tinha uma irmã, e deduziu que só podia ser aquela, assim como deduziu que era em seu quarto que havia dormido.

Se sentiu estranhamente acolhida naquela casa, apesar de nunca ter pisado ali antes. Era como se a aura fosse positiva demais, aconchegante demais. E, por um instante, quis que a irmã de Kuwabara estivesse acordada, queria agradecer pelo que tinha feito e passar o resto do dia ali, compartilhando cigarros e histórias. Rindo um pouco, para variar.

Mas logo depois apagou a ideia da mente. Achou bom que ela estivesse dormindo, e Kuwabara também. Agora que estava acordada, que a dor havia passado, que o silêncio havia se instaurado, Kiki se sentia ansiosa. E ela sabia que teria que sair e encarar o que a esperava, a vida bagunçada de sempre, e que teria que dar um jeito de arrumá-la.

Ela não tinha tempo para jogar conversa fora, ao menos não agora. Poderia fazer isso depois que descobrisse o que faria dali pra frente.

Pouco tempo havia passado desde que tudo aquilo havia começado, naquele bar onde encontrou Kurama pela primeira vez — Dois meses? Mais? Menos? — mas ela sentia que anos separavam a Kiki de antes da Kiki de agora. E, de uma vez por todas, ela teria controle da sua vida. Controle de verdade, não a mentira que costumava contar para si mesma.

Resoluta, procurou por papel e caneta na mesinha do telefone e rabiscou algumas letras. Prendeu o papel por um imã na geladeira e saiu do apartamento.

Quando Kuwabara e Shizuka acordaram, a cama onde Kiki passara a manhã dormindo já estava fria. Se preocuparam no começo, Kuwabara mais, Shizuka menos. De alguma forma, ela sentia que estava tudo bem.

E teve certeza quando encontrou o papel na porta da geladeira. Leu com um sorriso e repassou para o irmão.

"Obrigada! E até mais =)"

E encerraram o assunto.


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Notas finais do capítulo

Apenas um aviso de que o próximo capítulo deverá ser o último!