A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 38
Castelos de areia




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Quando Botan abriu os olhos, tudo era paz. O silêncio, a temperatura sempre agradável do Palácio Celestial, o teto branco imaculado. Chegou a ficar alguns segundos piscando os olhos devagar, deixando as imagens ganharem forma lentamente na sua vista embaçada. Até resquícios de um delicado aroma floral ainda permeavam suas narinas e a fizeram se sentir bem, quase aconchegada.

Se levantou sem pressa, primeiro sentando no chão e em seguida esticando os braços para o alto, chacoalhando a preguiça e a sensação de dormência. Foi então que estranhou o ambiente. Olhou ao redor, reconhecendo a Câmara dos Tesouros. De um lado, a entrada do cofre, cerrada como sempre. Do outro, o relicário. Aberto.

Recobrou as lembranças na mesma hora. Ficou de pé, mas não soube o que fazer. Não sabia quanto tempo havia passado desde que adormecera, mas a julgar pelo silêncio sepulcral do lugar, o roubo ainda não havia sido descoberto. Indecisa, ponderou entre alertar alguém sobre o ocorrido ou ficar calada. Delatar o amigo ou omitir a verdade.

Kurama era confiável, e ajudou o Reino Espiritual em diversas ocasiões — inclusive no caso atual, o mais intrincado e complexo que a jovem guia tinha presenciado. Por outro lado, cometera uma infração gravíssima, e ainda por cima a atacara. Teria tido algum motivo nobre por trás de atos tão vis, ou seus instintos e sua ambição falaram mais altos? Botan queria acreditar na primeira opção, mas até ela sabia que era impossível ter certeza absoluta. E convencer os demais, mais inviável ainda.

O único que a escutaria seria Koenma. Ele teria bom senso. Ele procuraria Kurama para pedir explicações, e sabia que seriam plausíveis. Talvez até o convencesse a devolver as Relíquias Primordiais antes que o mundo viesse abaixo. Ou Yusuke. Yusuke tinha seu jeito rebelde, mas no mínimo os ajudaria a localizar Kurama. Nem que fosse para ajudá-lo a fugir da fúria do Rei Enma. Com sorte, o Mundo Espiritual nem precisaria tomar conhecimento do roubo. No final, tudo daria certo. Como sempre.

O rosto se iluminou com tais pensamentos. Com o peito abastecido de esperança, se virou para sair da sala. Deu os primeiros passos cheios de confiança, mas nem chegou a passar pelo umbral. Chocou-se com um oni¹ que vinha na direção contrária, e que adentrava a Câmara naquele mesmo segundo. A guia quase foi ao chão novamente, atordoada.

— Você está bem, menina? — ele perguntou — O que estava fazendo aqui?

Ela gaguejou, sem saber o que falar. Tentou pensar rápido, mas nada convincente lhe vinha à cabeça.

— O Palácio foi invadido — o oni continuou — Encontrei um colega desacordado na entrada do corredor. Você viu alguma coisa?

— Sim! Digo, não. Digo, vi alguém desmaiado e também vim conferir, mas o cofre está fechado, está tudo certo. Vai ver ele está só tirando um cochilo, esses turnos matam a gente!

O ogro a olhou desconfiado, e esticou o pescoço para espiar a Câmara por cima do ombro de Botan. Algo chamou sua atenção. Com os braços musculosos, afastou a guia para o lado e entrou na saleta. Caminhou direto para o nicho ainda entreaberto e escancarou a portinhola, soltando um grito de espanto.

Botan se sobressaltou. Nem se lembrara de fechar o relicário.

— As Relíquias Primordiais! — ele exclamou — Alguém assaltou o relicário sagrado!

— O quê? Você tem certeza? Nossa, quem faria uma coisa dessas? — Botan respondeu, tentando soar o mais surpresa possível.

O ogro a ignorou, e passou por ela acelerado. Pelo rosto, a guia podia ver o pânico que tomava conta da criatura.

— Preciso reportar isso ao Rei Enma! — falou, apreensivo, antes de partir porta afora. Correndo, sumiu de vista pelo corredor.

Botan levou as mãos à cabeça e disparou atrás do oni. Só pensava em chegar logo até Koenma. Ele saberia o que fazer.

(...)

— Você não vai me falar onde arrumou esse troço? — Kiki perguntou pela segunda vez naquela noite.

— Isso não é importante — Kurama respondeu, evitando ao máximo ignorar as dores que insistiam em flagelar seu corpo. A tarefa improvisada que teve que executar no Reikai não lhe dera tempo para se preparar corretamente e o veneno lhe atingira em cheio. Nem mesmo a Panaceia seria capaz de uma cura completa em tão pouco tempo. Kurama, no entanto, não estava disposto a esperar.

— Você roubou, não é? Por isso ficou todo machucado.

Ele olhou de soslaio para a menina, e hesitou por um instante. Ela parecia despreocupada, acendendo um cigarro enquanto o fitava com curiosidade.

— Mais ou menos.

— Não tem problema, eu não estou te julgando. Se você obedece todas as regras, acaba perdendo a diversão, não é assim?

Kurama parou de andar de repente. Em uma ação rápida, virou na direção de Kiki e a segurou pelo ombro com a mão enfaixada. A dor da queimadura voltou a arder, mas ele não deu importância.

— Isso é diversão pra você? — perguntou, sem nenhum sinal de sorriso no rosto. O verde dos olhos a encarava gélido, fixo.

Kiki se surpreendeu com o gesto abrupto e deixou o cigarro pendurado na boca, por pouco não o desprendendo totalmente dos lábios. O olhou de volta, mas se perdeu naquele olhar e não conseguiu responder.

— Desculpe. Volte para casa, Kiki — ele disse, largando seu ombro e voltando a andar. Sentiu-se subitamente amargurado. Pelo ataque imprevisto à Botan, por ter colaborado com Liu, por ter se deixado contaminar pelo ódio. A única coisa que queria era no mínimo fazer aquela empreitada ter valido a pena.

— Eu não vou voltar — a garota respondeu. A voz soou abafada, mas decidida — Você não tem condições de enfrentar Bozukan sozinho.

Kurama sentiu a verdade naquelas últimas palavras. Saber disso o machucava ainda mais e novamente ele se condenou pelo planejamento precário daquela noite.

— Não pretendia ir sozinho — admitiu.

— De qualquer maneira, eu vou com você — Kiki falou mais uma vez, e ele sabia que ela falava sério.

Não adiantaria discutir, e ele em verdade nem o queria. Precisava se focar no que viria a seguir, e qualquer ajuda seria bem-vinda. Só esperava não se arrepender de ter ido até ela naquela noite.

De súbito, algo os interpelou, cortando o ar com uma rajada de vento ao passar. A capa preta de Hiei esvoaçou quando ele apareceu na frente dos dois. O Jagan cintilava, completamente exposto.

— Ele atacou — Hiei falou — Está aqui perto.

Kiki olhou para os dois, e entendeu do que se tratava. Apesar de não compreender perfeitamente o funcionamento do terceiro olho de Hiei, sabia que ele estava em uso. O youki que sentia vindo dele era enorme.

Mal falou, e Hiei sumiu de vista, disparando na direção que seu Jagan indicava.

— Não deveríamos checar o medalhão primeiro? — ela perguntou.

— É melhor não perder tempo — Kurama respondeu, começando a seguir o amigo. Kiki, sem alternativa, o acompanhou — Podemos usar o Olho de Jade quando chegarmos mais perto.

Hiei era muito mais rápido que os dois, mas ambos seguiam seu rastro intuitivamente. No meio do caminho, um sentimento obscuro começou a tomar conta da garota. Ela conhecia aquele itinerário.

As trevas se alastravam dentro dela a cada passo e o mau pressentimento ia ganhando força. Em cada esquina, torcia para Hiei seguir outra direção. Ele, no entanto, permanecia na rota que Kiki temia. Quando virou na última rua, a certeza foi quase inexorável. Aumentou a velocidade, deixando Kurama para trás, e já nem precisava mais de Hiei para saber seu destino.

A porta da casa aberta foi a facada final.

Hiei já estava lá dentro, mas ela o empurrou para o lado e correu até o quarto do pai. Sujou as mãos de sangue ao ligar o interruptor.

A casa estava vazia. Bozukan já tinha partido, mas sua presença ainda podia ser sentida. E o resultado do seu último ataque manchava de vermelho as paredes do cômodo.

Do chão ao teto, o sangue tingia o quarto. A cama era o lugar mais afetado: o colchão estava encharcado, e restos de vísceras pontuavam os lençóis. No chão, a cabeça do pai, com o crânio aberto, os olhos vidrados e a boca contorcida em um grito de horror, jazia virada para ela.

Dor, raiva, medo, revolta... Uma confusão de sentimentos explodiu no peito da menina. Kiki sentiu um enjoo na mesma hora, e correu de volta para fora da casa, esbarrando em Kurama no caminho. Não aguentou e colocou para fora todo o conteúdo do estômago.

— O que deu nela? — Hiei perguntou, vendo a garota pálida ainda curvada para frente.

Kiki ouviu, mas não conseguiu responder. A voz do demônio de fogo parecia distante, como se eles estivessem em planos diferentes. Em seguida, ouviu a voz de Kurama, ainda mais distante. Quando o garoto a segurou, ela se sentiu tonta. Sabia que estava tremendo, e teve dificuldade em focalizar o ruivo na sua frente.

Com algum esforço, pegou o embrulho do bolso e o abriu, revelando o medalhão.

— Andou assaltando o cofre do Reikai novamente, raposa? — Hiei perguntou, sarcástico, mas não obteve resposta.

— Vamos. Atrás. Dele — Kiki falou entre os dentes — Agora.

— Você não...

— Agora! — repetiu, dessa vez mais alto, e Kurama entendeu que aquilo não era uma ordem; era uma súplica. Ela apertava o Olho de Jade com força entre os dedos e encarava Kurama com uma chama ardente no lugar das pupilas — Eu odiava meu pai, mas ele não merecia isso. Bozukan mexeu com a pessoa errada.

— Você ouviu a menina — Hiei falou — Estamos perdendo tempo ficando aqui parados.

Relutante, Kurama pegou o frasco com o sangue do youkai. Kiki tentava manter a relíquia firme na frente dos dois, mas ele podia ver o suor escorrendo do seu rosto, apesar do vento frio que soprava. A menina ia pouco a pouco recobrando o rubor das faces, e a respiração, pesada e difícil, começava a se normalizar. O choque, contudo, ainda era visível em seu rosto, por mais que ela tentasse se conter.

Pingou uma gota no medalhão e esperou a imagem se formar. Não o deixariam escapar dessa vez.

(...)

Liu acariciou mais uma vez a delicada caixa que tinha nas mãos. Abriu a tampa apenas para se deleitar com a visão das relíquias que descansavam tranquilamente no brilhante forro de cetim.

O Selo, um anel dourado com o brasão de Enma, e o Punhal, uma arma pequena, forjada em adamantino², estavam lado a lado, reluzentes e tentadoras.

Liu pegou o Punhal, sentindo a enorme energia que emitia. Ele era abençoado com um reiki fortíssimo e tinha propriedades que poucos conheciam. Entre os humanos, tais tesouros não passavam de misticismo, e suas histórias eram contadas através das lendas e contos antigos.

Já entre os seres espirituais, as duas relíquias eram símbolos da supremacia e da bondade do Reikai, verdadeiros baluartes do poder do Reino Espiritual. Considerados sagrados e perfeitos, os objetos eram capaz de causar tanto a desgraça quanto a bem-aventurança da Terra. Enma, no entanto, sabia que um uso indiscriminado dos instrumentos causaria um desequilíbrio irreversível no planeta, e, por isso, raramente lançava mão desse recurso.

O que muitos desconheciam, todavia, era a outra característica singular daquele punhal. De material indestrutível e energia inestimada, O Punhal do Guardião era uma das poucas coisas do mundo com o poder de promover o deicídio.

Ela era capaz de matar deuses.

Ela era capaz de matar Enma Daioh.

(...)

Kuwabara acordou alarmado. Olhou pela janela aberta do quarto o céu negro da noite. A lua repousava serena atrás de algumas nuvens e todo o firmamento parecia em paz — algo que, por alguma razão, o deixava ainda mais inquieto.

Limpou o suor da testa e se debruçou no parapeito, afrontando as estrelas.

Em seu sonho, todos estavam mortos.


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Notas finais do capítulo

¹ - Oni: O mesmo que ogro. No folclore budista, ogros são os ajudantes/assistentes de Enma.

² - Adamantino: Material mitológico indestrutível. Sim, o mesmo usado no Wolverine xD