A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 30
Demônios interiores, parte II




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Kiki abriu os olhos lentamente, como se acordando de um sono profundo. Aos poucos seu corpo foi retomando os sentidos e ela olhou ao redor, percebendo que estava sentada em um sofá, em uma sala de estar antiga e sóbria, com poucos móveis e decoração básica. Além do sofá, uma estante de madeira ocupava a parede do lado esquerdo e um tapete gasto estava estendido no chão. Aquele ambiente lhe era vagamente familiar, mas ela não tinha certeza de onde estava e muito menos de como tinha chegado ali.

De repente, viu algo caído no carpete. Um pedaço de papel pequeno, que ela se inclinou para apanhar. Era um cartão de visitas amassado. De um lado, completamente branco, mas quando ela virou, viu o símbolo e o nome. Ken Fujimoto. A surpresa a atingiu como um choque, a fazendo soltar o cartão na mesma hora.

Levantou assustada, sem saber o que fazer. Sua respiração acelerou, e ela podia ouvir o coração batendo com tanta rapidez que teve a impressão que ele rasgaria seu peito a qualquer momento.

Uma porta mais à frente se abriu e uma mulher entrou apressada. Ela olhava aflita por todos os lados até encontrar Kiki aterrorizada no sofá dos fundos da sala. O rosto da mulher suavizou quando encontrou o olhar da garota, que por um instante, também chegou a relaxar os músculos tensos da face.

— Mãe...?

A mãe de Kiki andou até ela, de braços esticados e sorriso aberto. Sem acreditar no que estava acontecendo, a garota deu um passo tímido para frente e começou a levar os braços ainda vacilantes até a mulher que vinha em sua direção. Não estava entendendo nada. Talvez aquilo fosse só um sonho, mas se fosse, não queria acordar. Pelo menos não antes de sentir o abraço iminente que ela por tantos anos almejou.

Seus braços estavam quase se tocando quando Kiki ouviu uma explosão forte no ouvido, seguida de outra e mais outra. O cheiro de pólvora se espalhou no ar. Sangue espirrou no seu rosto e o sorriso da sua mãe se apagou. Os olhos da mulher se petrificaram e ela caiu aos pés da filha, o tapete agora manchado de vermelho.

— N-não! — Kiki gritou ao ver a cena.

De pé, ao lado do corpo, um homem empunhava uma arma. O mesmo homem da sua infância, o moço do parque, o sujeito que ela agora via mais uma vez assassinar sua mãe.

— Isso é culpa sua! — ele falou olhando nos olhos de Kiki antes de correr porta afora.

Seu corpo todo tremia, e ela teve que sentar de novo no sofá para não perder o equilíbrio. Tentou fechar os olhos, torcendo para acordar do pesadelo, mas mesmo de olhos fechados a imagem permanecia tão vívida quanto antes. Era como se toda a cena estivesse se passando na sua cabeça, como se não precisasse da visão para enxergar.

Foi então que ouviu a porta se abrir de novo, e sua mãe entrar novamente, a expressão preocupada a procura da filha. Kiki olhou confusa para o chão, mas o corpo já não estava mais lá, nem as manchas de sangue.

Indecisa, mas encorajada pelo sorriso da mãe, Kiki esticou mais uma vez os braços na sua direção. Ainda havia dentro dela a vontade do abraço se concretizar, mesmo que parecesse impossível. Ela sabia que nunca mais sentiria aquele aconchego, mas ainda assim, uma pequenina parte so seu cérebro insistia — e ganhava a disputa que travava com a razão. "Quem sabe dessa vez...".

Mas não houve abraço. Ao invés, houve barulhos de tiros, morte e o remorso letal de sempre. "Isso é culpa sua!", ela ouviu de novo, seguido do estrondo da porta se batendo.

Piscou os olhos algumas vezes, limpando o sangue que sentiu respingar na sua pele, sem entender o que estava acontecendo. E mais uma vez a sala estava vazia.

A cena se repetiu. E se repetiu, e repetiu. Kiki tentou altera-la o quanto pode. Tentou puxar a mãe de lado, bater no assassino, e até entrar na frente do revolver, mas ainda assim, o final era sempre o mesmo. Nada que ela fizesse mudaria isso, e uma sensação de sufocamento a atingiu, como se estivesse se afogando no próprio desespero.

— Chega! — ela gritou, entrando em pânico ao ver o episódio se desenrolar mais uma vez, como um filme em loop em que não havia botão de pausa.

Levou as mãos à cabeça e se encolheu no chão em um grito agudo que machucou suas cordas vocais.

(...)

Akira olhava curioso para a menina caída no chão. O sangue que antes escorria fresco da sua testa começava a secar e ela permanecia imóvel desde o momento em que havia desmaiado, presa dentro do pesadelo provocado por ele.

Se aproximou do corpo da jovem e tomou seu pulso. Os batimentos cardíacos eram fracos e quase inaudíveis, mas ainda estavam lá.

Ele não fazia ideia do que se passava na cabeça de Kiki, apenas que ela nunca mais acordaria. Havia aprendido a manipular as ondas cerebrais e pela primeira vez colocava sua nova habilidade em prática, confinando a garota em seu próprio inferno particular.

Levou a mão até o rosto dela, que parecia dormir serena com sua respiração baixa, e o acariciou de leve.

— Você sempre foi descartável... — ele murmurou, com um sorriso sarcástico — mas não merecia morrer assim.

O corpo da garota contraiu de leve quando os dedos de Akira passearam pelo seu pescoço e continuaram até seu abdomen. Ele estranhou aquele movimento e ergueu mais uma vez o braço de Kiki. A pulsação continuava débil como antes.

Akira inclinou a cabeça para o lado. Nas suas mãos, Kiki parecia frágil e inofensiva, e não aquele vulcão que às vezes explodia sem aviso prévio.

Subiu os dedos novamente, indo até o ombro direito da menina. Se demorou ali por um momento, e fez uma pequena pressão com o dedo indicador. Uma protuberância surgiu na parte de trás da articulação, evidenciando o deslocamento do osso. O corpo de Kiki vibrou mais uma vez, em um espasmo de dor involuntário. Seus olhos, no entanto, continuavam fechados.

O homem sorriu ao comprovar sua tese de que nem mesmo a dor física seria capaz de tira-la daquele torpor. Poderia continuar brincando com ela o quanto quisesse. E assim o faria, se não tivesse sido interrompido pelo youkai que surgiu sorrateiro na entrada da câmara.

— O que você fez com ela?

Kurama estreitou os olhos com ódio ao ver Kiki deitada inerte, seu rosto manchado pelo próprio sangue.

Akira tomou um susto ao ver aquela figura imponente, mas não teve medo. Confiava em sua capacidade de abater qualquer inimigo, independente de sua força.

— Só estava me divertindo um pouquinho. Mas posso deixar você brincar com ela, se quiser — disse, ficando de pé — Ela é toda sua — e chutou de leve o corpo da menina.

O gesto fez o sangue de Kurama ferver e ele sentiu mais uma vez seu lado belicoso se agitar. A ideia de que Kiki podia estar morta encheu seu coração de rancor e ele não deixaria o responsável por aquilo impune.

— Eu prefiro brincar com você — respondeu com a voz fria.

O antebraço de Kurama foi enroscado por dezenas de ramos, que se estenderam por todo o comprimento, ultrapassando sua mão e formando uma haste fina e pontiaguda. Ele avançou, mirando no coração de Akira, que por pouco não foi atingido mortalmente pela arma do demônio. Kurama tentou atacar novamente, mas sentiu que seu braço não obedecia.

— Acho que subestimei você — Akira falou, um pouco sem fôlego. Kurama havia chegado a perfurar seu corpo, e agora uma mancha vermelha tingia seu paletó — Cansei dessa enrolação.

O youkai sentiu o núcleo vital que tinha no lugar do coração ser tomado de assalto, e por um segundo, achou que poderia morrer. Sua energia, no entanto, estava mais forte do que nunca. Ainda que o poder de manipulação de Akira fosse robusto, Kurama conseguiu resistir. Chegou a ficar debilitado e seus joelhos fraquejaram, mas rapidamente retomou o youki que o mantinha vivo; suas emoções, agora intensificadas, o fortalecendo mais e mais.

O homem, ferido, arregalou os olhos ao perceber que o esforço em acabar com a vida do demônio havia fracassado. Tentou ao menos controlar os membros do oponente, imobilizando seus braços, mas Kurama apenas sorriu discretamente.

— É o melhor que consegue fazer?

Akira rangeu os dentes, raivoso. O machucado começava a lhe drenar as energias, mas ele não era do tipo que desistia facilmente — e percebeu que Kurama também não. Sabia que um dos dois acabaria morto, e que ele estava na desvantagem.

Com um impulso, agarrou o corpo de Kiki, o puxando para si. A ergueu, prendendo o pescoço da menina pelo braço e deixando a cabeça da garota pender para frente.

— Ela ainda está viva — Akira falou, fazendo Kurama prender a respiração — Está presa em um pesadelo, perdida no próprio subconsciente. Posso acabar com o sofrimento dela agora mesmo, mas se me matar, vai a estar condenando a um estado vegetativo para o resto da vida, sua mente sendo torturada por toda a eternidade.

Kurama ouviu calado, analisando a probabilidade da cartada ser um blefe. Ainda que não fosse, duvidava que ele fosse manter sua palavra e libertar Kiki daquele estado. Sentia a fúria tomar conta dos seus pensamentos, e ele temeu se descontrolar. Nada o deixava mais abalado do que ver a vida de alguém querido em risco.

— E então? Vai querer que eu acorde a Bela Adormecida aqui, ou seu instinto assassino vai falar mais alto?

— Você está provocando a pessoa errada...

Akira riu. Foi uma risada enlouquecida, insana, de gelar a espinha, mas Kurama não se mexeu, acompanhando o homem com seus olhos penetrantes.

— O que você pode fazer? — Akira perguntou, puxando o corpo de Kiki mais pra perto e apertando seu pescoço com mais força — Você perdeu, demônio. De um jeito ou de outro, você perdeu.

— Perdi... ? — respondeu, com um discreto sorriso malicioso.

Uma enorme planta carnívora surgiu atrás de Akira. Em sua extremidade, as folhas se abriam como bocas, destilando uma seiva ácida e fatal. O homem se assustou, afrouxando o braço que prendia Kiki, mas ainda a mantendo perto de si.

As bocas se aproximaram, e assim que ele sentiu o ácido começar a corroer sua pele, soltou a menina, que caiu ainda desacordada no chão.

A planta aos poucos esparramou-se sobre o corpo de Akira, que agora gritava de pavor. Kurama fechou os olhos aliviados. O corpo de Kiki permanecia intocado. Sua energia vital estava tão baixa que não atraia o interesse da planta que ele havia conjurado.

Esperou o vegetal terminar sua refeição e agachou perto da menina, notando a luxação no ombro direito. Ela parecia em sono profundo, e sua respiração era tão frágil que estava quase imperceptível.

Colocou um braço nas suas costas, apoiando sua coluna, e a levantou com cuidado. Pensou nas palavras de Akira, se perguntando com pesar quais tormentos ela poderia estar enfrentando naquele momento. Acariciou seu rosto, afastando a franja dos olhos. O sangue havia secado e endurecido alguns fios de cabelo. O corte na testa era largo, e o ombro precisava de cuidados, mas a expressão de Kiki era serena, como se as dores daquele mundo não mais a atingissem.

Puxou o tronco da garota para perto do seu e a abraçou. No calor da batalha, se sentia forte, quase invencível. Agora, estava mais vulnerável do que uma criança. A devastação corroeu seu espírito, o despedaçando por inteiro.

Sim, acabariam com as operações da Red Society no Makai. Mas a que preço?


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