A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 27
Mercado Negro




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Koenma acordou cansado depois de um dia inteiro de interrogatório. A General Ayaka era implacável quando liderava alguma missão, e pelo visto mantinha seus métodos espartanos também na Corregedoria Interna.

— Bom dia, sr. Koenma — Liu entrou pela porta da sala, a fechando atrás de si.

Koenma olhou para o visitante mas não teve energia para responder. Se fossem iguais aos últimos, aquele dia não teria nada de bom.

— Alguma notícia de Urameshi? — Liu continuou. Evitou demonstrar, mas estava tão desgastado quanto o príncipe espiritual.

— De que jeito? Fiquei preso ontem o dia inteiro naquela sessão de tortura que Ayaka chamou de interrogatório — reclamou — além do mais, Yusuke já não carrega consigo as ferramentas de Detetive Espiritual para facilitar nossa comunicação.

Sua voz murchou ao proferir as últimas palavras, lembranças do estado impotente em que se encontrava.

— Eles mencionaram o nome de Bozukan... — o Comandante falou, assumindo um tom mais sombrio e fazendo Koenma se virar para ele com atenção pela primeira vez desde que entrara na sala.

— Acham que ele está envolvido? — perguntou, intrigado.

Os dois ficaram em silêncio por um instante. Bozukan havia cumprido pena muitos séculos atrás — praticamente um dos primeiros youkais capturados quando o Reikai decidiu estabelecer uma ordem e instituir a barreira entre as dimensões dos Humanos e dos Demônios. Bozukan era rebelde e amargara uma sentença de 300 anos na ala de segurança máxima do Centro de Detenção do Mundo Espiritual. Já tinha sido libertado há muito tempo, e desde então parecia ter mantido suas perversões restritas ao Makai. Koenma não tinha notícias dele desde que fora solto, mas sempre soube de sua fome por poder — traço que parecia típico aos seres de pior espécie que habitavam aquele mundo infernal. Naqueles tempos antigos em que aterrorizava a Terra, a força extraordinária do youkai era tamanha que muitos humanos o classificavam como divinal.

— Desde que assumi meu posto no Esquadrão, mantemos alguns youkais sob vigilância, mas Bozukan nunca apareceu no nosso radar.

Koenma balançou a cabeça, pensativo. Se ao menos ainda tivesse acesso aos seus documentos...

— Essa General... você confia nela? — Liu indagou, mudando o assunto e quebrando a corrente de pensamentos de Koenma, que suspirou.

— Na atual situação das coisas, acho que eu não confio nem em mim mesmo... — comentou, desanimado.

Ele só queria que aquele pesadelo acabasse o quanto antes.

(...)

— Sorte da sua mãe que está morta...

— Eu falei para calar a boca, Akira!

E uma confusão de imagens se misturou de maneira incoerente na sua cabeça.

Os ladrilhos impecáveis da cozinha agora sujos com manchas rubras de sangue, um grito agudo — que ela nem conseguiu distinguir se tinha sido dela ou dele — a chaleira com água fervendo, socos, cadeiras quebradas...

As cenas estavam fora de ordem e deixavam o pesadelo ainda mais apavorante. Ela acordou assustada, e ainda levou alguns segundos para separar o que era realidade do que era alguma criação insana do seu inconsciente. Em seu sonho, Akira estava morto a seus pés, o corpo na mesma posição em que sua mãe havia morrido anos atrás, o sangue escorrendo da mesma forma. Até os buracos das balas eram os mesmos.

Ela olhou ao redor, recordando como fora parar ali e sentiu o corpo doer. Não só pela noite mal dormida, mas pela luta física e mental que havia travado no dia anterior. As costas doiam, a cabeça doía, até seu coração doía.

Kiki ergueu o tronco, e viu Kurama e Yusuke conversando mais à frente, longe dos ouvidos dela. O rapaz estava de costas, falando algo para Kurama, que ouvia calado. Este, por sua vez, estava de frente para ela e, enquanto observava a dupla, os olhos do demônio encontraram os seus, fazendo a garota baixar o rosto na mesma hora. Por alguma razão, olhar para ele doía também.

Levantou meio desajeitada e respirou fundo. Piscou os olhos algumas vezes, torcendo, por um breve instante, que ao reabri-los, estivesse de volta em casa, no seu quarto, na sua cama. Ao invés disso, continuava ali, mirando o chão de pedra.

Ela percebeu uma sombra diferente no chão, e girou a cabeça perseguindo sua origem. Encontrou Hiei a alguns passos de distância, a expressão séria de sempre, os olhos carmesins grudados nela. Ela o encarou de volta, surpresa, e foi a vez dele de desviar o rosto. Teve uma súbita vontade de ir até ele, mas mudou de ideia. Nenhum dos dois teria o que falar um para o outro de qualquer maneira.

— Eu consegui isso... — a garota enfim se pronunciou, se aproximando de Yusuke e Kurama e entregando a pasta que trouxera da casa de Akira.

— Onde você arrumou tudo isso? — a pergunta viera de Hiei, que surgiu do seu lado silenciosamente. Ele a espiava com um ar interrogador, quase como tentando adivinhar a resposta antes que ela falasse qualquer coisa. Ou talvez já soubesse a resposta.

Os olhares dos três caíram sobre ela, que chegou a abrir a boca para explicar tudo que tinha acontecido, mas se viu sem forças para falar. Parecia que tinha vivido muito mais do que apenas 24 horas no dia anterior.

— Não temos tempo para discutir isso — Kurama falou, preenchendo o silêncio com a sua voz para o alívio de Kiki — Podemos entregar os documentos para Koenma depois, ele vai saber o que fazer com essas informações. É melhor sairmos agora. Yusuke pode te colocar a par do que aconteceu durante o caminho.

Ela apenas concordou com a cabeça, calada.

Já estavam quase saindo da caverna quando sentiram um vulto passar por eles, os fazendo girar nos calcanhares, espantados. Longos cabelos dourados esvoaçaram diante de seus olhos, a barra de um quimono branco com detalhes em vermelho roçando rasteiro nos seus tornozelos enquanto a criatura mirava seu alvo e o acertava em cheio. Kurama se viu de costas coladas na parede, pressionado por uma jovem kitsune que já não exibia mais o sorriso matreiro do encontro anterior.

Hiei, Kiki e Yusuke se agitaram diante da cena, e não entenderam quando viram o riso no rosto de Kurama.

— Minha esfera! — Mia gritou — Onde está?

— Você demorou... estou falando que perdeu o jeito, Mia — Kurama falou, mantendo o sorriso sarcástico e enfurecendo ainda mais a kitsune.

— E quem diabos é você? — Kiki perguntou, visivelmente incomodada.

— A Mia é uma velha amiga... que vai nos ajudar a resolver esse caso — ele respondeu — Não é mesmo, Mia?

A youkai pressionou um pouco mais o corpo de Kurama na parede de pedra, antes de finalmente o soltar. Sabia que estava nas mãos dele.

— O que você quer? — rosnou.

— Por enquanto, que nos acompanhe. Acho que suas habilidades podem servir para alguma coisa.

(...)

O Mercado Negro ficava a uma pequena caminhada dali. Tinha um aspecto rudimentar que parecia se mesclar com a paisagem sombria daquele vale. Ao longe, diriam se tratar de uma montanha angulosa, seus picos negros de pedra rachada criando deformidades que subiam em direção ao céu e davam ao lugar uma aparência fúnebre e de abandono. Só quem ousava se aproximar percebia a movimentação em torno daquela fortaleza macabra.

— Fiquem aqui — Kurama pediu — Eu e Mia vamos verificar as entradas.

A kitsune protestou, mas acabou o acompanhando furtivamente até a proximidade do Mercado.

Uma dupla de demônios guardava a entrada principal, mas pelo jeito distraído com que conversavam, não seria difícil atravessa-la. Os verdadeiros desafios, Kurama calculou, estariam lá dentro.

— Vamos lá, Mia, faça o que você sabe fazer — disse, indicando a dupla na entrada, e ela entendeu o que ele quis dizer. Se dirigiu até eles, enquanto Kurama aproveitava para estudar a fortificação.

Pequenas aberturas eram visíveis ao longo da encosta da montanha, localizadas de um jeito que pareciam ser quase impossíveis de ser alcançadas do lado de fora, e dispostas de uma maneira que a primeira vista parecia sem sentido. Uma ponta de dúvida surgiu na cabeça da raposa.

Não demorou para que Mia estivesse de volta, ilesa como ele sabia que ela voltaria. Jogou em sua direção um pequeno objeto, que Kurama apanhou no ar. Abriu a mão para ver o fruto do trabalho de Mia e encontrou uma bolsa de couro que encerrava uma chave de metal.

— Essa chave abre o depósito, suponho que seja esse seu interesse — ela falou, ciente da legendária fama de Kurama.

— Essa não é a entrada certa, não é?

Ela olhou por cima do ombro. Os guardas agora estavam caídos desacordados, resultado do truque da kitsune para lhes roubar a chave.

— Não — respondeu — É uma armadilha. O lugar é um beco sem saída, mas enfeitiçado de modo que quem entrar, não consegue sair nunca mais, perdido na própria ilusão.

Mia suspirou. Poderia ter mandado Kurama e seus amigos direto para a armadilha depois de resgatar sua esfera. Seria sua pequena vingança por aquele ato tão vil e traiçoeiro. Nem ela sabia porque havia desistido da ideia.

— A verdadeira entrada fica do outro lado, uma passagem subterrânea marcada no solo. São três níveis abaixo da terra.

Ela hesitou por um instante, incerta de como continuar.

— Eu deveria falar para você tomar cuidado, mas acho que você não escuta esse tipo de conselho, não é?

— Eu não sou arrogante a esse ponto...

Mia deu de ombros. Sabia que, qualquer que fosse a ameaça, Kurama sempre dava um jeito de se safar. Sempre fora assim, e justamente por isso ela se surpreendeu quando soube que havia sido ferido anos atrás, a ponto de ter que se refugiar no Mundo dos Humanos. Olhou atentamente para ele, se perguntando afinal o que poderia ter mudado desde a última vez que se viram.

— Eu não consegui descobrir quem era o chefe daqueles dois idiotas, mas o timbre da voz deles mudou drasticamente quando perguntei. Não ousaram nem falar o nome...

Kurama assentiu.

— Isso é tudo? — perguntou.

A kitsune olhou de novo para a montanha atrás dela, e de volta para Kurama.

— Eles estão aprisionando humanos.

— Eu sei.

— Desde quando você se importa tanto com eles?

Kurama não respondeu. Ao invés, sacou a esfera estelar de Mia, cujos olhos brilharam na mesma hora ao avistá-la. Ela levou a mão em direção ao pingente, mas Kurama o prendeu com firmeza e o afastou da youkai.

— O Rei Enma está mesmo envolvido com isso tudo?

Ela sorriu com o canto da boca.

— Alguma vez eu menti pra você, chuchu?

Kurama apertou os olhos, tentando ler a sempre indecifrável Mia.

— Eu poderia ser uma aliada muito mais prestativa se você parasse de me torturar dessa maneira — ela sussurrou, se aproximando languidamente dele e levando sua mão até o punho fechado do demônio.

O youko reagiu afastando o corpo.

— Suas técnicas de sedução não funcionam comigo.

— Ah, mas nem sempre foi assim... não é? — ela continuou, perseguindo o olhar dele.

Kurama endureceu ainda mais sua expressão ao ouvir aquelas palavras. Hesitou por um instante, a fitando com seus olhos dourados. Abriu a palma da mão revelando a jóia, que desapareceu no mesmo segundo, junto de Mia.

(...)

Do lado de dentro, o Mercado Negro era tão sinistro quanto do lado de fora. Haviam achado sem dificuldade a passagem subterrânea indicada por Mia. Parecia abrir somente por um código específico, mas o grupo não teve problema em destruir a entrada para ganhar acesso à escadaria que levava aos níveis inferiores.

O primeiro lance de escadas levava a um salão escurecido pela ausência de luz natural. As paredes eram opacas, com uma textura difícil de distinguir. Nada ali indicava o propósito do lugar, e o ambiente era sóbrio, como se os negócios ali desenvolvidos fossem muito mais importantes do que a aparência do recinto em si.

Olharam ao redor, sem perceberem os minúsculos transmissores encrustados nas rochas de sustentação do lugar. A imagem dos quatro invasores era acompanhada de perto por um youkai no andar mais profundo daquela fortaleza subterrânea. Sentado a uma mesa, ele sorria com prazer ao ver o grupo caminhar pela sala deserta, acompanhados apenas pelo som de seus passos e pelo olhar atento do demônio.

Com um gesto, acionou um comunicador e balbuciou algumas ordens. Desligou o aparelho e voltou sua atenção para as imagens da tela, o sorriso anda mais largo.

(...)

— Quem é você? — Yusuke gritou ao ver uma figura parada no meio da segunda escada por onde eles desciam com a intenção de atingir os níveis mais inferiores.

— Não vamos perder tempo com introduções — o sujeito respondeu, abrindo um par de asas cor de chumbo e um sorriso de presas afiadas — Sou o responsável por mandar vocês para o inferno, é tudo que precisam saber.

E o demônio alado saltou em direção a eles, a envergadura tão grande que quase ocupava toda a largura da escadaria. Instintivamente, os quatro se separam em dois, cada dupla colando na parede para escapar do ataque imprevisto.

Logo as armas já estavam em punho. O youkai se aproveitava das asas para escapar dos ataques, e, apesar do tamanho, movimentava-se de maneira leve, quase como se flutuasse.

— Deixem ele comigo — Hiei gritou, e os três concordaram sem pestanejar. Aquela ameaça não seria dificuldade para a agilidade e os treinos incansáveis a que Hiei era submetido constantemente. Rejeitar a proposta seria quase uma ofensa.

Correram escada abaixo, apenas para se depararem com uma nova figura, idêntica ao demônio que tinham acabado de deixar para trás. Olharam espantados, confusos com a semelhança.

— Parece que já encontraram meu irmão — ele falou, sua voz parecendo mais grave do que o agressor anterior.

Ao se projetar, pareceu ainda mais alto e forte. As asas estavam fechadas, mas eram visíveis nas largas costas do demônio, que exibia dentes pontiagudos ainda maiores e mais assustadores.

Ele deu um salto, abrindo apenas a asa esquerda e atingindo o peito de Kurama com a ponta, que recuou com o choque.

— Eu estou bem — ele falou, erguendo o chicote de espinhos — Continuem descendo!

Yusuke e Kiki balançaram a cabeça, mas antes que pudessem voltar a descer, ouviram Kurama chamar de novo.

— Leve isso — disse, arremessando a chave para Yusuke — e tome cuidado.

Os dois assentiram, mas por alguma razão, Kiki sentiu que aquela recomendação tinha sido dirigida mais a ela do que a ele. Tentou captar um vislumbre rápido dos olhos de Kurama, mas ele estava ocupado demais atraindo a atenção do inimigo para que eles pudessem seguir em segurança.

Os dois olharam para o próximo lance de escadas ansiosos, pulando os degraus na expectativa de vencer a descida o mais rápido possível. Não trocaram nenhuma palavra, mas não era necessário. Estavam naquilo juntos.

Chegaram no terceiro nível com o coração acelerado — pela corrida e pela ansiedade. Diferente do salão que os recebeu na entrada, o terceiro andar tinha um corredor comprido, iluminado apenas por luzes artificiais.

O mais baixo dos níveis era também o mais sufocante. O ar chegava ali com dificuldade, deixando a respiração mais pesada. Era como se a atmosfera fosse tão sólida que pudesse esmagar seus pulmões.

— Não estou gostando nada disso — Yusuke falou, em algum momento. Nem se deu conta que Kiki já não o acompanhava mais.


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