Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 19
XVII - As Palavras Têm Poder




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XVII

As Palavras Têm Poder


— Vou explicar de novo. — Isaac suspirou. Era o último dia que Annik e Alice iriam ficar na casa dele e depois iriam partir. Partir para a Instituição em busca daquelas pistas, partir para o Deserto e para suas filhas, as areias flutuantes, mais uma vez, partir para o desconhecido sem fim. — De novo e pela última vez. Já tá quase na hora de você e Annik saírem daqui e procurarem essas malditas respostas!

— Tá certo, continua — ela respondeu, condescendente. Queria ir embora logo, mas Annik havia prometido a “aula avançada” e ela não iria ser ingrata com ela. Não depois de tudo o que elas haviam conversado durante aquela noite.

— Você precisa entender a diferença entre kra’vstan e kayrn. Você se lembra do que eu expliquei antes, né? Pelo menos o básico você lembra, não é possível!

— Um é um nome e o outro é uma palavra, sei… — Seus olhos estavam até revirados de tanto tédio. Isaac era um professor do tipo mais entediante, mas ele sabia explicar, e como sabia. Um Ph.D. em kra’vstan, praticamente. Bem, com todos aqueles livros, era bom ser, mesmo. Enquanto isso, Annik era apenas uma simples bacharelada.

— É exatamente o contrário. Pelo visto, você não prestou nenhuma atenção, tsc, tsc, tsc. Kra’vstan é uma palavra e kayrn é um nome. Isso sem se aprofundar. Se a gente quiser entrar mais nisso aí (e vamos entrar, é claro), você vai ter que saber que o kra’vstan é uma palavra, sim, mas pode ser usada como nome. Ela é melhor traduzida como “nome-palavra” do que meramente um nome. Ela tem um significado e é mais pesada que uma palavra “normal”. O kra’vstan simplesmente nasce na sua cabeça. Se você tentar criar um, ele não vai ser um kra’vstan, nem terá o mesmo peso de como teria se ele tivesse nascido do nada na sua mente. Ah, e ele não é lido como um kayrn, que é só olhar o rosto e pronto, descobrimos o nome. Pra descobrir o kra’vstan de alguém, só perguntando. Normalmente, o criador desse “nome-palavra” pode ser chamado pelo seu kra’vstan. Eu tenho o meu e Annik tem o dela. Ela tinha mais, quando ela roubou de uns desavisados por aí. — Virando-se para Annik, ele perguntou: — Annik, você falou seu kra’vstan pra ela?

Annik, de pé e de braços cruzados, assentiu, impassível como um soldado. Ela observava e ouvia a conversa dos dois que estavam sentados no sofá de couro branco, tomando uma última xícara de café. Provavelmente o último café que Alice tomaria na vida. Depois de sair pela porta daquela casa, estaria fadada à sede e a comer a comida horrorosa de Annik, feita de ingredientes mais horrendos ainda.

— O kra’vstan dela é poderoso. — Isaac deu uma risadinha maliciosa. Soava mais pervertida que maliciosa, na verdade.

Vaert… — Annik começou.

— Shhh!!! Não fala, porra! Me deixa aterrorizado até hoje quando eu ouço, e nem precisa ser o kra’vstan inteiro. É menos pior quando eu leio. Mas não deixo de sentir uns arrepios bizarros.

Annik não se pronunciou, mesmo que estivessem falando a seu respeito.

— Você se sente mal quando ouve esses… kra’vstan? — questionou Alice.

— O plural é kra’vstanva, e sim, todo mundo se sentiria mal ouvindo o nome da Annik.

— Até eu me sinto mal ouvindo meu próprio kra’vstan — Annik sussurrou, mais para si mesma que para os dois. Isaac fingiu não dar ouvidos a ela ou nem mesmo a ouviu, mas Alice tinha um bom ouvido e pôde compreendê-la. Sentiu-se mal. A mesma sensação de pena e impotência de novo. Maldita sensação. Provavelmente teriam uma palavra para descrevê-la ali naquele mundo.

— Que esquisito, vocês — a Menina comentou. — Pra mim é uma palavra como qualquer outra.

Isso é ainda mais estranho — Isaac acentuou. — Bem, um kra’vstan é uma palavra de peso, como eu expliquei. Ela transmite… sensações boas ou ruins, dependendo do seu significado. Talvez um cheiro, uma memória, uma dor, um sabor… É estranho você não sentir nada, mas compreensível. Você é a Kra’vstanlas, mesmo. Pelo visto descobrimos mais uma “habilidade” da Sem Nome. — Ele dirigiu sua palavra a Annik, mas não tirou os olhos de Alice: — Annik, você deveria ter cuidado com essa menina. Se eles souberem que ela pode falar kra’vstanva sem sentir nada, eles vão ficar loucos pra pôr a mão nela. Aliás, se descobrirem que ela é a Kra’vstanlas, eles vão automaticamente querer ela. A Organização iria adorar ter ela como uma arma.

Era estranho saber que ela podia ser uma arma, mas a ideia não era tão ruim. Antes ser usada como um objeto de guerra do que ser esquartejada, afinal. Só não gostaria que eles a usassem contra Annik. … Que estranho. Ver a si mesma contra a Assassina era uma realidade… dolorosa. Engoliu em seco ao pensar nisso. Talvez ela estivesse se afeiçoando demais a ela. Não sabia se aquilo era bom ou ruim. Parecia bom. Se não se afeiçoasse a ela, iria morrer ainda mais rápido do que já imaginava.

— É por isso que ela não tem kayrn, haha! — refletiu Isaac, animado como um professor que faz uma descoberta científica digna de um Nobel. — Um nome é uma fraqueza, todos saberiam o rosto dela. A questão é: será que ela pode ter um kra’vstan? Um kra’vstan dela poderia ser ainda mais poderoso que o seu, Annik.

Annik soltou um “hm” que não parecia significar nada. Porém, ela era difícil de ler e o “hm” dela poderia ter significados obscuros que Alice nem mesmo poderia imaginar.

— Bem, continuando a aula — ele prosseguiu —, temos o kayrn. O kayrn é um nome que remete a uma imagem, ou um rosto, já que estamos falando de nomes de pessoas ou animais. — Lembrou-se da cobra que vira enroscada na mão do homem na foto. Será que ela tinha um kayrn? Muito provavelmente, pelo visto. — Um nome qualquer, deixe-me ver… Justino. Annik, esse nome te faz lembrar do quê?

— Do Imperador — ela respondeu com uma cara nada agradável. Provavelmente estava doida para ir embora dali. Além disso, tinha que tolerar as perguntas intrusas de Isaac. Depois daquela conversa, Alice sabia que deveria andar menos por aquelas ruas sombrias do passado de Annik. Ela parecia menos e menos feliz desde que se vestira e saíra do quarto. Quando estavam no quarto, ela até sorrira duas vezes, mas quando chegou a hora de se trocarem para ir embora, o humor dela mudou da água para o vinho. De agradável e bondosa, ela pareceu estar com os nervos a flor da pele, impaciente e apressada. Isso era por causa de Isaac, claro, com aquelas perguntas malditas, e o falatório que não acabava nunca. Até a Menina estava cheia daquilo, mas aí se lembrava… Annik prometera. E ela iria cumprir, por mais custoso que fosse ter que ouvir a voz esganiçada dele.

— A gente nunca viu o Imperador. Mas nós sabemos exatamente do rosto dele porque o seu kayrn, Justino, nos remete ao rosto dele. Dá pra… visualizar ele na sua mente perfeitamente, as expressões, tudo. Tem umas pessoas que cobrem o rosto pra que os outros não consigam ler seus nomes.

Annik fechou os olhos, numa expressão dolorosa. Aquilo provavelmente a fazia se lembrar de alguma coisa, mas Alice não iria perguntar nada. Ela já sofria demais por causa daquilo. Só esperava que Isaac também pensasse a mesma coisa e não fizesse mais perguntas impertinentes.

Infelizmente, ele fez.

— Annik, você… — Mas a Menina não iria deixá-lo continuar. Ela não queria que Annik tivesse que responder às perguntas dele. Alice sabia o quão doloroso aquilo era para ela. Agora talvez soubesse por que ela tinha tanta mágoa e raiva guardada: porque as pessoas também eram insensíveis demais. Se estivesse no lugar de Annik, a Menina provavelmente iria ficar com muita raiva e tristeza. Não a ponto de espancar alguém até a morte, claro, mas talvez a ponto de dar um soco bem no meio da cara.

— Espera, Isaac. Eu agora entendi a diferença entre as duas coisas, mas ainda não sei pra que o kra’vstan serve. Tipo, ele é um nome e uma palavra, mas pra que raios ele serve? Além disso, a Annik me disse uma vez que quem não tem nome, não tem personalidade, mas eu tenho. Por que vocês pensam assim?

A tentativa pareceu funcionar. Isaac imediatamente a respondeu.

— Essas duas perguntas estão um pouco interligadas. Ninguém sabe o porquê da existência deles. Aparentemente faz parte da “ordem natural” do Mundo. Há quem diga que os kra’vstanva existem por propósito do Kra’vstanlas, ou seja, pra que você os use contra o Caos. Alguns pensam que existe apenas um kra’vstan perfeito. Tem uns loucos que pensam que é o da Annik. Outros que pensam que o seu kra’vstan é o “escolhido”. Há quem ache que o Kra’vstanlas teria que misturar todos os kra’vstanva que existem no Mundo pra formar a Palavra Perfeita. Bem, isso pra mim é pura idiotice, se quer saber. Outros pensam que eles existem pra que cada um seja único. Todo mundo tem seu kra’vstan e ele é único. Uma sensação única transmitida por esse nome-palavra. Isso faz até um pouco mais de sentido. Mas há quem imagine, e eu me incluo nesse grupo, que eles refletem o interior das pessoas. Os sonhos, o passado, os desejos… tudo. Que o kra’vstan seja uma forma de refletir a mente de alguém. É justamente por isso que algumas pessoas, como Annik e eu, pensavam que o Kra’vstanlas era um ser desprovido de sentimentos. Agora a gente sabe que é mentira.

— Espera, você disse “sonhos”, né?

— Sim, por quê?

— Isso me faz lembrar de que eu não tenho sonhos. Ahn… nenhum. Desde que eu… caí aqui, sempre que eu durmo, eu não sonho com nada. Nada. A não ser que eu sonhe e não me lembre, né?

— Isso é… incomum. Eu sempre me lembro dos meus sonhos. Não se lembrar dos próprios sonhos aqui é algo bem interessante… e curioso.

— Talvez — a voz fria e cortante de Annik cortou como uma espada afiada e gelada as vozes dos outros dois — isso seja uma forma de nunca conseguirem invadir os sonhos dela. Isso é uma fraqueza no Mundo, uma vez que qualquer um com um onírico bastante aguçado tem a capacidade de invadir qualquer sonho. Entretanto, não sei se isso os impede de invadir a mente dela enquanto desperta. É complicado invadir a mente de alguém que está acordado, mas não impossível.

— E põe complicado nisso. Nem você, Annik, que tem um talento especial pra essas coisas, conseguiu a proeza de invadir alguém acordado.

Ela não pareceu irritada com aquele comentário. Apenas não pareceu. Ela era um livro muito subjetivo e com figuras de linguagem demais para serem entendidas de maneira correta na primeira leitura.

— Isso é algo que apenas um Obaten conseguiria fazer — ela disse. — E com muito esforço, provavelmente.

— Espera — a Menina chamou —, e um “jeir”?

Jeir? — Isaac pareceu desentendido. — Annik, você andou explicando coisa demais pra ela!

— Bem, eu tive que explicar quando dei um para ela — ela se explicou.

— Hum. Certo. Um jeir, Alice — pela primeira vez ele a chamava pelo nome —, é quase como um kayrn. Ele também serve para nomear uma pessoa, mas, diferente de um kayrn, um jeir não nasce com você e não te faz visualizar as feições de ninguém. É quase como um apelido, praticamente.

— Entendo — respondeu Alice.

— Bem — Isaac se levantou, e em seguida, a Menina —, acho que isso é tudo que eu tenho pra te explicar. — Ele virou-se para Annik e ele suspirou. Ele. Não ela, como de costume. — Foi… foi bom você ter vindo. Eu… achei que estava morta. Todos acharam, quando a Organização anunciou sua morte no rádio. — Por um instante, achou que ele diria que sentiu falta dela, mas ninguém sentia falta de Annik. Para o Mundo todo, era melhor quando ela estava morta. Talvez Isaac pensasse daquela forma também. — Espero que vocês consigam achar respostas. E eu espero que o livro dê todas elas pra vocês, porque eu provavelmente não viverei muito pra procurar elas eu mesmo.

— Não diga isso — Annik o repreendeu. — Não podemos perder mais um da Legião.

— Eh, eu espero que não mesmo, mas não é minha decisão. Enfim, tudo o que eu posso falar agora, Annik e Alice, é boa sorte. Mraivenir. No kra’vstan, essa palavra significa “boa sorte em sua empreitada longa, obscura e perigosa” — explicou ele para a Menina. — E claro, adeus. Tel. Significa um “adeus curto, profundo e verdadeiro”. É curto, mas usado sempre em despedidas longas. Longas, mas espero que não seja pra sempre. Ah, e Annik, ensine pra ela o kra’vstan. Se ela for a Sem Nome, ela deve saber a Língua.

Annik assentiu como um cavaleiro assente ao receber uma tarefa de um rei, um assentir profundo e honrado, e apertou a mão de Isaac com firmeza.

Tav, Isaac. Obrigada. Muito obrigada — respondeu Annik. — Nós vamos voltar — prometeu. Ela virou-se para a Menina e a olhou com uma expressão fria e pesada. Uma expressão como quem parece sair de um enterro após chorar muito, uma expressão que indicava para seguir adiante, mesmo com inúmeras adversidades. — Alice, vamos. Já está na hora de partirmos.

Cruzando a sala, Alice vestiu seu sobretudo e seguiu Annik, que já usava suas velhas roupas, agora mais limpas: seu enorme casaco de couro, calças, botas — dessa vez militares e com os cadarços perfeitamente amarrados — e camisa branca por baixo. E claro, sua boina sobre a cabeça e o taco de baseball nas costas, a sua identidade. Por mais que aqueles nomes significassem a identidade, a mente, ou o que seja das pessoas, a Menina sempre iria lembrar-se de Annik não pelo seu rosto, mas por causa daquela boina que ela insistia em usar sempre e por causa do taco de baseball. Agora não mais o maldito taco. Já não o temia mais. Já não a temia mais.


O ar do deserto frio era a única realidade que existia e toda a casa de Isaac pareceu ser um universo entrando em colapso, uma parede fria que estava pintada de casa, um sonho terrivelmente distante e que parecia dar os ares de esquecimento. Já a casa era um portal para outra dimensão: uma dimensão quente, confortável, com comida boa e camas macias, enquanto o deserto era o frio, a sensação de perigo constante, sem comida e a cama era ou gelada ou fervente.

Annik entrou no carro, no banco do motorista, e Alice, no banco traseiro. E deu-se a partida. E, depois de ligado, veio a marcha.

E depois da marcha, o começo.

O carro começou a se movimentar. Primeiro devagar, depois com mais velocidade.

As rodas… tudo parecia em câmera lenta. O relógio no computador de bordo parecia piscar numa velocidade lenta… lenta… E o velocímetro demorava a atingir o topo, o pé de Annik no acelerador dava a impressão de que ela estava pisando em algo emperrado de tão devagar.

A casinha bem cuidada de Isaac já ia ficando longe, desaparecendo no meio de dunas de areia para nunca mais ser visitada.

Não adiantava fazer promessas. Saberia que não iria voltar ali. Nunca mais. No Deserto, caminhos deveriam seguir em linha reta. Se ela retornasse, sabia que ficaria perdida, andando em círculos. Para sempre.

O carro serpenteou pelas curvas sinuosas da rodovia. O asfalto era uma grande, enorme língua, que lambia o carrinho azul enquanto ele tentava chegar à goela. A língua lambia o carrinho numa risada cruel e doentia de um palhaço psicopata e assustador, de um serial killer prestes a matar sua vítima. Mesmo sabendo daquilo, Annik prosseguia. O fim do mundo era a garganta; a estrada, a língua pegajosa de baba viscosa e o Deserto era a boca.

A boca que as engolia numa mordida voraz.

E, mesmo assim, mesmo sabendo que tudo e todos estavam contra elas, ela continuou acelerando.

Porque o caminho não pode sofrer desvios.

 


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Notas finais do capítulo

Fim do Primeiro Cântico - Gênesis.



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