Insidious escrita por Bah


Capítulo 8
Voando




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Me arrependi de ter vestido o casaco pesado assim que pisei na calçada. Os raios de sol tomavam cada vez mais força com o passar das horas. Me sentia como uma vítima de sequestro recém liberta. Era estranho fugir do mármore negro daquela casa, respirar ar de verdade, porém, diferentemente de quem é mantido prisioneiro, eu não via a hora de voltar para meu cativeiro. Era como se o mundo fosse grande e perigoso demais para mim.

Girei a maçaneta da porta de minha casa e percebi que o mesmo frio na barriga que senti antes de conhecer Oliver se apossou de mim. Fiquei estática, apoiada no batente, até que a voz de Peter me colocou de volta em meu prumo. Abaixei-me para ficar em sua altura e esperei vê-lo correndo com os bracinhos abertos em minha direção, mas não foi o que aconteceu.

—Vá até lá, Peter! É sua irmã! _ Dizia minha mãe enquanto o pequeno escondia-se atrás de sua saia.

—Peter?

—Eu não entendo, Alicia, ele sentiu tanto sua falta!

Tentei me aproximar, mas ele se esquivou com um dos punhos cerrados para cima. Pensei que tentaria um soco, mas a mão foi se abaixando lentamente e, ao abrir, revelou o corpo de uma pequena borboleta quase completamente esmagada, agonizando.

—Peter! O que você fez?!

Mamãe cobriu a boca com uma das mãos enquanto papai dava gargalhadas no sofá.

—Ora, é uma criança! Crianças caçam animais, não é mesmo, garotão? Eu quando era pequeno caçava lagartixas com Josh, Ethan e...

Deixei que falasse sozinho e peguei Peter no colo, mesmo que ele estivesse relutante, e levei-o até meu quarto. Lilith, que se olhava sem blusa no espelho, deu um pulo ao nos ver e vestiu-a rapidamente.

—Cici! E-eu e-estava...

—Tudo bem, querida, eu estava com saudade.

Meio sem jeito, veio ao nosso encontro e relaxou ao me abraçar.

—Você faz tanta falta, Cici...largue esse trabalho bobo e volte para casa, por favor!

Peter começou a sacudir as pernas, coloquei-o no chão e parei em sua frente, agachada, segurando firme seus bracinhos.

—Por que fez aquilo, Peter? Por que machucou um animal? Nunca mais faça isso, entendeu? Não tem graça.

Ele sacudia a cabeça de um lado para o outro, os olhos fechados. Soltei-o e ele saiu correndo.

Sentei na cama e respirei fundo. Estava pronta para dormir até hora que quisesse, mas me detive ao ver os olhos marejados de Lilith, que me encarava como se eu fosse uma estranha.

—Raio de sol! O que foi?

—Por que nos abandonou, Cici? Eu não quero mais ficar sem você aqui! Te odeio! Você prometeu que nunca iria nos abandonar, mas agora você...

Começou a esfregar um dos olhos e um choro incessante se iniciou. Levantei-me rapidamente e a abracei, trazendo-a comigo para a cama.

—Querida, olhe para mim!

Eu subia seu queixo, mas ela abaixava a cabeça, evitando manter contato visual.

—Eu não abandonei vocês. Se estou trabalhando naquela casa, é por que quero o melhor para você e nosso irmão. Papai nem sequer se levanta do sofá para procurar um emprego, mamãe é fraca demais para sequer sair de casa, e vocês merecem o melhor. Eu..._ minha voz começou a ficar embargada e uma lágrima traiçoeira rolou _ eu não consigo me conformar, não consigo ser impotente, não poder dar o que vocês merecem. Me perdoe pela minha ausência e...

Assim como o esperado, em sua doçura habitual, Lilith me deu um abraço capaz de espantar todos os males. Deixei que as lágrimas caíssem até que se cessassem enquanto ela engoliu o choro para me dizer que tudo ficaria bem.

...

Mamãe decidiu preparar um jantar para comemorar a reunião da família, porém, como sempre, um silêncio constrangedor preenchido apenas pelos gritinhos e inquietude de Peter tomou conta da mesa. Eu comia rápido para sair o mais cedo possível.

—Então..._ começou papai enquanto comia uma coxa de frango _ não vai pegar nem um pedaço, querida?


—Eu sou vegetariana há mais de cinco anos, pai...

Ele pareceu constrangido. Todos se mexeram um pouco em suas cadeiras. Mamãe me lançou um sorriso forçado enquanto mastigava algo. Lilith brincava com o macarrão no garfo e, por sua expressão, era claro que seus pensamentos estavam em qualquer outro lugar bem longe dalí.

—Vou levar Peter comigo ao meu trabalho amanhã. Ele vai dormir comigo uma noite lá. _ Decidi falar de uma vez.

Lilith olhou para mim como se eu a tivesse traído e empurrou o prato para longe. Mamãe começava suas considerações, mas bastou que papai levantasse um dedo em sua direção para que ela abaixasse a cabeça e se calasse.

—Não, não vai, Alicia, nós nem sabemos quem é essa gente.

Dei uma gargalhada que não era, nem de longe, feliz ou amistosa.

—E desde quando se importa? Não fosse por mim, não haveria nem comida nesta mesa, nenhum de vocês dois está em condições de negar nada.

Ele bateu com as duas mãos gordas na mesa, fazendo mamãe pular e cobrir o rosto com ambas as mãos.

—Eu sou e sempre serei o homem e patriarca nesta casa! _ ele berrava _ Se acha que pode mandar em algo só por que todo mês uma mixaria cai em nossa conta, está muito enganada. Você nem sequer é uma adulta, é uma adolescente prepotente, que se acha dona do mundo! Bem parecida com sua mãe antes de eu aparecer e colocar as rédeas nela.

Levante-me da mesa e me pus à sua frente, olhando para cima para alcançar seu rosto, mas isso não me intimidou.

—Então permita-me dizer o que você é! O que vocês dois são...

—Não se atrev...

—Você é um bêbado frustrado que não sabe cuidar nem dos próprios problemas de pressão e acha que pode comandar uma família inteira. É só mais um homem machista e controlador entre tanto os outros, que gosta de maltratar, pisar e sub julgar mulheres para se sentir bem, para camuflar os próprios problemas de confiança. Não ache que conseguirá fazer o mesmo comigo só porque conseguiu uma mulher fraca e influenciável para se casar.

Esperei um tapa, um soco, qualquer coisa, mas senti uma ponta de pena ao avaliar sua expressão. Ele parecia derrotado. Jogou o corpo na cadeira e apoiou a testa em ambas as mãos, com os cotovelos na mesa. Mamãe tentava disfarçar as lágrimas enxugando-as de cabeça baixa.

—Portanto, devo avisar que levarei sim Peter comigo amanhã. Tenham uma boa noite.

Joguei o guardanapo na mesa, tirei Peter da cadeirinha e subi. Lilith seguiu-me com ar assustado, Peter brincava com os próprios dedos em meu colo, alheio a tudo.

—Então vai levar Peter e me deixar aqui? _ Perguntou Lilith com as mãos na cintura, começando um biquinho.

—Princesa, escute...Peter precisa de tratamento e precisa de mim! _ coloquei-o no colchão e entreguei um dinossauro de plástico para que pudesse distrair _ Preciso que fique e tome conta da mamãe para mim, preciso que seja uma mocinha. É só por uma noite.

—Eu não sou igual a você! Não sou mocinha, nem tenho seios ou uma cintura igual a você! Os garotos nunca vão me olhar e ninguém me escuta e respeita igual fazem com você.

Me lembrei de quando a vi se encarando sem blusa no espelho. Reprimi um sorriso.

—Venha cá, Lili, senta aqui. _Disse dando tapinhas em minhas pernas.

Ela se sentou em meu colo e, ao observá-la de perto, percebi algumas manchas em seu rosto. Passei o dedo e uma delas sumiu. Ela cobriu a bochecha assustada, como se tivesse acabado de se lembrar delas.

—O que é isso, Lili, você pintou seu rosto?

—E-eu queria ter sardas iguais as suas.

Busquei um espelho pequeno dentro da gaveta e puxei-a para meu colo novamente.

—Olhe para esse espelho, princesa. O que você vê?

—Meus olhos e meu nariz.

—E agora?_ perguntei abaixando-o um pouco.

—Minha boca.

—Vê algo de errado neles?

Ela desviou o olhar.

—Você tem os cabelos mais lindos e brilhantes que já vi. Olha só o tamanho dessa boquinha! _ Ela riu quando amassei suas bochechas _ E esse nariz arrebitado, pronto para dar ordens.

Ela enxugou o nariz e me abraçou, afundando a cabeça em meu peito.

—Dá para ver todas as galáxias nesses seus olhos azuis, Lilith. Um dia você será uma mulher forte, gentil, atraente e empoderada. Por enquanto, é uma criança linda, doce e já é extremamente forte. Tudo a seu tempo, raio de sol. Terá seios, garotos e a vida que sempre sonhou. Não tente se comparar a mim, você é infinitamente melhor. _ ela me apertou forte _ Agora durma, você tem aula logo pela manhã.

Ajeitei-a na cama. Peter dormia profundamente em meu colchão e o mínimo movimento o acordaria. Optei por deitar-me no sofá.

Levava meu travesseiro e o cobertor, mas parei no corredor quando vi mamãe sentada na sala. Encarava a TV desligada, os olhos inchados de chorar, enquanto segurava contra o peito uma caixa de lenços, que usava para enxugar o nariz inchado.

—Mãe?

Ela pareceu se assustar. Limpou as lágrimas rapidamente e se levantou juntando os lenços, como se estivesse apenas limpando o cômodo.


—Oi, querida, eu estava...ãh...quer comer algo? Posso preparar um...

Abracei-a antes que pudesse terminar a frase. Seu corpo estava tenso no início e os braços não me envolviam, mas assim que relaxou, passou-os em volta de mim e se permitiu chorar.

—Me perdoe, mãe, eu sinto tanto...

—A culpa não é sua, querida, você só disse verdades.

—Não, para...

—Eu sou mesmo uma fraca, não consigo nem tomar conta dos meus filhos, eu...

Ela esfregava o rosto como se quisesse arrancar a pele.

—Você está doente, mãe. Depressão não é vergonha e você não pode se ajudar sozinha. Não pode e nem deve, estou aqui contigo.

Ela tentou parar as lágrimas e abriu um sorriso.

—Durma, filha, vai ter que acordar cedo amanhã.

E foi cambaleando para o quarto, dormir com o homem que nunca demonstrou que a amava.

...

Saí de casa com Peter dormindo em meu colo, a bochechinha rosada espalhada em meu ombro enquanto o bracinho pequeno pendia sobre minha bolsa. Estava ficando mais pesado, mais velho, quase impossível para os meus um metro e sessenta e quarenta e oito quilos carregarem. Isso me assustava.

Eu tinha motivos para levá-lo até lá, e conseguir que a família realmente pagasse o tratamento não era o mais importante deles. Vi no olhar de Oliver o quanto era importante para ele conhecê-lo; alguém também incompreendido.

Demorei a achar a chave principal no emaranhado com todas as chaves da mansão que Margareth havia me dado. Ao abrir a porta, me deparei três médicos, dentre eles o doutor Velázquez, conversando com a senhora Hill, que ouvia o que tinham a dizer com expressão impassível enquanto caminhavam até a porta.

— ... portanto, todo cuidado é pouco. _ Foi o que consegui ouvir.

—Muito obrigada, doutores.

Passaram por mim como se eu não existisse. Hill fez sinal para que eu saísse da frente. Me espremi na parede com Peter.

Assim que a porta se fechou, ela suspirou fundo, como se fosse um grande sacrifício aguentar minha presença.

—Tudo bem, quem é a criança?

—Meu irmão, Peter, para quem a senhora vai pagar o tratamento.

—Bom, e posso saber o que ele faz aqui? Vou ter que alimentar a família inteira também?

Meu sangue ferveu.

—Foi Oliver quem o chamou.

—Ah, claro, ele tem mesmo autonomia e poder de decisão o suficiente para convidar alguém sem minha autorização...

—Eu posso levá-lo de volta para casa, se sua presença for incomodar tanto.

Ela apenas bufou, colocou os óculos escuros, pegou as chaves do carro e bateu a porta atrás de si.

Sentei-me no sofá e o sacudi lentamente. Deu um gemido impaciente, reclamando por ser acordado. Meus braços ardiam.

—Bom dia, pequenininho, hora de reagir.

Não vi o momento em que Margareth apareceu na sala, mas seu entusiasmo denunciou a chegada.

—Mas que maravilha! Há tempos não vejo uma criancinha. Qual é seu nome, coisinha linda?

Ela se ajoelhou à nossa frente. Peter, agora sentado em meu colo, esfregava um dos olhos com a cara emburrada, os cabelinhos de fogo arrepiados só do lado que ficara encostado em meu ombro.

—O nome dele é Peter.

—É seu irmão? _ Assenti _ Quantos anos tem?

—Fez quatro há um mês.

Margareth tentou tocá-lo, mas ele se esquivou.

—Não sabia que gostava de crianças, Margareth.

—Ah, sim, praticamente criei Oliver e seu...

Interrompeu a fala ao perceber que algo indevido sairia.

—Criou Oliver e mais quem? _ Pressionei.

—E seu primo. Agora não mora mais pelas redondezas.

—Primo? Oliver nunca mencionou.

—Pois é, ele é um rapaz reservado. Por que não vai vê-lo? Deve estar te esperando...ele está sempre te esperando.

Fingi não notar sua tentativa óbvia de mudar o rumo da conversa, pois aquilo ficaria para depois. Eu mal podia esperar para apresentá-los.

Peter já estava mais do que acordado. Observava a casa com atenção e se assustava com o menor barulho que fosse.

Dei três batidas na porta de Oliver e sorri ao ouvir sua voz.

—Só é permitida a entrada de garotas lindas e ruivas que acham que me amam. Caso se encaixe nos pré requisitos, pode girar a maçaneta.

—Então devo deixar uma criança ruivinha do lado de fora? _ Disse já abrindo a porta.

Pude ver os olhos de meu irmão brilharem ao encontrar os de Oliver. Seu corpo, antes retesado, relaxou em meus braços. Coloquei-o no chão e mal pude acreditar ao vê-lo correr de braços abertos na direção de Oliver. Tentei detê-lo, imaginando que pudesse ser inconveniente, mas Oliver agachou e o recebeu em seus braços com o mesmo calor e naturalidade.

—Olha só, garoto! E eu que pensei que fosse impossível alguém ter mais sardas que Alicia Mitchell em uma só vida...

—Muito engraçadinho!

Ele segurou o queixo de Oliver em suas mãozinhas gordas e uma ligação mágica se iniciou. Pude sentir a troca de informações, de energia, compreensão que se estabeleceu sem que nenhum dos dois dissesse uma palavra. Peter explorava seu rosto, apertava seu nariz, e mexia em seus fios compridos com certa brutalidade. Percebi uma lágrima rolar no rosto de Oliver, e só então notei que uma também rolava no meu.

—Alicia...

—Sim?

—O olhar desse garotinho foi o melhor presente que você poderia ter me dado. Sem medos, julgamentos...

Os detalhes da estante chamaram a atenção de Peter, que correu até ela. Oliver continuou agachado, olhando-o com ternura. Ajoelhei-me ao seu lado e dei um beijo em seu maxilar trancado, pulsando para esconder a emoção.

—Quer saber? Pensando bem ainda há um presente maior do que este. _ Disse sentando-se completamente no chão, puxando gentilmente minha cabeça contra seu peito.

—E qual é?

—Um dia você saberá, Cici.

Estava pronta para fazer perguntas quando Peter sorrateiramente derrubou mais de três livros da estante.

—Peter!

—Deixa, deixa! _ Disse Oliver puxando meu braço, me impedindo de reprimi-lo. _ Essa casa precisa mesmo de um pouco de barulho.

De repente seu sorriso se extinguiu e a mão pousou novamente na cintura. Sua expressão era de dor.

—Ei! O que foi? Essa dor de novo? Por que não me diz o que está acontecendo, Oliver?

—É só um problema renal, estou tratando, meu bem, nada demais. Não foi atoa que meus medicamentos dobraram.

—Problema renal? Que tipo de problema? Pedra nos rins ou algo assim?

—Não é nada grave!

Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Oliver se levantou e foi até Peter.

—Bom, quem está com fome aí? Por que eu estou! _ Disse olhando para Peter, que levantou o dedinho.

—Oliver eu...

—Peça para a Margareth preparar algo para vocês, Alicia.

Seu tom era ríspido comigo, só se tornava amigável quando dirigido à Peter.

—Um ataque?

Ele balançou a cabeça afirmativamente, freneticamente.

Tirei Peter do quarto e tentei distrair a cabeça enquanto ele estava lá dentro. Não queria avisar a Margareth, não queria vê-lo dopado, cheio de remédios de novo, mas ao ouvir um de seus gritos, não vi outra solução. Coloquei Peter em meu colo e saí procurando-a pelos corredores.

—O que foi, menina? Está pálida feito um fantasma! _ Disse ao trombar comigo na sala de jantar.

—Margareth! Graças a Deus! Oliver está tendo um ataq...

Antes que eu terminasse a fala, tirou uma seringa do bolso e seguiu para seu quarto, como se estivesse previsto que aquilo aconteceria.

Peter ficou inquieto em meu colo. Coloquei-o no chão, esperando que saísse correndo como de costume, mas parou à minha frente.

—O que foi? Está assustado?

Calmamente levantou as duas mãozinhas e fez o final de uma borboleta voando.

—Querido, o que quer me dizer?

—Voando... _ Disse baixinho.


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