Espelho escrita por Mayor Hundred


Capítulo 1
Capítulo Único




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Observou profundamente a imagem refletida no espelho e não gostou.

O que via não lhe agradava. Nada do que via lhe agradava. Absolutamente nada. Nenhum ponto. Sua visão era debilitada ao ponto de necessitar de óculos para corrigir, mas, mesmo assim, parecia conseguir enxergar cada pequeno defeito. A oleosidade que se acumulava, deixando o rosto brilhoso. Os cravinhos pretos ao redor do nariz. As espinhas e marcas que ficaram. Mesmo os ralos e quase invisíveis pelos que tentavam aparecer.

Se achava feia.

Feia em cada pequena parte que se ajuntou para formá-la, cada célula, cada tecido, cada órgão e cada sistema. Não tinha o nariz delicado, os lábios finos, o cabelo brilhante e sedoso, ou olhos claros. Não, nada disso. Era estranhamente brasileira. Uma mistura de um monte de povos, uma quantidade assustadora de etnias e não sabia como se definir. Mentira, sabia sim: feia. Aliás, por que todos os outros tinham que ser tão perfeitinhos? Todos com os cabelos bem arrumados, a pele bem tratada, e os dentes bem brancos. Todos tentando se adequar ao padrão europeu de beleza. Era estranho como a sua visão debilitada conseguia enxergar tantos defeitos em si mesma e tão poucos em todos os outros.

Mas, bem, voltou a olhar ao reflexo e continuava não gostando. Ela, com certeza, não se encaixava naquele padrão que a fizeram acreditar ser bonito. Alta, atlética, corada, e, de preferência, loura de olhos claros. Não, era quase o oposto disso. Aliás, conseguia ver o seu corpo mudando para pior. Tornando-se gorda. É, gorda. G-o-r-d-a. A palavra que todo mundo parecia evitar perto dela. Como se fosse proibida. Secreta. Profana. “Você está fortinha” ou “maior”. Ela estava gorda. E o cinismo não ajudava. Tampouco as risadas dos amigos quando ela recusava algo pela quantidade de calorias.

Ela não gostaria de admitir, mas não era só a parte física que não gostava em seu reflexo. Era basicamente tudo. A sua dificuldade com as palavras, a maneira que suas notas no colégio eram somente um pouquinho acima da média, a forma em que todo mundo parecia ser bom em pelo menos alguma coisa, menos ela.

Seus olhos estão bem presos à imagem em sua frente, mas a sua mente voa para longe. Ou não tão longe assim. Logo ali, perto de casa. A escola que frequentava. Com os professores sonolentos e mal pagos, já desacreditados num sistema de educação básica falido. Nos seus colegas. Diz colegas porque não sabe se considera algum como amigo.

Mesmo ali, no banheiro de sua casa, não consegue sentir-se protegida dos olhares que pinicavam tanto. Tentou puxar da memória a última vez em que se sentiu bem consigo mesma, e não gostou do que encontrou.

Quando, numa discussão em classe, argumentou a favor da legalização do aborto. Acreditava veemente que a criminalização dessa prática era um erro da sociedade por n motivos. Foi capaz de convencer a sala inteira e mesmo o professor e sentiu-se orgulhosa por isso. Os olhares no fim da aula estavam até diferentes, ela achava.

Mas os dias foram passando, e as coisas voltaram a ser como eram.

Depois de duas semanas, brigou com a sua mãe por alguma coisa que não fazia sentido. Trocaram xingamentos, e, em algum ponto, sua mãe quis machucá-la tão fundo que usou um segredo. “Você foi um acidente”.

Como alguém poderia ser um acidente?

Seus pensamentos viraram de cabeça para baixo. É claro, mantinha as mesmas convicções, mas se pegava com o pensamento de que não estaria ali, naquele mundo, se sua mãe tivesse optado pelo aborto. Nenhuma das coisas que tocou, seriam tocadas. As vidas que mudou, as estações que transformou, os pensamentos que formou. Tudo isso desvaneceria. E se tornaria o que? Melhor? Pior? Ou talvez simplesmente diferente.

Não, definitivamente para melhor.

Sua mãe não seria tão amarga. Seu pai não teria que trabalhar tanto. Seus colegas de escola não teriam alguém para rir. Seus professores não teriam alguém que os importunassem.

E o espelho que encarava não seria tão detestável.

Olhou novamente para cada pedacinho de si, cada representação do seu eu em forma de carne e pele, e, em conjunto com esses pensamentos que pesavam a sua cabeça, fugiu. Fugiu não só de seu reflexo, mas daquele banheiro opressor de tão branco e limpo, daquela casa que fedia a sonhos partidos e verdades não ditas. Escapou daquele bairro, daquela cidade.

Entrou num trem que partia para a capital, que não era muito longe, mas que forçavam a dizer que, ainda assim, não era a mesma coisa. O trem ia para o “lado certo”, e ela já não lembrava do motivo dessa piadinha interna do lado certo. Já não sabia se era direita ou esquerda. No final, parecia ser o mesmo lugar.

Lugar nenhum.

Mas qualquer lugar servia. Mesmo nenhum lugar. Qualquer outro se não ali. E o ali não era físico. Ou talvez fosse. Era mais do que espaço. Era mais do que a rua, ou a calçada, ou o seu arredor. Mais do que o seu próprio corpo. Talvez mais do que a sua consciência, ou alma, se é que ela acreditava nisso. Ali era perto demais. E ela queria distância.

Por isso que foi para o “lado certo”, e esperou pacientemente. Primeiro de pé, e então arrumou um lugar. Com os fones de ouvido, o mundo lá fora parecia silencioso e totalmente indiferente à sua existência. As pessoas iam e vinham. Algumas com histórias para contar. Algumas com o seu mundo inteiro bem guardado na bolsa. Outras vendendo balas, chocolates, garrafas d’água e outras coisinhas.

Era estranho como nenhuma a olhava.

O olhar a atravessava. Não era superpoder, só desinteresse.

Deseperança. “Des”-outras-coisas.

Des.

O lado certo era engraçado. A cada nova estação, o trem ia se esvaziando. Até chegar ao centro, e mesmo ela ter que desembarcar, para pegar um metrô que ia mais profundo ao lado certo. As linhas no mapa daquele transporte pareciam ter mais cores do que os sentimentos das pessoas que o embarcavam.

Talvez fosse porque estavam tão cheios de preocupação e cansaço que não restava mais nada, era o que pensava.

Mas não importava.

Ia para longe, e era o que importava.

Ir para longe. Mesmo estando ainda “ali”. Dentro de si. E as estações começavam a ficar mais limpas e bonitas. As pessoas começavam a embranquecer, e parecem até ser mais felizes. A música não ajuda a compor o cenário. Em seu aparelho, só haviam músicas tristes. Mas ela costumava a dizer que melancolia era como preto: combinava com tudo. Com tudo, menos o branco. Tudo, menos a felicidade.

Mas isso ela não estava tão familiarizada para saber.

Ou estava?

Descia sempre em qualquer estação, como desceu desta vez. Em qualquer estação porque, àquela altura, eram quase todas iguais. Bairros residenciais para pessoas ricas, brancas e felizes. E as casas eram tão bonitas de se ver. Tentavam, quase que desesperadamente, retomar algo de europeu, ou mesmo norte-americano. Talvez até uma ou duas que se arriscava em algo do oriente. Tudo, menos brasileiro. Era provável que mesmo eles queriam fugir do “ali”.

Procurou um lugar para sentar, como sempre procurava.

Desta vez encontrou o lugar perfeito, em um parque tão igualmente perfeito, com pessoas perfeitas que caminhavam por ali. Quando menina, achava que a perfeição era o ápice do que poderia se chegar. Agora, achava-a sufocante. Opressora. Dolorida. Mas sentou-se mesmo assim.

Sentou e olhou para o céu. Para as árvores. Para as pessoas que passavam por ali. Para as casas que tentavam pertencer de outro lugar, que não ali.

Deveria ser bom olhar para todo o lado e ver a sua própria cultura representada. Devia ser ótimo olhar para um pôster e poder identificar-se. Devia ser espetacular acreditar que havia um único Deus e ele era bom, justo e perfeito, que estava olhando para tudo e por todos e que tudo iria fazer sentido no final. Devia ser perfeito olhar para o espelho e não ver um buraco, e sim algo completo.

Sem ter onde se apoiar, chorou.

E o pior de ter chorado em público é que ninguém a notou. Era uma barata caminhando num lençol branco e, ainda assim, era invisível.

Deixou as lágrimas fluírem até o vento começar a cortar a sua pele, com o frio. Até os olhos se afogarem a ponto de não conseguir ver nada. E alimentou a vã esperança de que, quando voltasse a enxergar com clareza, as coisas estariam no lugar. Fariam sentido.

Não estavam. Não fizeram.

Tinha que voltar. Chegar mais ou menos no horário e mentir para os pais, dizendo que estava no colégio. Voltou para o “lado errado”. Ouviu sua música. Viu as estações se tornarem cada vez mais cinzas, sujas e tristes. E nada mudou.

Voltou para a sua cidade, para o seu bairro, para a sua casa, e, eventualmente, para o banheiro.

Olhou de novo para o espelho, e foi a primeira vez em muito tempo, talvez toda a sua vida consciente, em que esteve só ali. Só naquele lugar, naquele momento. Não estava pensando no futuro, ou lembrando do passado. Apenas com os pés descalços firmados no azulejo duro e frio, e os olhos bem fixos ao espelho.

As sobrancelhas estranhas e assimétricas. Os olhos escuros. O cabelo artificialmente liso. A boca e o nariz grandes demais para o “padrão”. A pele oleosa e de um tom difícil de definir. As espinhas que queriam nascer.

Nunca houve motivo para encontrar beleza.

Até agora.


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