Liars and Killers escrita por A Lovely Lonely Girl


Capítulo 39
Capítulo 35


Notas iniciais do capítulo

Olá, queridos leitores e leitoras que continuam lendo Liars and Killers. Só tenho a agradecer todo esse apoio e esse amor que vocês demonstram para com a história. É com muito orgulho que venho presenteá-los com o maior capítulo da fanfic, com mais de 20 páginas no word. Amei escrever, de coração, e amei ainda mais apresentar personagens novos.
Indicação de livro: Cidade da Lua Crescente. Me ajudou muito lê-lo enquanto estava no primeiro estágio de luto – a dor - pela minha vó. Aqueles que leram vão entender o porquê. Quem não leu, recomendo, porém, a classificação é +18.
Sinto muito por não responder os comentários, mas estive um pouco ocupada escrevendo essa belezinha aqui. Espero que gostem ♥
E não é porque ainda não respondi aos comentários que não sou grata a todos vocês, quero deixar aqui a listinha de agradecimentos:
Do Wattpad: @fknalaa @luanny222 @lipeluan @BiaHiddlesBarnes887 @sadbbyz @MarinaBotelho5 @Taydias33
Do Social Spirit: @VRB @capnimato @Lucy-Scarlet @KarolayneGR
Espero que gostem do capítulo!



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{Katherine Adams Kohls}

            Me sentei à sombra de uma árvore repleta de flores azuis celeste. Os variados seres que viviam no Recanto das Musas estavam agitados, o riso das crianças e de alguns machos bêbados, além das conversas animadas entre todos ali enchiam o ar de vida. Amaridis havia discretamente levado Loki para dentro de um lugar que parecia um templo de mármore branco, do chão ao teto. Quando ela começou a gritar com ele sobre tentar matar o elfo no riacho, decidi que seria melhor me afastar e deixá-los discutir com privacidade.

            Então resolvi observar os preparativos para a fogueira. Ela seria realizada em uma ampla clareira. Era incrível — num passe de mágica, já havia barracas de comida, bebida e de brincadeiras para as crianças. Sorri amplamente quando percebi um grupo de músicos arrumando seus instrumentos do lado oposto ao meu, o que me permitia uma visão privilegiada de seus instrumentos, apesar das pessoas que passavam em frente. Alguns eram de sopro, outros de percussão, e ergui as sobrancelhas quando notei um dos instrumentos, parecia não passar de uma vareta enorme de dois metros de altura. Me inclinei levemente para frente para verificar como aquilo seria tocado, me controlando para não ir lá e começar a questionar os músicos sobre como tudo funcionava.

O enorme bastão prateado brilhou, revelando o que parecia ser uma teia de aranha roxa. Dois machos baixinhos, não passavam de 1,20 de altura, seguravam o instrumento. Um se aproximou do bastão e começou a soprá-lo, uma melodia suave começou a preencher o ar. O segundo homem saltou e se pendurou na teia de aranha, dedilhando-a como uma harpa, em seguida comecei a sentir como se a música reverberasse em meus ossos, um leve pó azulado passou a sair da teia de aranha, e fiquei boquiaberta. O pó azulado voando por toda parte transportava a música consigo, como minúsculos speakers mágicos.

            Foi preciso um esforço enorme de minha parte para não começar a dançar, e meus ossos pareciam implorar para que meu corpo se movesse ao ritmo da música. Franzi os lábios, estreitando os olhos com inveja das fêmeas que saltitavam e rodopiavam alegremente à frente dos músicos. Uma voz ao fundo da minha mente, que nada tinha a ver com Kitty, parecia sussurrar.

            Dance, dance, dance. Cante, cante, cante. A música é o caminho para a felicidade plena e imortal.

            Suspirei, fazendo um biquinho de insatisfação por não poder sair do lugar. Loki não havia me pedido para fazer aquilo, porém, mesmo assim, havia decidido por esperar que ele me encontrasse para que ele me dissesse o que podia ser letal para um humano ali e o que eu poderia fazer, se eu poderia dançar, quais alimentos eu podia consumir sem, por acaso, sufocar até a morte. Depois do que ele me dissera sobre ter que defender a minha honra, a decisão mais sábia seria esperar. Apesar de o Recanto das Musas ser um lugar de paz, obviamente isso não o isentava da presença de babacas mesquinhos e preconceituosos.

            — Pelos deuses, que obra de arte! — Um gritinho histérico vindo do topo da árvore me fez pular de susto. Me levantei de imediato. Olhei para cima, apenas para encontrar uma criatura humanoide de cabeça pra baixo, o curto cabelo rosa-choque com pétalas das flores azuis emaranhadas nele. A criatura fez algumas acrobacias pelos galhos da árvore, então foi difícil identificar suas características. Até que ela deu um salto mortal para trás e aterrissou à minha frente. Seu enorme sorriso branco e seus olhos azuis calorosos me pegaram de surpresa, mas, por algum motivo, sorri de volta, a cumprimentando com o mesmo calor. Sua pele cor de chocolate era perfeita, seu rosto era lindo. Lábios cheios, nariz redondo, mas arrebitado, as bochechas eram grandes, com sardas cor de caramelo. Os olhos eram azul gelo, porém brilhantes, receptivos. Longas orelhas pontudas despontavam da bagunça que era seu curto cabelo rosa. E tinha exatamente a minha altura. Um elfo, talvez.

            — Olá. — Cumprimentei timidamente. A criatura deu alguns passos para frente, esquadrinhando meu rosto, seu sorriso cativante aumentando. Eu ri com nervosismo.

            — Seus olhos são belíssimos! Seu cabelo é pura escuridão! — A voz era feminina, porém não usava nenhum vestido, não sabia seu sexo biológico. Usava uma camisa social branca dobrada até os cotovelos. Estava amassada em vários lugares diferentes, provavelmente devido às suas acrobacias. Uma calça-cáqui com suspensórios pretos, apenas um lado de fato em seu ombro. Luvas sem dedos de couro cinza nas mãos, dedos longos que terminavam em unhas pintadas do mesmo rosa-choque de seu cabelo. Estava descalça. A criatura deu um passo para trás e estendeu a mão para mim, e podia jurar que ela estava brilhando de leve. — Olá, eu sou a Hunne Veliran. Você é a humana? A companheira do príncipe Loki?

            Segurei sua mão, a cumprimentando. Eu não sentia nenhuma aversão ao ser, e ele não me parecia perigoso. Parecia ter uma energia infinita e uma curiosidade enorme, e não tinha vergonha de fazer perguntas. Meu sorriso se ampliou. Era como me olhar num espelho, exceto pela criatura ser umas mil vezes mais amigável que eu.

            — Meu nome é Katherine Adams Kohls, e sou humana, sim. De Midgard. É um prazer conhecê-la. Pode me chamar de Kate, se quiser. — Soltamos as mãos. — Eu vim com o Loki. Tivemos um... Problema. Ele me trouxe para cá. Amaridis me ajudou e me emprestou esse vestido.

            — Que incrível!  Eu vim de Alfheim com meu professor. Estamos estudando a magia do meu povo. Por Urd, que momento histórico! Você é a primeira humana que eu conheço! — Abri um enorme sorriso:

            — E você é a primeira Ljósálfar que eu conheço, então estamos quites.

            — Hey, quer ver uma coisa muito legal? — Estreitei os olhos para ela, mas meu tom de voz era brincalhão:

            — Depende, eu vou ficar zonza ou com um cheiro engraçado com o que você vai me mostrar? — Hunne riu, em seguida negou com a cabeça. Ela tirou um pequeno cristal do bolso, do tamanho de uma moeda, em seguida apontou para um dos bichinhos de enchimento que eram dados como prêmio na barraca de brincadeiras das crianças.

            — Olha só para isso. — Uma leve luz rosa atravessou o cristal, como um laser, e acertou o prêmio. Ele começou a aumentar de tamanho até ficar do tamanho de um pônei. Em seguida, desapareceu. Ela gargalhou, ao mesmo tempo em que eu arregalei os olhos.

            — HUNNEEEEEEEEEE! — O dono da barraca gritou, arrancando os cabelos.

            — Ai, merda. — Hunne riu, em seguida voltou a colocar o cristal no bolso e me puxou pela mão. — Katherine, corre! — Eu ri quando percebi que me meteria em confusão junto à elfa da luz. Loki poderia me procurar depois, com certeza. Para quem tinha ficado cara a cara com a Serpente de Midgard e sobrevivera, pregar peças ao lado de uma elfa da luz não me mataria.

            Levantei a saia do vestido com uma mão e saí chutando com minhas botas para que não tropeçasse enquanto seguia Hunne pela feira, ambas rindo como bobas. Paramos ao lado de uma barraca que vendia vários tipos de apetrechos. Hunne pegou um colar com um pingente de um pequeno cabide e jogou para mim. O peguei no ar.

            — Uma lembrancinha da viagem para você. Eu sei como é raro vocês saírem do próprio Reino.

Atrapalhada, ela colocou uma pequena pedra de ônix no balcão e soprou um beijo para a vendedora, uma mulher baixinha de nariz comprido e dentes pontudos. A vendedora riu e acenou alegremente para a elfa.

— Não se meta em confusão, Hunne! — Gritou a vendedora, mas a garota apenas acenou de volta com uma piscadela antes de continuar me guiando pela feira. Observei o colar enquanto caminhávamos. Era uma corrente fina e prateada, com um pingente no formato de uma lua minguante negra à esquerda, um sol dourado e outro sol avermelhado no centro e uma lua crescente prateada à direita.

— São os Quatro Astros Protetores. Dizem que dá sorte. — Ela deu de ombros. Coloquei o colar em meu pescoço com um sorriso tímido:

— Muito obrigada, eu adorei. — Hunne balançou a cabeça:

— Não precisa me agradecer. Agora me diga... Tem alguma coisa da feira que te chamou a atenção? Aposto que você deve estar querendo ver mais!

— Eu achei os músicos fascinantes. Principalmente aquele instrumento grande, com as cordas roxas espalhando o pó azul...

— O sussurrador. — Ela sorriu de lado. — Um dos melhores instrumentos já inventados, na minha opinião. Existe alguma coisa melhor do que música?

— Magia? — Perguntei, e ela bufou. Estávamos dando a volta em uma barraquinha de bebidas engarrafadas de várias cores e tamanhos, algumas eram fosforescentes. Ela correu os olhos pelas garrafas rapidamente, porém continuou andando.

— Acredite quando eu lhe digo, Kate, que magia é superestimada. É aterrorizante, também. Perigosa. O tipo de coisa que precisa ter muito foco e muito treinamento para não carbonizar a cara de alguém sem querer quando sua intenção era só acender o pavio de uma vela.

— Mas... Qual é a sensação... De usar magia? — Ela se abaixou para acariciar um quadrúpede que estava passando. Era peludo, mas cheirava à água salgada. Orelhas pontudas, olhos profundos e nariz minúsculo, a boca ficava no pescoço, ele estava mostrando a língua amarela bifurcada e fazendo barulhos de satisfação por ser acariciado. Hunne se levantou e continuou andando quando notou que algumas pessoas começaram a cochichar ao nosso redor. Ignorei os olhares atentos em minha direção, algumas fêmeas me encaravam da cabeça aos pés com expressões de repugnância ou curiosidade.

— Para os seres mais poderosos, dizem que é como se fossem libertados de uma jaula muito, muito segura. É algo natural para eles, como respirar. Quando não estão usando magia, é como se estivessem segurando a própria respiração. Até acredito que eles literalmente morrem se ficarem sem usar a própria magia por muito tempo. Já para as criaturas como eu, que não têm um cerne mágico muito resiliente, não precisamos só treinar para controlar magia, mas também para que ela fique mais forte, mais...

— Como se vocês tivessem que ser treinados a produzir mais magia? — Questionei, e ela assentiu, concordando.

—  Exatamente. Quando conseguimos, o sentimento é gratificante, é claro. Mas quando as coisas não acontecem como pretendíamos... —  Ela engoliu em seco, e repeti a ação. Algumas crianças me olhavam de boca aberta. Sorri para elas e acenei, uma garotinha de pele azulada e cabelos loiros deu um gritinho de excitação e em seguida o grupo de crianças saiu correndo e rindo, costurando entre as pessoas que comercializavam por ali. Eu ri observando-as. Meu estômago fez um barulho alto, provavelmente devido ao cheiro dos variados temperos das barracas de comida. Como sempre acontecia, corei de vergonha.

— Desculpe por isso. Já faz algum tempo desde minha última refeição. Eu estava esperando o Loki antes de consumir alguma coisa...

— E ele iria te dizer o que você pode comer sem que seu corpinho humano exploda, não é? — Um sorriso torto de zombaria da parte de Hunne me fez rir nervosamente. Ela riu, balançando a cabeça. — Me siga, ó jovem e tola mortal. Eu a guiarei por esse mundo maravilhoso das bebedices e comilâncias do Recanto das Musas. — Eu revirei os olhos, mas o sorriso que a elfa da luz fez surgir em meus lábios parecia inabalável. Hunne exalava aventura, curiosidade e alegria. Vida. A elfa da luz tinha a essência da vida.

— O mundo maravilhoso das bebedices e comilanças, Hunne. — Ela mostrou a língua para mim, com uma careta engraçada. Enganchei meu braço no seu, e começamos a olhar para as barracas. Eu seguia a melodia do meu estômago, quando ele fazia barulho perto de alguma barraca eu perguntava à Hunne se eu poderia comer aquilo. Passamos por cinco barracas e em seguida as descartamos, a quarta porque uma criancinha no colo de uma mãe havia se assustado com o meu ronco de fome e começou a chorar. A mãe da criança arregalou os olhos para mim, parecia prestes a desmaiar. O dono da barraca parecia disposto a fazer um ensopado com a minha carne caso eu tentasse alguma gracinha, então Hunne e eu apressamos o passo para longe da barraca.

— Você precisa experimentar isso! — Ela me puxou até uma barraca cheia de flores nas paredes. Um macho alto com um óculos de lentes azuis estilo John Lennon lançou um pequeno sorriso para a elfa. Sua pele era amarela, seu queixo era pontudo e ele tinha garras compridas negras, atém de ter somente quatro dedos em cada mão.

— Arranjou uma nova cobaia, Veliran? Vai transformar a humana em um pássaro cuspidor de gelo?

— Ela não é minha cobaia. Pare de implicar comigo, Furjin. Você sabe como são difíceis as aulas de transmutação. Lonyr pega muito pesado comigo... — Ela fez um biquinho dramático e uma carinha de cachorro que caiu do caminhão da mudança, e continuou. — Um pouquinho de felicidade líquida melhoraria mil vezes essa minha década de sofrimento. — O macho balançou a cabeça com um pequeno sorriso, em seguida olhou para mim.

— Peço perdão pela falta de noção de Hunne. Eu sou Furjin, vivo aqui há mais de cinquenta ciclos do Sol Rubro. — Seu sorriso educado e gentil me fez gostar imediatamente dele. Ele olhou feio e mostrou as presas afiadas para um grupo de bêbados que me olhava sem nenhum pudor. Os machos murmuraram um pedido de desculpas e saíram o mais rápido que seus corpos molengas e alcoolizados permitiram. Seus olhos vermelhos se voltaram para mim. — Sei como é ser um estrangeiro em um lugar novo... Muitas vezes não é agradável. Tome cuidado, humana.

Katherine está comigo. — O tom de Hunne ficou sombrio, firme. A encarei, surpresa. Não esperava aquele tipo de postura da criatura tão alegre, leve e alto-astral. Mas o que eu sabia sobre Hunne? Eu a conhecia fazia pouco mais de uma hora. Furjin assentiu com um sorriso de satisfação.

— E estou muito orgulhoso de você por isso, Veliran. De verdade. Não são muitos que acolheriam a huma... Katherine. — Ele se corrigiu rapidamente, com um sorriso de desculpas para mim. —  Perdoe-me, querida. Minha cabeça de velho ainda está sendo atualizada... Como minha neta sempre diz, aprender não tem idade. Principalmente quando se trata de aprender a respeitar quem é diferente de nós. Estou aprendendo, viu? Mas minha cabeça é confusa e esquecida às vezes... Descobri há pouco tempo que humanos também têm nomes. 

— Velho desmemoriado. — Hunne provocou, enquanto pegava uma garrafa de três litros com um líquido rosa e azul dentro. Furjin riu e entregou dois copos à elfa da luz. Ele sorriu para mim:

— Este é por conta da casa. Para comemorar a visita da primeira humana ao Recanto das Musas. Foi bom conhecê-la, Katherine. — Eu sorri de volta e lhe agradeci. Veliran me arrastou até um conjunto de mesas de pedra com cadeiras de madeira e colocou a garrafa e os copos ali:

— Sente aqui e nem pense em desgrudar essa sua bunda mole humana da cadeira até eu voltar, entendeu?

— Não se preocupe com isso. Tenho certeza de que você consegue ouvir a minha bunda mole humana a quilômetros de distância com essas suas orelhas de abano de elfa. — Sorrimos uma para a outra, em seguida ela saiu entre as barracas para procurar algo comestível para humanos. Abri a garrafa e coloquei um pouco do líquido em meu copo. Sorvi um pouco apenas, só o suficiente para tocar a ponta da língua. Um teste para ver se aquilo me faria mal ou não. Quando constatei que não cresceria um rabo ou que meus braços não virariam nadadeiras, bebi um pouco mais.

 Era gelado, mas não ao ponto de incomodar os dentes. Tinha gosto de algodão-doce, bolhas de sabão e de dançar debaixo da chuva de verão. Tinha gosto de música alta e castelos de areia, chocolate quente e cheiro de terra molhada e de livro novo. Sorri amplamente, sentindo meu coração se aquecer. Aquilo tinha gosto de felicidade. Segurei o copo com as duas mãos, inconscientemente o abraçando, ainda com o sorriso bobo nos lábios.

— É assim que eles te convencem a ficar aqui, sabe. — A voz grossa masculina deixou meus sentidos em alerta. Antes que pudesse me conter, já tinha deixado o copo na mesa e fechado as mãos em punhos com uma expressão fria no rosto. O elfo da luz se sentou na cadeira à minha frente com um sorriso presunçoso nos lábios. Ele fitou descaradamente o decote do vestido e correu a língua pelo lábio inferior. Trinquei os dentes, tentando segurar a minha vontade de lhe dar um soco da cara. Ele colocou um pouco do líquido no copo vazio e o entornou.

— Esse copo não era para você. — Meu tom de voz era glacial. O elfo sorriu de lado para mim.

Ele era alto, com o longo cabelo castanho-avermelhado preso em uma trança que alcançava o meio de suas costas. A pele era morena, um pouco mais clara do que a de Hunne. Seu maxilar quadrado era marcante, seus lábios eram um pouco menores dos de Veliran. Suas maçãs do rosto eram elevadas, seus olhos, grandes, seu nariz, arredondado. A julgar por sua postura, deduzi que havia um corpo escultural por baixo de seu casaco de couro cor de creme. As orelhas eram pontudas, tipicamente características dos elfos da luz. Suas mãos usavam luvas de couro sem dedos pretas, suas unhas curtas estavam pintadas de branco.

— Tudo o que é de Hunne Veliran é meu, humana. — Ele me encarou novamente, com uma sobrancelha arqueada, como se estivesse dizendo “inclusive você”. Cruzei os braços.

— O que você quer, orelhudo? — O elfo ficou atônito pela minha insolência de ofendê-lo, porém, no instante seguinte, me lançou o que ele achava ser um sorriso sedutor. Se eu fosse um cachorro, estaria rosnando para ele, pronta para morder.

— Apenas agradecê-la por sua interferência, mais cedo no riacho. — Foi então que percebi que aquele era o elfo da luz que Loki estava esganando. Eu não consegui segurar a risada.

— Não interferi por você, se é o que está presumindo, elfo. — Sua expressão me dizia que ele estava ofendido e surpreso. Justamente o que eu queria. Encarei as minhas unhas, desdenhando da criatura à minha frente. — Foi tudo uma questão prática. Se Loki o matasse, seríamos expulsos daqui segundo suas regras. Eu queria ver mais deste lugar, e sua morte, por mais insignificante que fosse, atrapalharia meus planos. Então impedi que Loki o massacrasse não por misericórdia, apenas por você ser um... Fator inconveniente. — Só então ergui os olhos, o rosto do elfo da luz parecia feito de pedra. Me recostei ao encosto da cadeira e sorvi mais um pouco de minha bebida. Dessa vez tinha gosto de festa do pijama, show da minha banda favorita e cinema. Felicidade, sem dúvida.

— Você é uma criatura um tanto audaciosa, não? — Seu tom de voz era grave, como se eu o tivesse colocado em alerta. Sorri de lado, a ameaça implícita.

— Você realmente acredita que o príncipe me manteria por perto se eu não fosse, no mínimo, útil para ele? — Ele riu, desdenhando de minhas palavras.

— Não vejo uma razão para um asgardiano como Loki manter por perto uma humana tão patética como você. — Coloquei o copo na mesa novamente.

— Talvez por eu ter poder suficiente para encontrar o exílio de Jörmungand por conta própria e ainda conseguir me comunicar com ela quando ninguém mais conseguiu fazê-lo em séculos. E, claro, também sobrevivi à Serpente de Midgard sem ter nenhuma parte do meu corpo decepada. — Seus olhos cor de terra se arregalaram de leve. Ergui o queixo, reproduzindo perfeitamente meu olhar subjugador do tempo das cheerleaders. O elfo da luz não se encolheu, apenas me encarou, avaliando a ameaça em potencial que eu representava. — Talvez seja por isso que o príncipe asgardiano me mantenha por perto. — Ele estendeu a mão para mim, como se me reconhecesse formalmente como uma provável rival sua:

— Sou Lonyr Kalandur, de Alfheim. Feiticeiro nível alfa e Sacerdote do Sol Dourado, dentre outros títulos. — Aceitei sua mão e o cumprimentei.

— Katherine Adams Kohls, de Midgard.

Uma tigela de madeira pintada de azul com tampa branca surgiu à minha frente, o forte cheiro de temperos fez minha barriga voltar a roncar. Hunne chacoalhou uma colher em frente aos meus olhos até eu pegá-la de sua mão com uma força excessiva. A elfa se sentou ao meu lado, sorrindo para mim e para Lonyr.

— Vim o mais rápido que pude quando ouvi os sussurros sobre vocês dois terem se encontrado. Estava em dúvida sobre qual de vocês eu teria que prender na coleira primeiro. — Um meio sorriso surgiu em meu rosto. Ela colocou um terceiro copo na mesa e se serviu da bebida da felicidade. Depois, colocou a própria tigela azul na mesa e abriu a tampa, o vapor fumegando me fez abrir a minha própria no instante seguinte. A observei enquanto ela sorvia algumas algas amarelas da própria colher.

— Muito obrigada por tudo isso. — Ela dispensou meus agradecimentos com um menear de sua mão.

— Coma antes que as algas esfriem. — Aconselhou Lonyr. — Elas ficam mais amargas depois de frias e começam a derreter. — Assenti, em seguida peguei um pouco da alga amarela e experimentei. Mastiguei e engoli, com um sorriso enorme.

— Tem gosto de sopa de abóbora cambotiá! Eu amo essa sopa! — Comi alegremente a sopa de algas, satisfeita com o conjunto de temperos que acompanhava. Era deliciosa. Eu e Hunne comemos em silêncio enquanto Lonyr entornava metade da garrafa de líquido azul e rosa. Quando terminamos a sopa, nos concentramos em acabar com a garrafa da felicidade. Tomei um grande gole.

— Você não deveria estar dançando em algum bordel com esse tipo de roupa? — a pergunta mal-humorada de Lonyr quase fez o líquido sair pelo meu nariz; engoli rapidamente, me afogando um pouco no processo, em seguida soltei uma gargalhada alta inclinando a cabeça para trás. Os elfos da luz me olharam em silêncio.

— Eu não sou uma prostituta. — Esclareci. — Esse vestido foi um empréstimo de Amaridis porque minhas próprias roupas estavam impregnadas de sangue. Eu literalmente entrei em um lago de sangue, no exílio da Serpente.

— Como ela é? — Perguntou Hunne, animada e curiosa. Sorri.

— Jörmungand é simplesmente magnífica. Suas escamas são brancas, com runas pretas e douradas. E os olhos... Parece que alguém pegou todas as cores do mundo, as explodiu e as colocou nos olhos gigantes dela.

Nossa. — Suspirou a elfa da luz, com admiração.

— Claro que as presas gigantes cheias de veneno são assustadoras. Tipo, muito assustadoras mesmo. Quando ela abriu a boca para mim quase me borrei nas calças. — Hunne riu e Lonyr revirou os olhos.

— Não esperava nada menos que isso de humanos como você. — Revirei os olhos e fiz uma careta para ele.

— Fica na sua, orelhudo. O nome da minha espécie não é um xingamento, apesar de todas as merdas que os humanos fazem em Midgard. — Bebi o restinho do meu copo. — E nem vem querer azedar o meu dia que hoje estou muito zen.

— Agora que comemos, vamos continuar o passeio? — Assenti para a elfa da luz, ambas nos levantamos ao mesmo tempo. Ignoramos as reclamações de Kalandur, enganchamos nossos braços e retornamos à nossa jornada rumo aos músicos e seus instrumentos mágicos. O elfo da luz logo se teletransportou para o meu lado esquerdo, murmurando algo sobre não poder nos deixar sozinhas porque estávamos tramando alguma coisa. Revirei os olhos para ele, ignorando o braço que ele estendeu para mim. Eu definitivamente não engancharia meu braço ao de um macho que teve a cara de pau de me perguntar se eu não devia estar dançando num bordel.

Bastou a música se tornar mais alta e o pó azulado nos rodear para que eu arrastasse Hunne comigo até a parte onde todos estavam dançando. Ela riu quando percebeu que eu queria deixar Lonyr para trás e imediatamente começamos a dançar juntas, de braços enganchados rodopiávamos e saltitávamos seguindo o ritmo da música alegre. Ríamos e nos divertíamos nos esquivando das mãos dos machos e fêmeas que tentavam se enganchar a nós e dançar junto para compartilhar de nossa alegria.

Até mesmo o elfo feiticeiro tentou me fazer dançar com ele me puxando pela cintura, porém dei um pisão forte em seu pé que o fez recuar e voltei a me enganchar à sua aprendiz, rodopiando e pulando e rindo. Em algum momento da dança, quando nos afastamos uma da outra e em seguida giraríamos de volta para enganchar nossos braços mais uma vez, Veliran se afastou e logo senti mãos maiores e mais firmes em minha cintura. Quando olhei para cima, parando de dançar, encontrei as írises verdes com as quais eu já estava me familiarizando. Meu peito subia e descia depressa, meu coração acelerou como um louco. O deus da mentira tinha um enorme sorriso nos lábios, seus olhos brilhantes pareciam enxergar o fundo da minha alma. Senti minhas bochechas corarem e abaixei a cabeça, com um pequeno sorriso. Loki me guiou para fora da pista de dança improvisada, e meu sorriso envergonhado sumiu quando vi que Kalandur se aproximava, um tanto quanto descontente. Provavelmente o bisbilhoteiro iria questionar o motivo de Loki não ter sido expulso do Recanto das Musas.

— Cai fora, orelhudo. —  Disse, cruzando os braços. Loki me observou, um quê de surpresa em seus olhos.

—  Cai fora você, bunda mole. —  Me virei com um meio sorriso para Veliran, que ergueu meu braço e girou por baixo dele, como se estivesse valsando. Depois, ficou estrategicamente colocada entre Kalandur e eu.

— Me poupe de suas alfinetadas, sua coisinha humana audaciosa. —  Lonyr me dispensou com um meneio de sua mão, e mostrei a língua para ele. Passei a me distrair, retirando as pétalas azuis que estavam emaranhadas no cabelo rosa-choque de Hunne. Ela riu e deu um pulinho quando minha mão roçou acidentalmente sua orelha pontuda, e murmurei um pedido de desculpas. Ela balançou a cabeça e justificou que as orelhas de um elfo da luz eram muito sensíveis. Senti os olhos de Loki esquadrinhando a cena, um meio sorriso fixo em seus lábios. Até ele voltar a encarar o macho que quase havia matado mais cedo, no riacho. Ele recolocou sua máscara gélida de assassino. Lonyr ergueu uma sobrancelha, fingindo não se abalar. — O que Amaridis decidiu? — O silêncio carregado de Loki e seu olhar gélido pareciam engolir qualquer resquício de alegria que nos cercava. Até mesmo Hunne havia parado de sorrir, e encarávamos o deus com expectativa e preocupação.

— Sua Nadhir me concedeu plenos poderes para assassiná-lo a qualquer momento, se isso garantir que a paz seja mantida intacta. — Tentei manter minha expressão neutra quando meus instintos me alertaram que aquilo era mentira. Kalandur empalideceu, engolindo em seco. Seus olhos se voltaram para mim, como se me avaliando. Algo em sua expressão perplexa denunciava que ele estava refletindo se um insulto à uma mera humana poderia, de fato, custar-lhe a vida. Loki e eu nos entreolhamos, e eu percebi, implicitamente, qual seria sua intenção. Nos apresentaríamos como uma frente unida, resiliente e experiente. Lancei um sorriso preguiçoso à Lonyr, um segundo depois de terminar de retirar as pétalas do cabelo de Hunne:

— Acredito que prefira não morrer tão cedo de forma tão humilhante quanto se afogar na parte rasa de um riacho, não? — Meu sorriso era tão viperino quanto as presas de Jörmungand. O elfo da luz cruzou os braços e bufou:

— O que você quer, humana? — Ele cuspiu a última palavra, que não surtiu nenhum efeito sobre mim. Sabia que exigir um pedido de desculpas seria uma besteira, não desperdiçaria uma oportunidade daquelas com esse tipo de coisa. Rodeei o pescoço de Hunne e a abracei por trás, ainda olhando nos olhos de Lonyr.

            —  Ela vem comigo para Midgard. — Veliran soltou um gritinho de satisfação, se virou e me abraçou forte. Loki apenas mantinha seu olhar assassino sobre Kalandur, esperando sua resposta. A elfa morena me soltou, aguardando ansiosamente a resposta de seu professor. Cruzei meus braços e ergui uma sobrancelha. Uma fumaça levemente esverdeada rodeava a mim e ao deus da mentira, e eu sabia que se tratava de uma tentativa de intimidação de sua parte. Parecia tornar o ar ao redor mais denso, como se, a qualquer momento, a fumaça se transformaria em cobras que rasgariam a garganta de Lonyr. Acho que ele também percebeu isso, porque murmurou para a aprendiz:

            — Ao que parece, iremos para Midgard.

            {Loki, The God of Mischief}

          Desde o primeiro momento em que avistei Katherine se divertindo com Hunne, soube que as duas já haviam firmado um acordo não-verbal jurando amizade eterna uma à outra. A aprendiz de Lonyr, apesar de não ser bem-sucedida nos aspectos mágicos, — o que frustrava cada vez mais seu professor — era uma criatura tão vivaz, curiosa e cativante que era capaz de fazer aliados poderosos em questão de minutos. Ou, como no caso de Katherine, de conseguir amigos leais até a morte na mera metade desse tempo.

            Katherine e Hunne passaram muito tempo juntas, o que, consequentemente, fez com que Lonyr e eu as acompanhássemos, ignorando completamente um ao outro. Quando todos seguimos para a fogueira, as mãos da humana e da elfa da luz estavam repletas de doces e bichos de enchimentos que elas haviam ganhado em diversas das barracas destinadas à diversão. Um brilho de pura satisfação infantil era evidente nos olhos das duas, seus sorrisos despontavam de orelha a orelha enquanto nos sentávamos em um lugar mais afastado, perto das árvores, porém com vista privilegiada para os músicos, atores e dançarinos profissionais que espreitavam por ali. Katherine era um reflexo fiel de Hunne, ambas observavam os arredores com curiosidade e grande fascínio.

            As duas jovens se sentaram entre Lonyr e eu, Veliran estrategicamente colocada entre Katherine e seu professor. Elas começaram a separar habilmente os doces dos brinquedos, em seguida Hunne encheu a própria boca com balas azedas que derretiam na língua. Katherine abriu delicadamente seu pacote de um doce colorido em formato de flores e esticou sobre Hunne, na direção de Kalandur:

            — Estique as mãos, orelhudo. — Surpreso e levemente atônito, o feiticeiro obedeceu, as orelhas pontudas enrubesceram de leve. Ela despejou um pouco do doce em suas mãos curvadas em concha, assentindo firmemente em aprovação. Depois, voltou-se para mim. — Agora você, Homem-Muralha. — Disse ela, em tom de brincadeira. Ergui uma sobrancelha, o olhar fixo no dela. Kate piscou para mim com um meio sorriso, e coloquei a mão no saquinho, tirando um punhado de doces e colocando alguns em minha boca. Parecia uma mistura de mel, menta e camomila. Algo feito de ervas naturais, percebi. Um doce artesanal. A morena colocou um na boca, seguido um aceno em afirmativa quando constatou que havia escolhido o doce certo.

Os olhos verdes de Katherine estavam fixos à frente, absorvendo cada detalhe que conseguia de todos os artistas que estavam se alongando e se preparando um pouco mais afastados da fogueira. Eu mantive meu olhar sobre ela por um tempo, me divertindo ao ver suas reações ao que nos cercava — um leve franzir de cenho enquanto sua mente curiosa tentava desvendar o funcionamento de mais um instrumento musical, um suspiro de admiração enquanto seus olhos se fixavam nos movimentos acrobáticos de uma dançarina profissional, um biquinho de inveja ao observar uma atriz com a pele pintada de ouro com um vestido de gala da mesma cor e uma coroa de brilhantes em sua cabeça; a intérprete do Sol Dourado. Fossem quais fossem os pensamentos da humana, uma coisa era certa: cada gesto seu, cada expressão em sua face exalava determinação. Ela sabia quem era e o que desejava, e, contanto que tivesse um amigo ao seu lado, ela nunca temeria o julgamento dos outros; nunca deixaria que uma crítica arruinasse sua vontade de aproveitar o presente.

            Sentei-me mais perto dela, nossas coxas se tocaram de leve. Ela me olhou de esguelha, uma sobrancelha arqueada em tom de brincadeira. Coloquei mais um doce na boca e pisquei para ela, o canto de sua boca se curvou para cima. Ela desviou o olhar do meu quando percebeu que os atores estavam se posicionando, seus olhos estavam maravilhados com os quatro intérpretes dos Astros Protetores — dois machos representariam o Sol Rubro e a Lua Cinza e duas fêmeas representariam o Sol Dourado e a Lua Negra.

            — Astros não têm sexo. — Murmurou ela, baixinho, para si mesma. — O fato de ambos machos e fêmeas representarem tanto o sol quanto a lua... — Um pequeno sorriso pairava em seus lábios delicados, seus olhos brilhando com compreensão. — É uma forma bem simples de explicar que não existe uma dualidade. Apesar de algumas culturas associarem a lua ao centro de poder feminino, é claro. — Eu sabia no que ela estava pensando. Alguns afirmavam que os poderes das Bruxas eram concedidos profanamente pela Lua. Não demorou nem dez segundos para que Katherine compreendesse que aquela era uma teoria equivocada, apenas analisando os atores. A fogueira passou a crepitar, a enorme chama assumiu um tom brilhante de branco, cortesia do elfo da luz sentado conosco. Era o sinal de que a encenação começaria.

            No início dos tempos, havia apenas o mais vasto e infinito Vazio, e dentro dele jazia o Nada.

 Não havia o Dia nem a Noite; não havia a Vida ou a Morte. Não havia o Início ou o Fim.

O Tempo não existia, o Espaço, tampouco.

Tudo o que existia era o Vazio infinito, e em seu cerne, o Nada.

          As faíscas brancas da fogueira flutuavam com magia e rodopiavam pelo ar, a voz sobrenatural vinda do fogo prendia a atenção de todos.

            Até quando o Nada se partiu ao meio, revelando o Grande Portal.

          O Vazio foi consumido pelo Grande Portal no exato momento em que ele fora criado.

          E então, e só então, criou-se o Espaço e o Tempo, tão poderosos quanto o Grande Portal.

          O Espaço roubava-lhe a matéria para sua existência, enquanto o Tempo roubava-lhe o resto.

          Katherine engoliu em seco, os olhos fixos nas faíscas que tomavam a forma de tudo o que a voz dizia.

          Tudo o que o Grande Portal trouxe antes de ser destruído foram os Astros, e os Deuses Antigos e as Criaturas.

          De todos os Deuses Antigos, a dualidade inescapável e absoluta surgiu primeiro. Vida e Morte foram criadas ao mesmo tempo.

          Eu vi que a história, ao mesmo tempo que a fascinava, a assustava. Quando ela começou a parecer ansiosa e impaciente, tomei a liberdade de transpassar meu braço sobre suas costas e suavemente puxá-la para o meu peito. Ela não disse nada quando senti sua bochecha encostar em meu peito e ela agarrar minha camisa, o ato denunciava seu receio de estar ali.

          O Universo foi criado em seguida, e a conexão etérea estabelecida entre ele e os Astros persistirá até o Fim dos Tempos.

          Eu sentia a tensão nos músculos de Katherine, e estava certo de que não era a história que a assustava. Alguma coisa parecia estar acontecendo, algo que somente ela conseguia enxergar. Eu não a levaria dali, pelo menos, não ainda.

            A Magia não fora criada, não. Ela fora trazida de dentro do Grande Portal, uma força mais poderosa e mais antiga que o próprio Universo.

Segurei sua mão que agarrava minha camisa e a levei até os lábios, deixando o que eu esperava ser um beijo calmante em sua palma. Continuei beijando sua mão sem pressa, seus dedos, seu dorso, seu pulso. Ela suspirou e a senti relaxar um pouco mais contra mim. Bom.

O Destino tudo sabe, tudo muda, tudo é.

A morena se inclinou levemente para frente, se sentando mais ereta ao ouvir a palavra “Destino”. A voz sobrenatural vinda da fogueira hesitou por um instante, e todos ficaram tensos. Em séculos contando a mesma maldita história, nunca a voz anciã havia hesitado. Quando observei as írises de Katherine, engoli em seco.

O Destino, porém, não é absoluto como a Vida ou a Morte. Pode ser alterado por aqueles destemidos o suficiente para enfrentá-lo.

Aquela frase não fazia parte da história original, a qual eu havia ouvido dezenas de vezes antes. Kate parecia hipnotizada pela fogueira, seus olhos estavam fixos no cerne, como se estivesse procurando por alguma coisa. O leve aro dourado que surgira em suas írises parecia cintilar, brilhante, enquanto encarava a fogueira de chamas brancas. Compreendi naquele instante do que se tratava. Ela estava procurando algo na fogueira, de fato. Porém, não era o cerne. Era a voz. A voz, que nenhum feiticeiro ou mestre em magia fora ousado ou esperto o suficiente para procurar, para questionar. Katherine o fizera, e obteve sua resposta.

          Quando os Deuses Antigos se foram, os Astros atenderam às súplicas.

E enviaram os Quatro Astros Protetores para salvar e proteger aqueles que fossem inegavelmente merecedores.

Katherine se aninhou em meu peito e me abraçou em silêncio. E se manteve daquele jeito até o final das apresentações da fogueira.

            {Katherine Adams Kohls}

          Loki e eu fomos designados para uma suíte na mansão de Amaridis, provavelmente para que a anciã ficasse de olho no deus da mentira. Hunne e Lonyr fizeram a cortesia de não insistirem em descobrir o que havia alterado o meu humor, já que eu havia passado de uma humana alegre, brincalhona e sorridente para uma humana mortalmente quieta, reclusa e concentrada nos próprios pensamentos em menos de meia hora. Loki explicou que a exaustão poderia afetar o humor midgardiano, e os elfos da luz engoliram aquela desculpa.

            Observei meu reflexo no espelho, mais especificamente, meus olhos. Havia um tempo que eu não me sentia confortável em olhar meu próprio reflexo nos olhos, desde que Rynna aparecera. Ergui as sobrancelhas ao notar um fino aro dourado em meio às írises verdes. Quando aquilo havia surgido?

            Uma leve batida na porta do banheiro me fez despertar de meus devaneios. Respirei fundo, agradecendo mentalmente à Amaridis por ter permitido que eu escolhesse meu próprio pijama. Aparentemente, ela havia ouvido os rumores que se espalhavam sobre mim devido ao vestido que ela me emprestara. Eu usava a camisola menos reveladora que havia encontrado, de malha preta com o desenho de flores douradas. Quase me lembrava os vestidos das Nornas. Peguei a escova de cabelo da pia do banheiro e abri a porta, indo para o quarto. Sentei-me em frente à penteadeira e passei a escovar a juba embaraçada que meu cabelo havia se tornado durante o passeio, mesmo depois de lavar o cabelo. Loki me seguiu e ficou atrás de mim, nossos olhares se encontraram no reflexo do espelho.

            — Eu sei o que você fez na fogueira. — Seu tom de voz não era de repreensão. Desviei o olhar do seu e voltei a me concentrar em desembaraçar as pontas dos fios.

            — Não sei do que está falando. — Minha voz era inexpressiva, assim como meu rosto. O deus colocou as mãos nos bolsos da calça social que ainda vestia;

            — Eu achei uma ideia brilhante. — Hesitei por um momento, em seguida respirei fundo e me virei na cadeira, olhando em seus olhos. Admiração, apenas.

            — Não quero falar sobre aquilo. — Suas orbes esquadrinharam o meu rosto, um meio sorriso se formou em sua boca quando ele disse:

            — Mentirosa. — Revirei os olhos para ele e desviei o olhar para meu reflexo mais uma vez. — Li a mente de Hunne Veliran. Sua performance de humana misteriosa foi muito convincente. E achei muito impressionante o que fez com Lonyr Kalandur. —  Um sorriso de divertimento surgiu nos lábios do deus, e não consegui deixar de retribuí-lo.

            — Acho que estou começando a desvendar como as coisas funcionam, como você faz. — Voltei a escovar o cabelo. — Você sempre tem um trunfo na manga, mas, se não tiver um de verdade, basta fingir e continuar interpretando o papel.

            — Sigyn havia me dito que você aprende rápido, mas não acreditei nela até que vi sua performance de hoje. — Terminei de escovar o cabelo e me levantei, me virando para o deus da mentira com um pequeno sorriso convencido:

            — Finja que tem tudo nas mãos mesmo quando não tiver nada e isso pode te favorecer. — O sorriso de Loki sumiu, tudo o que ele dirigia a mim era um olhar cheio de curiosidade:

            — O que te levou a questionar a voz da fogueira?

            — Quando a voz disse o que era a Magia, eu entendi de onde ela vinha. Todos os seres mágicos devem ser abençoados pela própria deusa. — Loki franziu o cenho, me encarando. ­— Lonyr se apresentou como feiticeiro e Sacerdote do Sol Dourado. Faz todo o sentido que a voz anciã venha de sua magia, porque ele está conectado tanto aos Astros quanto aos Deuses Antigos. Eu imaginei que, mesmo que esses deuses não dissessem nada...

            — Os Astros te responderiam. — Completou Loki, e assenti. — Você usou o poder de Lonyr como um Oráculo. — Ele balançou a cabeça levemente, os cantos da boca se ergueram de leve. — Inacreditável. — Eu dei de ombros:

            — Eu não sabia se daria certo, mas queria respostas. Precisava de respostas.

            — Encontrou o que procurava? — Franzi os lábios:

            — Ainda não tenho certeza. Alguma coisa me diz que devo continuar procurando, mas estou no caminho certo.

            — Amanhã deixaremos o Recanto das Musas, mas podemos retornar para vasculharmos as bibliotecas em breve, o que me diz? — Assenti para o deus, em seguida segui para o lado esquerdo da cama de casal que havia no quarto. Aparentemente, eles haviam presumido que estávamos juntos. Loki seguiu até o banheiro para tomar banho enquanto eu me enfiava dentro das cobertas fresquinhas e recostava a cabeça no travesseiro fofo. Suspirei, aconchegando minha cabeça um pouco mais enquanto observava a cômoda ao meu lado da cama, repleta dos brinquedos que havia ganhado naquele dia. Sorri. Estiquei a mão e peguei o colar que Hunne havia me presenteado dos Quatro Astros Protetores, meus dedos traçavam o colar com delicadeza.

            — A Lua Negra, o Sol Dourado, o Sol Rubro e a Lua Cinza. Os Quatro Astros Protetores. — Murmurei, tentando assimilar tudo o que escutara na fogueira. Pelo que eu havia entendido, quando os Deuses Antigos pararam de interferir nos mundos, coube aos Astros assumirem a tarefa de guiar e proteger aqueles que os seguiam. Era tudo muito vago... A fogueira havia sido uma introdução de uma história bem mais antiga que Yggdrasil.

Yggdrasil... Jörmungand havia dito que as raízes da Árvore da Vida tinham as respostas que eu tanto procurava. Engoli em seco, pensando em qual das raízes estaria. Eu me lembrava que haviam três raízes conhecidas, uma em Asgard, próxima ao poço de Urd, o qual era protegido por Nornas; uma em Jötunheim, perto da fonte da sabedoria, que era guardada por Mímir; e a última raiz ficava em Niflheim, o Reino da Névoa e o inferno dos não-dignos, e era roída pelo Nidhogg, um dragão-serpente gigante que se alimentava das almas consideradas não-dignas, especialmente das almas de traidores.

Respirei fundo, torcendo para que Jörmungand estivesse se referindo a uma raiz desconhecida, caso contrário, Loki, Sigyn e eu estaríamos imensamente fodidos se fôssemos para qualquer uma das três raízes de Yggdrasil. Todas as três opções gritavam “morte certeira”, a não ser que encontrássemos uma quarta alternativa.

— Eu devo perguntar o que a incomoda tanto? — A voz de Loki se fez presente, e suspirei. Deixei o colar em cima da cômoda novamente e me sentei na cama, olhando para o deus da mentira. Ele usava uma calça preta de pijama, seus pés estavam descalços sobre o chão de madeira. Ele estava secando o cabelo com uma toalha azul e... Corei quando meus olhos registraram que o príncipe de Asgard estava sem camisa. Seus músculos eram bem definidos, sua pele era pálida, com alguns riscos esbranquiçados irregulares a adornando. Inclinei a cabeça levemente para a direita, um leve sorriso surgiu em meus lábios. O moreno fechou a porta do banheiro, seguiu até a cama, se virou e deixou suas costas caírem no colchão, ao meu lado. — O que esse olhar significa?

— Sabe aquela sensação de quando você descobriu alguma coisa importante, mas sente que ainda tem muito mais por vir? — Ele assentiu. — Esse é o olhar de quem está tentando não surtar por conta disso. — Loki colocou as mãos atrás da cabeça e fechou os olhos, o primeiro gesto de relaxamento por parte do deus em um dia inteiro. Aquilo só demonstrava o quanto ele tinha que estar em guarda o tempo todo para não ser atacado de surpresa, mesmo naquele lugar.

— A julgar pela interpretação de hoje, eu diria que você tem... Potencial. — Eu ri:

— Potencial? — Loki assentiu de olhos ainda fechados. — Para acabar como você, todo esperto, intimidador e musculoso, mesmo com essas cicatrizes de batalha? — Um sorriso zombeteiro tomou seus lábios:

— Eu sabia que você tinha reparado. Pode me devorar com os olhos, Kate, só tente não babar, okay? — Ele abriu o olho esquerdo apenas para me dirigir uma piscadinha marota. Eu sentia o rubor se estendendo até a raiz dos cabelos.

Convencido. — Belisquei seu bíceps, a única parte de seu corpo que não parecia ser feita de pedra. Ele deu um tapinha na minha mão e me empurrou para longe. Joguei uma almofada em seu rosto, o que o fez se ajoelhar na cama. Eu ri ao ver seu cabelo úmido todo desgrenhado, um sorriso travesso e os olhos brilhantes surgiram em seu rosto. Ele pegou o travesseiro e o acertou na minha cabeça, sem muita força. Peguei meu próprio travesseiro enquanto ele puxava o seu, e nos atracamos numa guerra de travesseiros ridícula, penas coloridas saíam dos pobres objetos e flutuavam ao nosso redor. Meu riso se misturava ao de Loki e o barulho parecia ecoar no quarto amplo que ocupávamos. O travesseiro era tanto o ataque quanto a defesa, as penas que se multiplicavam eram o rastro dos lugares por onde passávamos.

Da cama, passamos a guerrear por todo o quarto, girando, atacando e nos esquivando um do outro numa dança que exalava diversão. As penas flutuavam até quase o teto, e, quando caíam, deixavam uma trilha de caos colorido ao nosso redor. Eu gargalhava enquanto corria para a cômoda, e dei gritinhos enquanto atirava os brinquedos de enchimento no deus da mentira.

— Hey, isso é trapaça! — Reclamou ele, enquanto usava o próprio travesseiro de escudo contra os brinquedos. Eu ri alto:

— O deus da trapaça foi trapaceado, então! — Loki gritou:

—  E quais são as regras dessa brincadeira?

—  Só tem uma regra: sem sangue, sem crime! —  Os bichos de enchimento acabaram um segundo depois. —  Merda. —  Xinguei baixinho e me joguei na cama, obstinada a engatinhar para o outro lado. Loki me puxou pelos calcanhares e comecei a me debater, rindo alto. Quando ele me puxou o suficiente para que ficasse sobre mim, coloquei meu travesseiro como escudo sobre a cabeça enquanto ele me acertava, sem muita força. Eu aguentei firme os dez segundos que duraram, antes de Loki parar e soltar uma risada. Quando tirei o travesseiro do rosto, vi o que havia acontecido — sua fronha havia se esvaziado completamente. Eu ri, me sentando na cama:

Vitória das garotas! — Declarei, e Loki fez uma careta para mim. No instante seguinte, nos jogamos de costas na cama cheia de penas, sorrindo como idiotas. — Eles nunca mais vão me deixar ficar aqui.

— Não se preocupe com isso. — Disse Loki. Com um leve gesto de sua mão, tudo estava de volta no lugar. Os travesseiros voltaram a ficar cheios. O moreno se levantou e assumiu o seu lugar, à direita da cama. Me levantei e fui até o meu, à esquerda.

— Quem diria que o deus mais ranzinza sabe se divertir como criança. — Provoquei, enquanto nos arrumávamos debaixo das cobertas. Viramos um de frente para o outro.

— Me faça um enorme favor e não conte isso a Sigyn. Poderia arruinar a minha reputação. — Brincou ele. Eu ri:

— Seu segredo está seguro comigo, Loki. — Sorrimos um para o outro. Os olhos de Loki se acenderam, e se fixaram em minha boca. Ele engoliu em seco, se aproximando um pouco mais de mim.

— Você estava belíssima naquele vestido. — Sussurrou. Eu senti minhas bochechas esquentarem.

— Obrigada. — Os olhos de Loki percorriam meu rosto sem pressa, como se ele quisesse registrar cada detalhe. E, no fim, sempre se voltavam para a minha boca. Eu sabia o que ele estava pensando. — Eu também te beijaria se tivesse cem por cento de certeza de que não vamos acabar voltando para o exílio de Jörmungand. — Ele me dirigiu um pequeno sorriso de desculpas. Eu balancei a cabeça com o mesmo sorriso, como se dissesse “tudo bem, não tem problema”.

— Há outros lugares que posso beijar. ­— Sugeriu ele, um sorriso descarado em seu rosto. Dei um tapinha de leve em seu braço:

Cale a boca. — O deus riu de leve, em seguida colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. Seu polegar acariciou minha bochecha preguiçosamente, como se Loki pudesse dobrar e manipular o tempo à sua vontade apenas para fazer aquilo, para ficar comigo. Senti um calor em meu peito com aquele pensamento. Meus olhos começaram a pesar, e bocejei de leve. Devagar, senti suas mãos me puxarem para seu peito, e rodeei meu braço sobre seu torso sem pensar duas vezes. Ele passou a acariciar meu cabelo com seus lábios próximos do meu ouvido, murmurando uma canção suave em uma língua antiga que eu não conhecia. Meus dedos traçavam de leve as cicatrizes de seu tronco enquanto eu era embalada com suavidade por Loki até que caísse em um sono profundo. A voz de Loki preencheu meus ouvidos:

Boa noite, pequena guerreira.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam deste capítulo? Mesmo que eu demore um pouco, prometo que vou responder aos comentários! Obrigada por lerem a história!



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