Coração de Porcelana escrita por Monique Góes


Capítulo 32
Capítulo 31 - Presságio




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Capítulo 31 - Presságio

Fora tão alto que Claire se assustou, sentando-se de supetão. Tinha certeza que todos do navio haviam escutado aquilo, afinal, era audível a quilômetros de distância. Fora um único uivo, solitário e estranhamente doloroso, o que a fez ficar com uma agitação em seu peito.

Escutou então os sons do corpo mecânico de Gitmak passando por sua porta.

— Menina! Acorda aí o boneco para ele ver se é o lobo que tamos atrás!

Como estava com um pijama relativamente aceitável, pulou da cama, indo pegar a caixa de Near de maneira atrapalhada enquanto o uivo ainda soava. Quase ficou cega com a iluminação repentina antes de o boneco levantar quase tão grogue quanto ela.

— Meu Deus... – Ele tapou os ouvidos. – Já sei o que está acontecendo. Eu já havia ouvido dizer que uivos de lobos eram altos, mas não imaginava que era tão alto!

— Está bem perto. Vamos lá encima ver.

Subiram correndo, e Claire quase gemeu diante o numero de animais-segredos que estavam no exterior. O barco estava ancorado, e via animais que tecnicamente não coexistiam num mesmo habitat, mas seus olhos foram diretamente a uma figura que brilhava ao fundo.

Era o dito lobo. E como todos os outros animais-segredos, sua silhueta era inconstante e translúcida... Mas seu pelo era violeta, profundo, com diversas áreas pretas. O ser era sinuoso e magro, deixando com uma aparência visivelmente delicada e feminina, encontrando-se afastada dos outros. Os olhos pareciam brilhar, cinzentos, de maneira faminta em direção à eles.

— É dela. Com certeza esse lobo é da Haydée.

— O que te faz ter certeza disso?

— É violeta. Está afastado dos outros, não parece ser de muitos amigos. Além de parecer ser fêmea.

— Esse lobo ao contrário dos outros parece tá querendo pular aqui. Os outros segredos parecem só terem sido atraídos. – Gitmak cofiou a barba. – Acho que temos que ir dar uma olhada nele. Mas alguns têm que ficar no barco.

James, que também havia subido, deu de ombros. Quase não o reconheceu devido à falta dos piercings, o que o fazia parecer... Normal? Ele parecia um jovem adulto desleixado – o cabelo amassado ajudava -, não alguém que poderia assalta-la.

— Desde que façam essa coisa não uivar mais. Lilith não está em condições de sair, e Markus não vai deixa-la sozinha. E eu não estou a fim de correr atrás de um lobo.

Joshua esfregou os olhos, mas murmurou algo sobre ir com eles. Desde que não precisassem nadar, pois assim como sua irmã, ele não o sabia. Pobrezinho, não estava tendo uma noite de sono decente, primeiro sendo acordado com uma porta voadora e depois pelo uivo do lobo – ou loba.

Gitmak ignorou que todos, menos Near, estava com roupas de dormir. Puxou uma alavanca, fazendo o tablado que era a “porta” do navio se estender, dando-lhes um caminho seguro até a terra firme.

— Cuidado com os segredos! – Gitmak gritou no momento em que Near pisou fora do barco. O metal rangia enquanto o corpo pesado passava sobre o tablado. – Saíam! – berrou, e com um comando, seu corpo mecânico passou a emitir som quase como uma banda de um homem só. Isso assustou a maioria dos animais... E aparentemente, a loba inclusa, pois ela deu meia volta, entrando na floresta. – Ops.

— Ah não... – Claire gemeu.

— Ela não correu. – Near constatou. – Ainda dá para ir atrás dela.

— O quê? Near, espera...

Tarde demais. O loiro havia corrido atrás do ser. Era até entendível o fato dele estar determinado a pegá-lo, afinal, era um passo concreto para o fim de sua maldição, e tentar pelo menos entender o porque de ter sido transformado num boneco.

Mas logo em seguida, o céu explodiu em luz.

— Mas o... – Joshua começou, antes de sua voz ser abafada pela cacofonia que soou em seguida. Era o som de espadas se chocando, gritos, guinchos animalescos, o zunido de projéteis e explosões, enquanto o céu do santuário parecia ter sido dominado pelo vermelho, preto e dourado.

— O que está...?

— Ah não! – A voz de Gitmak soou sobre a confusão. – Guerra de anjos. Coisa boa não cheira! Cadê o boneco?

A voz dele alarmou Claire. Guerra de anjos? Sabia que o garoto que estava no grupo do irmão de Vincent havia sido mordido por um anjo de luz. Mas agora haver um embate no pior momento possível não era uma boa coisa.

E Near... Ele era visível antes de começar as explosões, porém a situação já havia mudado completamente. Haviam perdido pouco tempo dentro da conversa, mas fora o suficiente para que o rapaz sumisse.

— Ele foi naquela direção. – apontou para frente. – Temos que encontra-lo.

— Isso é verdade. Mas também precisamos ficar fora da rota de colisão dos anjos. – O queixo de Gitmak tremia. – Pelas árvores mais densas é seguro. Caso algum tente ir atrás de nós, vai ser difícil pra ele nos seguir. E se um cair, ele não vai desabar direto na nossa cabeça.

— Mas nada garante que o Near vá fazer algo parecido. – Joshua pontuou.

— Os segredos vão pela sombra. Ele vai fazer isso. – o anão afirmou. O braço esquerdo do corpo artificial mudou de forma com vários estalos, antes de se modelar no que parecia o focinho de um tamanduá, grudando-se no chão. – Certo, pernas longas, vamos atrás dele!

E então ele correu na direção indicada, fazendo Claire se questionar se o novo formato do braço funcionava como algo semelhante a um cão farejador. Sem muitas alternativas, os dois irmãos foram atrás dele.

Gitmak seguia sob as árvores, tendo preferência pelas quais os troncos pareciam mais próximos, e os estrondos no céu eram assustadores. De certa forma, recordava-lhe o áudio das filmagens da Segunda Guerra Mundial, mas era mil vezes mais assustador pelo fato de estar no local dos estrondos, mesmo que fosse visível que não fosse muitos, uns cento e vinte indivíduos ao máximo. Via figuras caindo como bolas de fogo de vez em quando, vermelhas, pretas, douradas, um verde apodrecido, e não se tornou incomum penas voando do céu.

Soltou um grito quando algo caiu próximo de si, se agarrando no seu irmão por reflexo.

Bom, era a primeira vez que via um anjo, e aquela com certeza não fora uma boa experiência. Não conseguia identificar o sexo da criatura, e nem precisava, dava nojo só de olhar. Sua pele era coberta de ranho e imundície, parecendo meio esverdeada. Parte de seu rosto parecia podre, os olhos encarando o nada traziam sua esclera amarelada e as pupilas eram como as de um sapo. Suas asas eram sujas de penas amassadas, e em certas partes dava para os ossos, assim como as pernas eram inchadas e redondas como as pernas de uma lagartixa.

E o cheiro... Claire poderia vomitar.

— O que é isso? – Joshua parecia enojado.

— Um anjo de Tahra. – O anão fez uma careta. – Se os anjos dela tão metidos nisso, os de Enguerrand também devem estar. Se tão lutando, então com certeza são os anjos de Alphonsus e Ailith que tão contra eles. Dever ‘tar atrás dos príncipes.

Príncipes? Sentiu-se ficando imediatamente preocupada. Gitmak poderia estar errado, mas aquilo acontecendo por causa dos príncipes... Aquelas coisas estarem os perseguindo... Vincent estava bem? E o seu irmão também?

— Argh, temos que ir logo! O cheiro dessa coisa vai cobrir o rastro do... Near? É isso?

Mais um estrondo e foi o suficiente para literalmente irem correndo novamente. Escutava Gitmak xingando na língua dos anões, e enquanto isso, mais e mais conseguia distinguir os gritos.

Embora mentalmente houvesse xingado Near algumas vezes por ter se metido naquela floresta. Como ele esperava voltar? Voando?

Quando alguém apareceu correndo, por um segundo pensou que fosse um anjo. Quando se chocou com Joshua e os dois caíram numa confusão ao chão, percebeu que era um garoto. Ficou com pena dele pois ele era pequeno e franzino, com no máximo doze anos, e havia ido parar debaixo de seu irmão que tinha pelo menos uns oitenta e poucos quilos.

— Pelos nomes dos anjos, o que foi... – Gitmak pegou o garoto pela nuca como se ele fosse um gatinho, o assustando. Ele era muito branco, de cabelo ruivo aloirado na altura dos ombros, trançado e olhos verdes, usando uma túnica cor de musgo, calças pretas e sapatos de couro, as pernas enfaixadas com faixas cinza. Ele trazia um cinto com duas bolsas de couro presas em seu cinto. – Certo, um pernas longas pequeno. Daqui do Santuário, ainda por...

— Me põe no chão!

A mão enorme se abriu e o garoto caiu no chão com um bufo.

— Ô garotinho, que cê tá fazendo aqui, a essa hora? Não vê que é perigoso?

 - Eu sei, eu tô indo pra casa! – Ele apontou justamente na direção em que eles iam. – Minha vila fica para lá!

Gitmak o olhou com desconfiança, e então para o caminho em que seguiam. As não era como se todos ali tivessem qualquer alternativa. Claire ajudou-o a se levantar, e algo em contanto com ele fez a sua pele parecer esquentar, mas era tão fina e pálida que quase parecia de papel, e conseguia ver os caminhos das veias em suas mãos.

— Certo, cê vem com a gente. – Gitmak rosnou. – Mas não ficar longe até nós chegarmos perto o suficiente da onde cê mora, tá ouvindo?

O garoto assentiu, sem parecer estranhar a visão de um anão sendo seguido por dois adolescentes com roupas de dormir. Com esta última intromissão, finalmente se puseram em movimento mais uma vez. Mas a garota não conseguia tirar os olhos de cima dele. O garoto deveria ser só alguns centímetros mais alto do que ela.

— Qual o seu nome? – questionou.

— Brynjar. – foi a resposta, o que lhe causou um arrepio por algum motivo.

— O que você está fazendo aqui à essa hora?! – Joshua gritou por cima do barulho de mais um anjo caindo. Os estrondos estavam cada vez mais baixos, dado ao fato de que o número de anjos havia reduzido dramaticamente. O garoto literalmente pulou por cima de mais um corpo podre.

— Vendo a lua.

— Como assim você saiu de madrugada para ver a lua?!

— Você nunca sabe o que ela pode mostrar. Pode melhorar a colheita, mover as águas, ou... – Claire se assustou quando uma cicatriz despontou do centro de seu rosto, passando sobre o olho direito, que se tornou cego, e a face direita se tornando vermelha e nodosa, como as marcas de queimadura. Em seu olho esquerdo, a coroa dourada brilhou. – Um presságio, talvez.

Tanto Claire quanto Joshua bateram em Gitmak quando ele parou abruptamente. Havia uma clareira natural em frente a uma caverna, e a quantidade de anjos caídos ali demonstrara que muitos metros acima, aquele fora o local onde a luta fora mais intensa. Havia os anjos podres – céus, o cheiro era horroroso -, uns anjos pálidos e meio dourados, os dentes expostos ainda arreganhados, e outros que Claire não acreditaria que eles haviam caído em batalha contra os outros dois tipos.

Havia os que trajavam armaduras de couro e cotas de malha, que se assemelhavam a vikings de certa forma. Outros usavam uma espécie de casaco de couro ou simplesmente túnicas, porém pareciam mais bem armados. Muitos traziam armas próximas às suas mãos, ou elas poderiam simplesmente ter caído ali... Claire não sabia.

E bem no meio de tudo aquilo estava o lobo violeta.

— Moleque, eu deveria te partir em pedaços! – O anão gritou e Claire percebeu que ele parara porque literalmente trombara em Near. Admitiu ter vontade de faze o mesmo, mesmo que soubesse que ele provavelmente teria algumas trincas bem feias. – O que você pensou ao sair correndo atrás desse lobo?

— Eu... – ele olhou para o lado, franzindo o cenho enquanto começou a parecer procurar algo, o que também fez Claire se sentir desconfortável. – Onde ele está?

— Ele quem? – Joshua questionou.

— Eu encontrei um garoto, ele queria voltar pra vila dele...

O corpo mecânico de Gitmak soltou um rangido que doeu em seus ouvidos, e então percebeu que Brynjar também havia sumido. O desconforto aumentou.

— Como ele era? – seu irmão continuou.

— Baixo, meio ruivo, meio loiro, de olhos verdes. – respondeu. – Ele disse que o nome dele era Brynjar.

— Mas... Tinha um garoto baixo, meio ruivo de olhos verdes, querendo voltar para a sua vila, chamado Brynjar conosco também. – Claire disse, fazendo o boneco ficar em silêncio.

—... Espírito? – o anão começou, mas o ganido da loba fez todos olharem para ela. Claire se alarmou que algum dos anjos poderia tê-la agarrado, mesmo sem saber se eles poderiam fazer mal a um segredo, entretanto, ela apenas estava de pé ao lado de um anjo, olhando para ele, cutucando-o com seu focinho, antes de olhar para o grupo, ganindo novamente. – Certo, você fez a gente andar isso tudo por causa dessa loba. Vai lá pegar ela, vai!

Near olhou feio para Gitmak, mas não fez objeção. A garota de certa forma o admirou por não ter medo de seguir entre os corpos dos anjos, até chegar à loba, que balançava sua cauda quietamente. Ele se abaixou e tocou em seu pelo, fazendo-a torcer para que estivesse correto e aquele fosse o segredo de Haydée.

O pelo do animal brilhou e ela ganiu, antes de literalmente começar a sumir como se fosse uma mancha de tinta fosse jogada sobre ela, o líquido sendo da cor do cenário que os rodeava. No fim, havia algo na mão de Near. Parecia uma carta.

— Não é que cê tava certo?  - Gitmak assoviou. Near franziu o cenho para o papel, antes que o anjo movesse sua cabeça coberta pelo elmo, fazendo-o pular. O corpo mecânico se flexionou.

— Ele está vivo!

— Percebi! – o anão literalmente fez o corpo dar pulinhos sobre os corpos até onde o rapaz estava, deixando Claire e Joshua sozinhos para trás, o que a deixou certamente desconfortável. Primeiro o embate, que agora parecia ter acabado, depois ao garoto duplicado... Não era como se pudesse se manter muito calma. Para a sua surpresa, o anão pegou o anjo, assim como o garoto, levantando-o como um gatinho. Com a falta das explosões, era difícil ver muita coisa dele, mas percebia as penas caindo abundantemente. – Vamos!

— Espera, o que você está fazendo?! – Exclamou.

— Esse não é um anjo de luz nem um podre. Então não tem sentindo deixa-lo aqui para morrer. Melhor voltarmos antes de outro espirito ou outro embate começar, e vamos dar no pé!

Ele não deu muita importância aos três, saindo correndo. Como tecnicamente ele estava sentado num autômato, não se cansava, mas Claire já estava ofegante de estar correndo por aí, porém já que não tinham alternativas, foram atrás. Quando chegaram no barco, seu irmão já estava a carregando nas costas. Ele não parecia muito cansado, certamente por ser mais atlético do que ela.

Desceu das costas de Joshua quando pisaram sobre o barco, e logo desceram atrás de Near, quando o barco já entrava em movimento. Ouviu Markus falando alguma coisa quando entraram na sala principal, e quase não o reparou pois seus olhos obviamente se voltaram para o anjo jogado sobre a mesa.

Ele era comprido, mas parecia ser pouca coisa, mas alta que Markus, ainda mais baixo que Joshua ou Near. Estava com calças de linho branco, botas de couro e uma cota de malha sobre o sua túnica, e o elmo pontudo também trazia uma cota nas laterais e na região que protegia o nariz, escondendo o rosto como um véu. As asas se desdobravam como leques até o chão. Elas pareciam inteiramente negras à primeira vista, mas sob a luz via que também traziam vermelho sangue, púrpuro profundo e um leve reflexo prateado. A mão que pendia junto à asa esquerda era branca como porcelana enquanto o sangue pingava.

O chão estava repleto de plumas.

— Ei Sunshine, acho que alguém precisa ser curado... – James começou, mas foi logo interrompido pelo outro.

— Eu não vou chegar perto dessa coisa. – Ele falou firmemente, fazendo o bruxo loiro franzir o cenho. – Eu me recuso.

— Ei, qual o seu problema?

Markus voltou para dentro da cabine, e Claire não sabia no que prestava atenção. Em Near abrindo o envelope ou o fato de que Joshua fora em frente e tirara o elmo do anjo. No fim, decidiu dar uma olhada.

Ele era... Realmente branco. Muito branco. Depois dos outros tipos de anjos que havia visto mortos, não saberia o que esperar, mas ele era certamente o tipo que receberia o título de “angelical”. A pele era sem qualquer imperfeição, pálida, e o cabelo preto que lhe caía pelo rosto, principalmente sobre a testa e os olhos de cílios espessos e compridos, o rosto um tanto arredondado, de maxilar forte, o nariz bonitinho e os lábios carnudos e rosados.

O som de algo metálico chamou sua atenção fazendo-a olhar para Near. Ele olhava para a mesa, para onde a chave caíra, o envelope aberto, demonstrando que a própria carta havia sido dobrada.

... Chave?

Near a ergueu, e ela trazia o número “60” gravado nela. Mas Marc não havia dito que a chave certamente não estaria no Santuário? Que era um local óbvio demais para escondê-la?

O rapaz olhou para a carta e empalideceu.

— O que foi? – perguntou nervosa.

— A data dessa carta... – disse. – Ela foi escrita ontem.


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