P.O.V Ted

Eu estou completamente entediado.

É uma típica manhã de domingo em Salvador: o céu está claro e sem nuvens, e seria uma ótima manhã para passear na praça e andar de bicicleta... Se não fosse 6:30 da manhã.

Quando eu acordei, não consegui voltar a dormir. Acho que fiquei deitado pensando no que fazer por umas meia hora, até que resolvo ligar a TV do meu quarto para assistir ao noticiário. Fecho a porta para não acordar minha mãe e meu irmão.

No canal do tempo, diz-se que Salvador passará o dia inteiro sem chuva ou ventania, com uma manhã e tarde bem quente e ensolarada. Em outras partes do mundo não é bem assim, a cidade de Londres está tempestuosa e com chuvas fortes por 3 dias seguidos até agora. Em Manhattan estão ocorrendo fortes ventanias e grandes nuvens negras se aproximam. Uma série de tornados devasta uma área ao redor de Chicago.

Estranho. Mas eu não me interesso pelo assunto, deixo essa área para Zeke.

No canal político, descubro que uma nova candidata surge para tentar ser eleita no cargo de presidente do Brasil. Eu também não me interesso muito em política. Mudo de canal.

Esse novo canal é mais interessante. O repórter diz ter visto uma ave de tamanho anormal sobrevoando o Empire States Building, nos EUA. Também há um corpo que desapareceu no meio do mar do Caribe, uma explosão em um museu na França, um garoto que caiu do alto de um prédio na Rússia e ainda está vivo, sem ferimentos, entre outras notícias.

De algum jeito, caio no sono. Uma grande ironia, pois eu nem dormi nas partes entediantes, mas quando a coisa ficava interessante...

Eu só acordo quando minha mãe abre a porta e ordena:

— Ted, acorde. Vamos para a praia. Se arrume!

Olho para a minha mãe. Ela é uma mulher alta e magra. Tem o longo cabelo marrom escuro preso em um rabo de cavalo e usava roupas de praia: uma camisa verde sem mangas e um short.

Ela não é minha mãe de verdade, ela sequer pode ter filhos por causa de uma doença. Por isso ela me adotou, quando eu tinha 2 anos, junto com meu irmão, que tinha 4. Ela é enfermeira militar e também faz trabalho voluntário para cuidar de crianças e jovens órfãos. Foi assim que nossa mãe adotiva nos encontrou. Ela e seu marido queriam muito uma criança, eles acabaram pegando duas. Infelizmente, meu pai adotivo morreu 2 anos depois tentando nos salvar de um incêndio... Mas eu não quero falar sobre isso. Não agora.

Levanto-me e vou lavar meu rosto para tirar esse pensamento da minha mente. Olho para o espelho. Meu cabelo marrom claro está bagunçado (e fora dos padrões do Colégio Militar, onde eu estudo), olhos cor de âmbar me encaram através do espelho. Eu visto minha roupa de praia: um calção de banho e uma camisa de manga curta. Escovo os dentes. Estou penteando o cabelo, quando escuto uma voz do outro lado da porta:

— Saia logo daí! — Esse é meu irmão, Zeke — Eu também quero usar o banheiro!

Eu abro a porta e encaro Zeke.

Só olhando-o, ele poderia parecer uma pessoa normal: os cabelos pretos curtos, os olhos negros me encarando e o nariz arrebitado. Ele é alto, com seus 17 anos. Está sem camisa, exibindo seus músculos bem definidos e ombros largos.

Mas como eu o conheço faz 13 anos, posso dizer que ele é um pouco estranho. Além de ser órfão e ter um nome estranho — “Zeke” — ele é louco por ficção científica, sua matéria favorita é Geografia — principalmente se estiver relacionado à astronomia ou astrologia —, ele sabe o nome de todas as constelações, algumas estrelas, satélites e planetas. Seu sonho de carreira é trabalhar na NASA ou coisas assim. Ele também é muito fã de distopias, como “Jogos Vorazes”, “Divergente” ou “Maze Runner”. Ou seja, ele é 90% nerd.

Ele também é muito independente, não sabe trabalhar bem em grupo, por isso ele prefere fazer natação no horário de treinos do Colégio. Natação não precisa de ajuda dos outros. Suspeito de que ele só faça natação para chamar a atenção das garotas. Como se ele precisasse...

Zeke é também contra todos os tipos de preconceito: racismo, homofobia, xenofobia e qualquer outra coisa assim. Ele também tem algum problema com o machismo, meu irmão odeia o jeito como os "jovens de hoje em dia" tratam as garotas. Isso não o ajudou muito a socializar-se com os garotos, mas aumentou sua popularidade com as garotas, o que, de certo modo, só piorou ainda mais sua situação.

Ou seja, todos os garotos odeiam o Zeke. Sem contar comigo e alguns dos meus amigos.

Somos completamente diferentes. Mesmo não tendo quase nada em comum, nós nos tratamos como irmãos de sangue. Eu confio nele, conto meus segredos e medos, brigamos por coisas ridículas, ele me ajuda com garotas e geografia, eu o ajudo a se tornar mais sociável sem tentar quebrar a cara de alguém. Esse tipo de coisa.

— Já estou saindo — Falo.

Eu saio do banheiro, deixando Zeke entrar. Vou ao meu quarto e olho pela janela. O dia está ótimo para ir à praia. Estaria perfeito...

...Se eu não tivesse olhado para baixo.

Lá, escondido nas sombras de uma grande árvore, avisto um par de olhos negros e frios que me encara. Tenho uma sensação muito ruim sobre o dia de hoje, algo irá acontecer. Algo que mudará toda a minha vida.

Mas logo depois, o par de olhos desaparece.

E a sensação também.